A cura pelos livros. Na vida de Sandra Barão Nobre há um antes e um depois da biblioterapia
Livro. A palavra encerra em si tantos caminhos e possibilidades quantos os leitores que se acercam desta ferramenta milenar de construir mundos, de nos ligar aos outros, mas também de formação da nossa singularidade. Sandra Barão Nobre guarda pelos livros uma relação primeva, chama-lhe mesmo um “caldo primordial”. E associa-o às histórias que, na meninice, lhe chegavam pela voz dos avós. Sandra, licenciada em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa, haveria de encontrar nas narrativas o fio condutor para a sua vida. De um trabalho que se tornara um empecilho nas aspirações de quem procurava progredir, Sandra cresceu para outra atividade. Certo dia, em “2012 ou 2013”, como nos conta, ‘tropeçou’ na palavra biblioterapia. O termo materializou-se no futuro de Sandra, hoje biblioterapeuta a tempo inteiro. Nos livros, a autora da obra Ler Para Viver (edição Nascente), encontrou a matéria-prima para melhorar o estado de espírito e o bem-estar de terceiros. A biblioterapia permite cuidar do desenvolvimento continuo do ser humano, através da relação muito particular que cada um estabelece com as histórias. Nos últimos anos, a biblioterapeuta já levou as suas leituras curativas, entre outros ambientes, a escolas, prisões e hospitais. Fê-lo em grupo e individualmente, sempre com uma frase a bailar-lhe no espírito: “leia para viver”.
A Sandra intitula o seu livro Ler Para Viver. Há neste título a ligação entre o ato da leitura e a condição da nossa própria existência. O que encerra a leitura de fundamental?
Tenho usado a expressão “ler para viver melhor” nas oficinas de biblioterapia que organizo. Desconhecia que “leia para viver” é uma expressão creditada ao francês Gustave Flaubert, autor que, aliás, acabo por citar no meu livro. O meu editor lembrou-se desta expressão para inspirar o título do livro. Concordei imediatamente. Respondendo diretamente à sua pergunta: Porquê esta necessidade vital? Na verdade, nós, seres humanos, estamos constantemente a narrar uma história e é esse ato de narração que vai conferindo sentido à nossa existência, na medida em que permite organizar o nosso tempo. E esse ato de contar, narrar, organizar o tempo, conferir sentido é vital. Há, inclusivamente, autores que dizem que precisamos desse exercício como do ar para respirar, pois é um ato de sobrevivência. Sim, sem dúvida, vejo a leitura como uma necessidade, até mesmo para nos entendermos e percebermos a forma como pensamos, nos comportamos e como nos situamos no mundo. Não vejo como é possível passarmos por esta vida sem esse exercício que, aliás, nos define como humanos. Só nós, humanos, temos esta noção de um tempo que não volta atrás.
Do que falamos quando nos referimos à biblioterapia?
Referimo-nos a este ato de cuidar de nós e dos outros e do nosso desenvolvimento constante através do potencial transformador que as histórias encerram. Em biblioterapia partimos do princípio que as histórias têm sempre impacto no ser humano. Isto porque apelam às nossas memórias, à nossa experiência de vida, à nossa imaginação, à nossa capacidade de nos identificarmos e, muitas vezes, descobrimos coisas absolutamente novas, ou seja, conceitos, atitudes, formas de pensar, damos conta de vieses, de preconceitos. Nós, biblioterapeutas, trabalhamos com esse impacto, com aquilo que cada ser humano é e com a relação subjetiva que pode estabelecer com algumas histórias, assim como o potencial transformador que essas histórias carregam. Logo, o grande objetivo da biblioterapia é potenciar o bem-estar de cada um de nós através do potencial transformador que as histórias têm.
De certa forma os antigos contadores de histórias seriam biblioterapeutas no seio das comunidades.
