Percursos Assistenciais Integrados: Uma Revolução na Saúde do Litoral Alentejano
A prestação de cuidados de saúde em Portugal enfrenta desafios significativos, especialmente no que diz respeito ao acompanhamento de doentes crónicos. A fragmentação dos serviços e a falta de continuidade nos cuidados têm sido problemas recorrentes, levando muitas vezes a situações em que os doentes crónicos acabam por descompensar e recorrer aos serviços de urgência, sem a devida integração e continuidade de cuidados que necessitam.
Foi neste contexto que a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano decidiu implementar um projeto inovador denominado “No radar da equipa de saúde: Os percursos assistenciais integrados da Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano”. Este projeto, coordenado pela Médica Inês Vale, visa criar um recurso assistencial integrado que coloca em prática as diretrizes e processos assistenciais existentes, adaptando-os à realidade local e à organização possível no território.
O projeto começou a tomar forma em 2022, com a criação de grupos de trabalho que incluíram não apenas profissionais de saúde, mas também doentes, cuidadores, psicólogos e representantes dos sistemas sociais da comunidade. Estes grupos de trabalho foram fundamentais para a discussão e desenvolvimento do conceito ao longo do ano.
Destes grupos emergiu um núcleo coordenador dos percursos, composto por médicos e enfermeiros, tanto hospitalares como dos cuidados de saúde primários. Este núcleo restrito de trabalho foi responsável pela criação de um documento que definiu as regras do percurso e as equipas de ligação, que são equipas dedicadas ao cuidado dos doentes integrados no projeto.
O projeto avançou efetivamente em 2023, com a integração dos primeiros utentes. Em março desse ano, começou-se a incluir doentes com insuficiência cardíaca, e em outubro, o projeto expandiu-se para incluir pessoas que tivessem pelo menos duas de três patologias específicas: insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crónica ou diabetes.
Um dos maiores desafios enfrentados pela equipa foi como implementar na prática os fluxogramas e percursos definidos, garantindo a uniformização dos cuidados e a reorganização do trabalho para assegurar a continuidade. Para ultrapassar este obstáculo, a equipa contou com o apoio fundamental de uma empresa que traduziu os percursos criados em algoritmos e fluxogramas digitais, facilitando assim a implementação do projeto e a uniformização dos procedimentos em toda a unidade local de saúde.
O sistema implementado tem três características principais que o tornam verdadeiramente inovador e eficaz:
Mapeamento digital: Trata-se de um sistema de interoperabilidade que reconhece em tempo real o serviço onde a pessoa inserida no percurso está a circular. Esta funcionalidade permite reduzir silos de informação e manter um acompanhamento constante do utente.
Ferramenta de suporte à decisão clínica: Esta componente permite aos profissionais de saúde, em caso de dúvida, consultar as melhores práticas de acordo com os sintomas apresentados pelo utente. Isto apoia não só o diagnóstico, mas também a definição do melhor cuidado para aquela pessoa naquele momento específico.
Automação do envio de questionários de sintomas: O sistema envia de forma automática e periódica questionários aos utentes para avaliar os seus sintomas.
O funcionamento prático deste sistema é particularmente interessante. Os utentes inseridos no percurso recebem frequentemente um questionário de sintomas, que pode ser respondido por e-mail ou através de uma chamada de voz. As respostas a estes questionários podem gerar cenários de alerta, que são então recebidos pelas equipas dedicadas.
Estas equipas, ao receberem um alerta, entram em contacto com o utente num prazo de 24 a 48 horas, dependendo da gravidade da situação. Durante este contacto, validam se se trata de um verdadeiro alerta e encaminham o utente de acordo com o algoritmo de decisão para o cuidado mais adequado às suas necessidades.
É importante notar que o acompanhamento varia consoante a situação do utente. Por exemplo, um utente que tenha recorrido ao serviço de urgência será contactado nas 48 horas seguintes, enquanto um utente que tenha tido uma alteração nos cuidados de saúde primários receberá um contacto mais célere.
