A emergência do 112: um sistema de triagem a reconsiderar
Foi colocado em prática recentemente a segunda fase de implementação do projeto “Ligue Antes, Salve Vidas”, estando o mesmo ativo atualmente em alguns hospitais de referência que regularmente têm uma afluência superior ao habitual preconizado. Sendo este um projeto pioneiro a Norte, atualmente estendeu-se a Sul, com aplicabilidade por exemplo no Hospital Garcia de Orta e no Hospital Distrital de Santarém.
A ideia, segundo este projeto de portaria do ministério da Saúde, será estipular que os doentes, para poderem ser atendidos nas urgências, terão de ser previamente referenciados pelo Centro de Orientação de Doentes Urgentes, do INEM, pelo SNS24, pelos cuidados de saúde primários, por um médico com informação clínica assinada ou por outra instituição de Saúde.
O projeto de diploma obriga ainda a que os adultos até 70 anos (sem incluir crianças e adolescentes ou pessoas mais idosas) que cheguem às urgências sem referenciação prévia, terão que ligar primeiro para o SNS24, dentro do próprio hospital, onde lhes será disponibilizado “um telefone instalado no local” para esse efeito.
Desde logo e com esta afirmação, surge a questão: qual a capacidade individual, do cidadão, ou a sua sensibilidade, em caso de doença, de compreender o que é a doença aguda, crónica, ou emergência e diferenciar o tipo de linha para a qual deve ligar ? A meu ver este é o sinal claro de que deverá existir apenas uma linha, aglomeradora de todas as possíveis situações e com capacidade de resposta adequada a tudo, em contexto pré-hospitalar.
Do ponto de vista teórico, compreendo esta medida no sentido de minimizar a afluência em massa aos Serviços de Urgência sem necessidade real, porém acredito que esta será mais uma medida que além de “entupir” os serviços de Urgência, irá também ela entupir as linhas telefónicas SNS24 e 112, sem grandes efeitos práticos.
Porquê?
Primeiramente, todos vão começar a ligar em massa para estes números, de forma a garantir que serão atendidos mais depressa e com maior prioridade no Serviço de Urgência.
Em segundo lugar, a pré-triagem do SNS24 e a triagem do 112 não preconiza a gravidade de cada urgência e como tal a racionalização necessária de meios.
Por último, e pelo que se pode apurar do diploma, a afluência às urgências poderá manter-se, ficando as mesmas estagnadas com chamadas no próprio local ao SNS24!?
Reconheço que este conceito estaria adequado se por exemplo a triagem realizada no 112 fosse feita por profissionais com noções teóricas sobre patologias, com um sistema de triagem adequado e adaptado à realidade hospitalar, como por exemplo uma Triagem de Manchester TELEFÓNICA e de aconselhamento ( sim… esta triagem existe, já foi inclusivamente validada na região autónoma dos Açores e mantém-se em vigor na Linha de Emergência Médica – 112 – Açores com resultados obtidos, comprovados, e prémios adquiridos pelo seu desenvolvimento desde 2013 ).
Não faz sentido em pleno século XXI termos todos os Hospitais Públicos com sistema de Triagem de Manchester na admissão ao serviço de Urgência e por via telefónica estar-se a aplicar protocolos totalmente diferentes, quer ao nível da linha SNS24, quer ao nível do INEM.
A primeira questão que se levanta desde logo é porque é que a triagem ao nível do INEM é feita por técnicos que seguem algoritmos e não por profissionais diferenciados, conhecedores da realidade – Enfermeiros – com pensamento crítico e capacidade de decisão e identificação precoce de patologias mais preocupantes.
Enquanto não houver uma aposta na capacidade dos Enfermeiros, e a sua consequente introdução no CODU, com um sistema de triagem já seu conhecido do serviço de urgência, mas adaptado à via telefónica… o caos continuará a governar.
Atualmente, e como a realidade está, a triagem utilizada no 112 é feita perante um algoritmo em que se decide o envio de ambulância ou a ativação de meio de emergência diferenciado (VMER ou SIV).
O problema começa logo aqui… o envio de ambulância é realizado por ordem de prioridade de chegada de caso, não sendo definida a prioridade / gravidade no atendimento do mesmo. Assim, e a título de exemplo, será indiferente alguém com uma suspeita de Enfarte Agudo do Miocárdio de alguém que fez uma entorse – utilizando esta triagem, o meio será enviado para o transporte hospitalar de forma igual e por ordem de chegada de triagem, podendo ser triado no serviço de urgência primariamente a pessoa com entorse em detrimento da pessoa com necessidade de ida por exemplo a uma sala de reanimação ou a uma sala de hemodinâmica para realização de um cateterismo emergente.
Este é a meu ver talvez um dos principais motivos para o CODU estar como está neste momento. Sabendo que existe também um problema de carência de profissionais certamente… arrisco-me a afirmar que o principal problema é estrutural, com um sistema ultrapassado e necessidade de adaptação à realidade: é aqui que claramente tem que entrar o Sistema de Triagem Telefónica e Aconselhamento de Manchester.
Com a triagem telefónica e aconselhamento de Manchester, este fenómeno é diferenciado. São utilizados praticamente os mesmos algoritmos da triagem de Manchester presencial, mas consegue-se definir o nível de gravidade de cada situação, podendo assim enviar meios de acordo com a prioridade definida, tendo em conta um tempo útil de resolução. Assim, é mais fácil racionalizar os meios para o socorro e comandar as prioridades na sua utilização.
Desta forma, a conclusão é simples… é necessário de uma vez por todas apostar em 2 eixos essenciais:
- mudança de algoritmo da linha 112 para uma Triagem Telefónica e Aconselhamento de Manchester;
- introdução de Enfermeiros com experiência em Triagem de Manchester na linha 112
Com esta mudança, torna-se então necessário criar as devidas pontes com o SNS24, de forma a criar um único sistema telefónico nacional de resposta universal, mas de forma ao SNS24 ser uma linha de apoio e esclarecimento, com identificação precoce de potencial situação com necessidade de ida ao serviço de urgência, interagindo o SNS24 com o CODU e vice versa.
E o que se faz com os técnicos que atualmente trabalham no CODU?
A resposta é simples… há necessidade de técnicos no ambiente pré-hospitalar. O seu reforço é imperativo com esta mudança contribuindo para o bolo geral da emergência pré-hospitalar, podendo desta forma observar-se claramente uma mais valia em todas as áreas. As linhas sairão reforçadas, com conhecimento científico, pensamento crítico e um novo protocolo de atuação, com base em gravidade de cada situação, semelhante ao meio hospitalar, e o ambiente pré-hospitalar será reforçado.
Só assim, e desta forma, a meu ver, se poderá otimizar o SNS e minimizar as idas ao Serviço de Urgência… até lá, continuar-se-ão a criar várias linhas, como por exemplo a Linha Saúde Grávida ou a Linha Saúde Criança, que têm obviamente a sua importância, mas enquanto não se definir prioridades no envio de meios de acordo com a gravidade de cada situação, os problemas manter-se-ão e os tempos de resposta serão dificultados cronicamente, bem como a devida resposta à população, como se pôde confirmar na última semana.