Sem dúvida. Embora a palavra biblioterapia seja relativamente recente, tem cem anos, encerra uma atividade, um ato de cuidado que é ancestral. Sempre que contamos histórias, mitos fundadores ou contos tradicionais, há um intuito, o de cuidar do outro, de orientar, de providenciar conselhos, encontrar heróis ou figuras com atitudes e valores, princípios que, idealmente, era bom que fossem adotados por toda a comunidade. Os próprios textos religiosos são também isso, procuram impor regras e promover a coesão do tecido social. Recentemente li o novo ensaio do filósofo germano-coreano, Byung Chul Han, obra intitulada A Crise da Narração, onde explica que este afastar das pessoas, esta incapacidade para nos ouvirmos e conversarmos, o extremar de posições, decorre também do facto de nos estarmos a afastar das histórias. Estamos acantonados dentro das nossas convicções. Byung Chul Han defende que esta crise das histórias propicia este afastamento.
Crescemos com histórias que nos são contadas à beira da cama, todas as crianças têm a sua pequena biblioteca, contactamos com livros e leitura na escola. Mais tarde abandonamos os livros. Falta em idade adulta quem nos encaminhe para eles?
Em relação às bibliotecas que os miúdos têm em casa, infelizmente as estatísticas não vão ao encontro dessa ideia. Um dos últimos estudos publicados com o patrocínio da Gulbenkian [“Inquérito às práticas culturais dos portugueses”], relata que os portugueses têm uma relação muito fraca com a leitura. Que as crianças têm cerca de 20 livros em casa, o que é manifestamente pouco. Claro que há crianças que têm a sorte de nascer em famílias onde a leitura é incentivada. Ter pais leitores é, desde logo, essencial. Há muitos pais que insistem com os miúdos para que leiam, mas não dão o exemplo. É importante conversar sobre a leitura, contar histórias à mesa. Por exemplo, contar o dia já é uma narração. O hábito de ler a história antes de adormecer é uma memória de carinho e aconchego que cria uma vinculação afetiva com o ato de ler e, quando na primeira infância se descobre esse prazer da leitura, é mais fácil a ele voltar em idade adulta. Há uma associação que se faz com as leituras prazerosas da infância. É claro que conheci pessoas que são exceção a esta regra. Por exemplo, abraçam a leitura quando terminam os estudos, quando os filhos estão criados ou ao entrarem na reforma.
A adolescência também impõe um certo afastamento da leitura?
Lembro-me de ouvir o professor Júlio Machado Vaz dizer que a adolescência é uma espécie de desconfinamento. Nesse período há outros interesses e muita pressão do grupo, até mesmo pressão social, para se estar mais afastado do mundo das histórias e da imaginação. Atualmente, para além desse comportamento próprio da adolescência, há elementos que concorrem fortemente com a leitura, como a vida no ecrã. E a leitura que fazemos no ecrã, mesmo quando estamos a ler romances, não é a que interessa à biblioterapia. Diz-nos a ciência que a leitura de textos mais longos no ecrã não é igual à leitura desses mesmos textos em papel.
No seu livro, fala-nos em “caldo primordial”. Neste caso, não se refere à evolução da vida na Terra, mas aos seus ascendentes, aos seus avós. De que forma os liga ao seu percurso enquanto leitora?
Precisamente ao ato de narrar, de contar histórias e o fascínio que tal exerceu sobre mim. Ajudou também a construir a minha própria narrativa. Ou seja, há em mim um início e ele está nessas pessoas que me contaram também as suas histórias.
Há momentos que traçam uma fronteira na nossa vida. No caso da Sandra há uma espécie de momento fundador por volta de 2013 quando se depara com o livro The Novel Cure, de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Escreveu no seu livro: “Lembro-me da sensação de espanto, de expansão do meu cérebro”. O que lhe trouxe este livro?
Trouxe a palavra biblioterapia que nunca tinha lido, que desconhecia que existia, mas que percebi imediatamente o que queria dizer. E trouxe uma revelação fantástica: há pessoas que são profissionais nesta área. E trouxe-me também aquela convicção visceral de que eu podia fazer aquilo. Foi repentino e uma espécie de intuição numa fase em que não estava feliz no trabalho que desempenhava e explorava alternativas. Queria muito trabalhar para mim. Percebi que era possível estudar a biblioterapia e que há investigação científica nesta área.