Um elemento crucial para o sucesso deste projeto são as chamadas “equipas de ligação”. Estas equipas, compostas por profissionais que trabalham tanto no hospital como nos cuidados de saúde primários, funcionam como um ponto de contacto unificado para os utentes inseridos no programa. Dispõem de um número de telefone e um e-mail dedicados, que são fornecidos aos doentes, aumentando assim a acessibilidade aos cuidados.
As equipas de ligação desempenham um papel fundamental na resolução da maioria dos alertas gerados pelo sistema. Além disso, em cada contacto que fazem com os utentes, reforçam a capacitação destes para gerir a sua condição de saúde. Este modelo de funcionamento tem também promovido uma maior comunicação entre os diversos profissionais da instituição, contribuindo para uma melhor coordenação dos cuidados.
Os números do projeto são impressionantes. Até à data da apresentação, havia 3628 pessoas elegíveis para o programa, das quais 63% já tinham as suas jornadas ativadas. É importante notar que esta ativação é feita de forma faseada, presencial e sempre com o consentimento do utente.
O sistema já enviou mais de 13000 comunicações automatizadas, com uma taxa de resposta de 63%, um valor considerado bastante elevado tendo em conta que a média de idade dos utentes é de 77 anos. É particularmente interessante notar que a maioria das respostas são dadas pelo próprio doente, demonstrando um bom nível de adesão e compreensão do sistema por parte dos utentes.
Dos questionários enviados, cerca de 40% geraram alertas para as equipas de ligação. No entanto, apenas 2% destes alertas necessitaram de avaliação clínica adicional em consulta médica, que poderia ser com o médico de família ou no serviço de urgência. Isto sugere que o sistema está a ser eficaz na triagem e resolução de problemas sem sobrecarregar desnecessariamente os serviços de saúde.
Os resultados preliminares do projeto são extremamente promissores. Foi realizada uma análise de uma coorte de utentes com insuficiência cardíaca e multimorbilidade, onde se verificou uma redução estatisticamente significativa de 51% nos episódios de urgência para utentes com insuficiência cardíaca e de 46% para utentes com multimorbilidade. Em termos absolutos, isto representa uma redução de mais de 100 episódios de urgência para utentes com insuficiência cardíaca e mais de 150 para utentes com multimorbilidade.
Embora a redução no número de internamentos não tenha atingido significância estatística, observa-se uma tendência clara para a diminuição dos internamentos dos utentes inseridos nos percursos assistenciais. Esta tendência é encorajadora e sugere que, com mais tempo e mais utentes integrados no programa, poderemos ver uma redução significativa também neste indicador.
O impacto do projeto vai além dos números. Na comemoração do primeiro aniversário do projeto, foram recolhidos testemunhos de utentes e cuidadores que demonstram o valor humano desta iniciativa. Uma utilizadora de 91 anos referiu sentir-se mais confiante com o projeto, afirmando que responde ao inquérito com facilidade e que a experiência tem sido muito positiva.
Uma cuidadora, por sua vez, destacou como o questionário tem sido útil para identificar sinais de alerta que poderiam passar despercebidos. Ela explicou que, embora a familiar que cuida tendesse a dizer que estava tudo bem quando questionada de forma geral, as perguntas específicas do questionário permitiam identificar sinais de descompensação que, num caso específico, levaram a uma consulta hospitalar atempada.
Estes testemunhos ilustram como o projeto não só melhora os indicadores de saúde, mas também aumenta a sensação de segurança e apoio dos utentes e seus cuidadores. O facto de saberem que estão a ser monitorizados regularmente e que têm um ponto de contacto dedicado parece ter um efeito positivo na sua qualidade de vida e na gestão da sua condição de saúde.
A equipa do núcleo coordenador do projeto considera que esta iniciativa é de extrema importância, permitindo fornecer os cuidados mais adequados ao utente certo, no local mais apropriado e no momento oportuno. Esta abordagem personalizada e integrada representa um avanço significativo na prestação de cuidados de saúde, especialmente para doentes crónicos.
