SNS/45 ANOS: Horácia Sarilho desconhecia que não podia casar quando escolheu ser enfermeira
Natural do Alentejo, formou-se na escola do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, já depois de ter sido publicado um decreto em 1963 a autorizar o casamento de enfermeiras dos hospitais civis, mas com tantas limitações que mal se dava pela alteração da lei.
No diploma, o legislador sublinhava mesmo “as vantagens” de, sempre que possível, “contribuir, através de medidas legislativas, para afastar a mulher casada de preocupações e ambientes estranhos ao seu lar”, onde lhe estava reservada “a mais nobre missão”.
Era aconselhado “o afastamento de mulheres casadas da profissão” e admitida a contratação por imposição de necessidades de serviço.
“Só soube quando cheguei a Lisboa, o que para mim foi assim uma coisa estranha. Vinha lá do Alentejo! Não podia haver casamento e havia enfermeiros que eram casados e tinham de esconder a aliança quando entravam no hospital, não podiam dizer que eram casados”, contou a enfermeira, em entrevista à agência Lusa, em Leiria, onde se radicou.
Em tempo de guerra, eram necessárias enfermeiras nas antigas colónias: “Pediam nessa altura era para Angola, enfermeiras paraquedistas. Tive uma colega de curso que foi enfermeira paraquedista, foi para lá, porque davam todas as condições. Eu não conheci, mas em Luanda parece que havia um hospital com residências para enfermeiros. Houve colegas minhas de curso que foram para Angola e para Moçambique”.
A missão da enfermeira Sarilho, como ficou conhecida, passou pela abertura de uma escola de enfermagem em Leiria, onde, à chegada, em 1976, teve o segundo grande choque. Sentiu que tinha viajado para o século XIX.
“O que encontrei aqui foi um hospital velho, a cair de podre, os esgotos iam para o rio etc. e para mim foi muito difícil adaptar-me e formar enfermeiros”, confessou, ao recordar a antiga unidade hospitalar da Misericórdia, gerida pelo padre Pires, com quem teve “algumas pegas”.
O padre controlava os medicamentos que ela administrava, os ratos roíam as botas dos pacientes por baixo da cama, não havia esterilização, como no então hospital-escola modelo de Santa Maria.
“O hospital era tão velho e com falta de tudo, de lençóis, medicação, seringas de vidro, que se ferviam. Aquilo era um horror”, recordou.
A escola de enfermagem foi instalada numa antiga casa particular também sem condições para o ensino e onde as cheias do Lis entravam frequentemente. Apostou então em visitas de estudo com os alunos e no contacto direto com a população.
“Foi a maneira de me integrar no conceito de vida. Hoje o caminho é muito diferente, mas nos primeiros anos foi muito difícil”, confessou Horácia Mariana Sarilho, que teve de enfrentar também a desconfiança que quem via na enfermeira alentejana uma comunista enviada pelo PCP para destruir uma escola que ainda nem tinha começado, após os “anos loucos” de 74 e 75.
“Quando vim para aqui, as pessoas diziam ´os comunistas comem meninos´”, contou.
Em Lisboa, havia contactado com a pobreza da população dos bairros da Ajuda e do Castelo, antes da criação dos centros de saúde. “Eram centros materno infantis, com o objetivo principal de diminuição da mortalidade infantil. As grávidas não tinham qualquer tipo de apoio”, precisou.
Questionada sobre as principais carências da população em termos de saúde, a enfermeira respondeu perentoriamente: “Médicos. Não me lembro se alguma vez vi um médico nesses centros a fazer um exame à grávida ou à criança, um pediatra. Havia um médico, talvez, de clínica geral, na altura”.
No distrito de Leiria, o panorama não era melhor. Urgia formar profissionais. “Admitíamos [na escola de enfermagem] pessoas ligadas ao distrito, que vai de Figueiró dos Vinhos ao Bombarral. Em Caldas da Rainha não havia enfermeiros, havia meia dizia deles, Bombarral então, Deus me livre!”, exclamou.
As condições de saúde da população eram más, admitiu Horácia Sarilho, destacando zonas de grande emigração do interior do distrito, como Figueiró dos Vinhos, Alvaiázere e Pombal, mas também as comunidades piscatórias da Nazaré e Peniche, a par da falta de condições hospitalares.
Nas zonas rurais, os enfermeiros que faziam visitação domiciliária deparavam-se com crianças entregues aos cuidados dos avós, com os pais emigrados. A alimentação era deficitária.
“Tinham as suas as suas galinhas, mas vendiam. Era como o leite. O leite da cabra era para fazer queijo e vendiam-no, a criança não tomava leite”.
Alcoolismo, reumático, obesidade, diabetes, doenças pulmonares afetavam a população.
Com a criação do SNS, por decreto de 15 de setembro de 1979, houve “muita modificação”, reconheceu, enumerando a posterior constituição dos centros de saúde, a vacinação em massa e a erradicação de doenças como a poliomielite e o tétano, bem como a abertura de uma nova escola de enfermagem em Leiria, nos anos 90.
“Mas o SNS devia ter-se desenvolvido mais, com mais pessoas, admitir mais pessoas e isso hoje continua. Precisamos de trabalhar com as populações. Se não soubermos as deficiências das populações não podemos desenvolver o sistema. Por isso é que o sistema está a cair”, defendeu.
“Os nossos alunos são formados para isso, para prevenir, para educar, para falar. E isso não custa muito dinheiro. O que custa dinheiro é quando entramos no hospital, tecnologia e tudo isso”, afirmou, considerando que Portugal tem um problema de gestão. “Não sabe aproveitar a formação que os nossos enfermeiros têm”.
Das centenas de alunos que formou, Horácia Sarilho viu partir muitos para a Suíça, para Inglaterra e para o Canadá, à procura de melhores condições.
Decidiu dedicar-se ao ensino para melhor conciliar a vida profissional com a familiar. “Porque, entretanto, os enfermeiros começaram a ter uma vida normal de casamento, não é? Fiz manhãs, tardes, noites. Nunca ninguém me pagou uma noite. Fazer uma noite é muito difícil, deixar a família no dia de natal…Trabalhamos 24 horas”, justificou.
LUSA/HN
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