No mesmo excerto escreve que “era para a biblioterapia que eu me tinha preparado toda a vida”. Presumo que na época a preparação fosse informal, enquanto leitora e apaixonada por narrativas.
Sim, não sabia que me tinha preparado [risos]. Tinha a intuição terapêutica das histórias, o fascínio pela literatura e, de repente, surge mais uma peça do puzzle.
Até abraçar a biblioterapia que preferências literárias tinha a Sandra?
Lia sobretudo ficção de qualquer origem geográfica, fruto de uma grande curiosidade. Dado a minha feição de pessoa que gosta de viajar, explorava muito literaturas vindas de outras paragens, embora já com muito interesse nas áreas da psicologia, filosofia, sociologia e história. Esta última vertente tem-se acentuado ultimamente. Quero explorar o ser humano na sua dimensão mais científica.
Quais foram os primeiros passos que deu no sentido de prosseguir na área da biblioterapia?
Efetuei muita pesquisa online. Comecei por encontrar artigos na imprensa estrangeira, inclusivamente artigos científicos. Descobri biblioterapeutas no estrangeiro, percebi o que faziam e como faziam. O Brasil já dava cartas na área. Entrei em contacto com algumas pessoas, dado já ter havido formações pontuais em contexto universitário. Percebi que os Estados Unidos e o Reino Unido lideravam nesta área. Comecei a adquirir livros e a ler sobre temas conexos, até que fiz a primeira formação em biblioterapia na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. A partir desse momento, descobrimos novos autores, há um enriquecimento da bibliografia. Ultimamente, tenho-me interessado sobre a neurociência da literatura, o que acontece no nosso cérebro quando lemos, como ele se organiza. Neste momento estou a ler um livro de um professor de uma universidade norte-americana [Paul B. Armstrong] intitulado How Literature Plays with the Brain. A obra explora uma dicotomia: o nosso cérebro é um órgão paradoxal e a literatura joga com isso, navegamos entre o prazer e a dor.
Quer explicar?
Por exemplo, o livro que nos incomoda, mas não conseguimos deixar de o ler. Porque esse incómodo tem efeitos.
A ciência identifica os benefícios do ato de ler. Conseguimos avaliar o nosso cérebro enquanto estamos a ler. Nesse momento experimentamos ser outras pessoas, num outro tempo, numa outra era, numa outra cultura, com outros interesses e isso tem influência na forma como pensamos, como olhamos para nós, para o mundo e, claro, tem impacto no nosso comportamento. E isso interessa à biblioterapia.
Também escreve que se sentiu desacompanhada neste processo. Porquê?
Senti-me sozinha. Foram a exceção a minha primeira professora de biblioterapia da Universidade do Porto e uma colega. O que acontece é que a maior parte das pessoas que vai praticando alguma biblioterapia em Portugal, não o faz a tempo inteiro. São médicos, psicólogos, enfermeiros, bibliotecários e a biblioterapia encaixa-se nas suas atividades. Como sou biblioterapeuta a tempo inteiro, sinto-me um pouco só, embora sinta que as coisas estão a mudar. Com o livro surgiram pessoas que se dizem interessadas em trabalhar exclusivamente em biblioterapia. No Brasil, claro, encontrei muito mais pessoas, o que me fez sentir mais acompanhada pelos colegas do outro lado do Atlântico. Mas a distância pesa.
Quem se acerca da Sandra o que procura?
