“Todos os departamentos do futebol sabem que estamos nos limites”: Peseiro e a sobrecarga de jogos
O treinador José Peseiro defende, em entrevista à Lusa, que o jogador pressionado pela sobrecarga de jogos no futebol moderno deve ser colocado no centro, olhando para a pessoa e não só para o profissional.
“Todos os intervenientes, os jogadores, treinadores, quem trabalha nos vários departamentos das equipas, quer de apoio psicológico quer fisiológico, na bioquímica… todos estes departamentos sabem que estamos nos limites. Todos sentimos que a maior densidade competitiva provoca mais lesões, mais turnos nos momentos de forma dos jogadores, até menor rendimento”, resume, em entrevista à Lusa.
O antigo treinador de Sporting e FC Porto, numa longa carreira recheada de épocas também elas longevas, estando este ano entre os nomeados para selecionador do ano, uma distinção da IFFHS que reconhece a caminhada até à final do CAN da Nigéria que liderou até recentemente.
Questionado pela Lusa sobre o impacto do aumento de jogos nos futebolistas, nota como “um dado inequívoco” que se joga cada vez mais mas, relativiza, é uma situação “representativa de talvez 5% dos atletas”, sobretudo os que jogam em grandes clubes, em competições europeias e nacionais, e depois ainda a representar as suas seleções.
Perante este quadro, o treino torna-se “mais de recuperação”, e a atenção volta-se para “o mental, com o desgaste de viagens, concentrações, ir todos os dias ao clube” e terem menos tempo para a vida pessoal e social.
“Para essa amostra pequena, de mais qualidade e também a que mexe mais dinheiro, existe essa preocupação, que vem dos jogadores, dos treinadores e dos clubes. Apesar de sabermos que os clubes necessitam destas competições para aumentarem as receitas”, analisa.
Neste quadro, as seleções “podem vir a pagar mais” a fatura do acumular de jogos, considera Peseiro, que nota algumas viagens “tremendas”, dando o exemplo do ‘astro’ argentino do Benfica, Angel Di María, mas também os fusos horários diferentes e as “diferentes reações e recuperações” a todas estas alterações de rotinas.
“Há jogadores que, neste momento, têm oito dias de férias, 15 dias no máximo. [Já] não se pode falar de pré-época, estão praticamente sempre em época, não perdem a forma nestes oito ou 15 dias de férias. Não estão tão isentos do trabalho técnico, tático, muito tempo, mas há por outro lado a fadiga mental. Durante estes anos, os jogadores passam a ter de ser tratados como máquinas”, comenta.
Neste quadro, plantéis maiores só respondem a parte do problema, porque “há mais lesões” e muitos jogadores, mesmo não jogando sempre, têm um “gasto de energia muito grande” que não vem só do tempo de utilização ou do treino, “mas da dedicação ao dia a dia profissional”.
“Quando não existe esta relação entre vida social e familiar e vida profissional, surge menor consistência no momento de forma e menor consistência na reação a roturas musculares, ósseas. Isto é um dado inequívoco. Cada vez mais, para se chegar lá acima têm de ser mesmo umas grandes máquinas”, acrescenta.
O ex-selecionador da Nigéria, em que orientou Ademola Lookman, com 59 jogos ‘nas pernas’ em 2023/24, entre Atalanta e os nigerianos, teve oportunidade de ver “a vida que os jogadores têm”, em visitas como técnico nacional, que também já foi, em anos recentes, na Venezuela.
“Porque há a saturação do estágio. No clube, pode ir treinar e voltar a casa, aos seus. (…) Há jogadores que vivem isolados, conheço muitos. A maior parte vive com a mulher, os filhos, e o dia a dia é treinar, almoçar, descansar muito, para voltar a treinar. Não têm vida social. Se ainda se reduz os dias de férias, as pausas, porque há trabalho de seleções, mais o Mundial de clubes, isso prejudica”, reflete.
Na defesa de “um equilíbrio” e de se colocar o jogador ao centro, olhando para os aspetos físicos, técnicos, táticos mas também a saúde mental, a alegria e o diálogo, evidencia os “grandes interesses”, das ligas à UEFA e à FIFA, que estão por detrás do momento atual, em que também os atletas querem valorizar-se, numa profissão de desgaste rápido, para conseguirem mais dinheiro e melhores condições para as famílias.
“É uma autêntica indústria que, como outras, vai sugando os seus intervenientes. Não falamos só de futebol, em todas as atividades humanas e profissionais sabemos que cada vez mais… explorar é um termo exagerado, mas que todos temos de dar o máximo mais tempo, em condições de grande competição, a todos os níveis, e muitas coisas estão a ficar de lado. É uma sociedade capitalista, que não se rege bem por valores, em que os valores humanos — a amizade, a sociabilidade — [têm peso] cada vez menor, na procura de mais bens. Como se esses bens fossem decisivos para a nossa vida”, afirma.
Conhece muitos jogadores “com problemas na sociedade, com depressão”, pela pressão que existe “no mito da pessoa”, de se conseguir fazer mais e “fazer dinheiro, uma luta em que ninguém se safa”, pelo que as várias áreas da ciência em torno da performance desportiva têm trabalhado para “procurar a melhor forma de recuperar, a melhor alimentação, tecnologia, químicos”.
Aliviado por ver ainda o futebol fora de problemas relacionados com dopagem, não se reduzir os momentos competitivos leva a que “os especialistas arranjem outras formas” de salvaguardar o jogador, sobretudo “na recuperação mental”, em que “o desgaste é tremendo”.
Hoje em dia, diz, a experiência que tem no treino é que “apesar de ser coletivo é mais personalizado”. “Temos a necessidade de entender não semana a semana mas dia a dia o jogador que se tem pela frente. É o diálogo, a conversa, perceber as dificuldades que têm, as carências, inseguranças. Neste momento, o ‘coaching’ é uma realidade”, conta.
Qualquer treinador, defende José Peseiro, “sabe que os jogadores não são autómatos”, e um líder tem “de perceber o que é melhor para ele, para a equipa”, mas também “olhar para o homem” para defender, também, o coletivo, constituído por muitas pessoas diferentes cuja “união de vontades” faz a diferença.
Alia este fator humano aos dados, biométricos e fisiológicos, que lhe chegam de vários departamentos, mas reforça: “um jogador que não se sente bem, não está feliz, não vai ter rendimento”.
“Falamos de jovens. Como são vedetas, achamos que são capazes de entender tudo. Não é verdade, têm inseguranças, problemas de conflito em casa, de imagem, no treino, na relação com agentes, equipa técnica, etc. É um sistema tão complexo que requer equipas técnicas vastas, qualificadas, multidisciplinares”, remata.
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