O sucesso deste projeto demonstra o potencial da integração de tecnologia digital na gestão de cuidados de saúde. A combinação de um sistema de monitorização automatizado com equipas dedicadas de profissionais de saúde cria um modelo de cuidados que é simultaneamente eficiente e humano.
A redução significativa nos episódios de urgência sugere que o projeto está a ser bem-sucedido na prevenção de descompensações agudas, permitindo intervenções precoces que evitam a necessidade de cuidados de emergência. Isto não só melhora a qualidade de vida dos utentes, como também pode representar uma poupança significativa de recursos para o sistema de saúde.
Além disso, o projeto parece estar a promover uma maior literacia em saúde entre os utentes. Ao responderem regularmente a questionários sobre os seus sintomas, os utentes tornam-se mais conscientes dos sinais de alerta da sua condição e mais capazes de comunicar eficazmente com os profissionais de saúde.
O envolvimento de diversos stakeholders desde o início do projeto – incluindo doentes, cuidadores e profissionais de diferentes áreas – foi provavelmente um fator chave para o seu sucesso. Esta abordagem participativa assegurou que o projeto fosse desenhado tendo em conta as necessidades e perspetivas de todos os envolvidos.
A criação de equipas de ligação dedicadas é outro aspeto inovador do projeto. Estas equipas, ao funcionarem como um ponto de contacto unificado, simplificam o acesso aos cuidados e promovem uma maior continuidade. O facto de estas equipas incluírem profissionais tanto do hospital como dos cuidados de saúde primários facilita a comunicação e coordenação entre diferentes níveis de cuidados.
O projeto “No radar da equipa de saúde” representa um exemplo concreto de como a inovação e a tecnologia podem ser utilizadas para melhorar a prestação de cuidados de saúde, especialmente para doentes crónicos. A sua abordagem integrada, combinando monitorização digital com intervenção humana, oferece um modelo promissor que poderia ser adaptado e implementado noutras regiões do país.
À medida que o projeto continua a evoluir, será interessante observar o seu impacto a longo prazo. Se a tendência de redução de internamentos se confirmar estatisticamente significativa com o tempo, isto representará outro importante benefício, tanto para os utentes como para o sistema de saúde.
Além disso, o projeto tem o potencial de gerar dados valiosos sobre a evolução das condições crónicas e a eficácia de diferentes intervenções. Esta informação poderá ser utilizada para refinar ainda mais os cuidados prestados e para informar políticas de saúde a nível regional e nacional.
Um aspeto particularmente notável é a alta taxa de adesão ao projeto, especialmente considerando a idade avançada da maioria dos utentes. Isto sugere que, com a abordagem certa, mesmo populações que tradicionalmente são vistas como menos propensas a adotar soluções tecnológicas podem beneficiar de inovações digitais na saúde.
O projeto também demonstra a importância da adaptação local de diretrizes e processos assistenciais. Ao criar um sistema que responde às necessidades específicas da população do Litoral Alentejano e que se adapta à realidade organizacional local, a equipa conseguiu implementar com sucesso um modelo de cuidados que poderia ter sido difícil de aplicar se fosse simplesmente importado de outro contexto.
Em conclusão, o projeto “No radar da equipa de saúde: Os percursos assistenciais integrados da Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano” representa uma abordagem inovadora e promissora para a gestão de doenças crónicas. Combinando tecnologia digital com cuidados personalizados, o projeto está a melhorar significativamente os resultados de saúde e a qualidade de vida dos utentes, ao mesmo tempo que potencialmente reduz a pressão sobre os serviços de urgência e internamento.
O sucesso deste projeto oferece lições valiosas para outras unidades de saúde em Portugal e além, demonstrando como a inovação, a tecnologia e uma abordagem centrada no utente podem transformar a prestação de cuidados de saúde. À medida que o projeto continua a evoluir e a gerar mais dados, é provável que continue a fornecer insights valiosos para a melhoria dos cuidados de saúde, especialmente no contexto das doenças crónicas e da população envelhecida.
HealthNews
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