As razões para solicitar os meus serviços são variadas. Há um traço comum ultimamente. São principalmente mulheres, embora também apareçam alguns homens, com uma questão no pós-pandemia. Referem que já foram leitores/leitoras, lembram-se de adorar ler e, não sabem o que aconteceu, pois perderam o hábito da leitura. Quando se forçam a ler, não corre bem, pois não se concentram na leitura, esquecem as histórias. Tem a ver com retomar o hábito, redescobrir o prazer de ler e trabalhar a concentração e a capacidade de memorização do que vamos lendo. É engraçado, pois logo na primeira conversa as pessoas sabem fazer o seu diagnóstico. Muito passa pela distração potenciada pelos ecrãs. As pessoas deram prioridade às séries, preterindo os livros. No fundo, estas pessoas precisam de ajuda para “olear” aquele cérebro de leitor que está adormecido. É claro que é preciso que a pessoa se identifique com o que está a ler e estabeleça pontes com o livro. Pego em tudo isto e elaboro a lista de leituras e vou acompanhado as pessoas nessa viagem.
Já lhe surgiram pessoas que nunca se aproximaram da leitura, mas que querem tornar-se leitores?
Ainda não. Quem já foi leitor percebe imediatamente o que a biblioterapia pode fazer por si. Quem não é leitor, não tem esta descoberta do prazer da leitura e, provavelmente, cruza-se com a palavra e o tema e não lhe despertam interesse. Há quem olhe com desconfiança para esta terapêutica. Quando vou às escolas apresento esta forma alternativa de nos relacionarmos com a leitura que é diferente daquelas que é veiculada nas escolas. Acredito que deixo uma semente nas muitas centenas de alunos com quem já estive em contacto em diferentes pontos do país, a de se relacionarem com a leitura na ótica da biblioterapia. Quem sabe se no futuro estes jovens mesmo não sendo leitores recordem isto.
No seu livro enumera as atividades ligadas à biblioterapia e são muitas.
Para além de trabalhar com as pessoas individualmente, trabalho com grupos de pessoas, por exemplo em estabelecimentos prisionais, em escolas, até mesmo com uma equipa de médicos num hospital. Tenho organizado retiros de leitura. Também posso trabalhar individualmente em todos os contextos que citei. Por exemplo, em contexto hospitalar fiz voluntariado de leitura à cabeceira de pessoas internadas. Mas também o fiz em grupo, quando as pessoas estavam em condições de sair da cama e ir para uma sala. É, de facto, uma atividade muito versátil.
Há livros/temas que melhor se adequem à biblioterapia?
Diria que a literatura de ficção é a mais rica, pela metáfora e por uma série de exercícios de estilo que estimulam a nossa dimensão emocional, sentimental e psicológica com as histórias. A poesia é poderosíssima e há uma vertente da biblioterapia que aí se especializou. Mas eu tenho uma prática muito eclética que recorre a outros géneros literários e também trabalho com a não ficção. Gosto muito de trabalhar com psicologia, filosofia, sociologia, história, por vezes com autoajuda e livros de desenvolvimento pessoal.
No livro apresenta-nos uma farmácia literária. O que presidiu às escolhas que fez?
São todos livros que eu li, que conheço da capa à contracapa. Procurei refletir o meu gosto eclético.
Que livros tem sempre na sua farmácia literária?
Por exemplo, o primeiro livro que li do Byung Chul Han, A Sociedade do Cansaço, uma das obras que mais me marcou nos últimos anos. Também um outro livro que dialoga com a sociedade do cansaço, o Elogio da Lentidão, de um neurocientista italiano, Lamberto Maffei, que explora um paradoxo: criámos máquina rapidíssimas, que trabalham cálculos e tarefas à velocidade da luz, supostamente para nos libertar de tarefas e, agora, queremos ser tão rápidos como essas máquinas. A nossa mente é eminentemente lenta e precisamos de tempo para pensar. Também me tocou particularmente o livro A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi, uma obra que é um murro no estomago que nos leva a refletir sobre o propósito da nossa missão nesta vida. Recentemente li um livro, o primeiro de Joana Bértholo, o Natureza Urbana e que apelou muito à minha relação com a natureza e também ao meu vegetarianismo. Alerta-nos para a cegueira em relação às árvores e mesmo na relação que mantemos com os animais. E, claro, as tiras de Quino em Toda a Mafalda [risos]. Há sempre uma tira da Mafalda capaz de nos curar.