Renato Nunes: “Plano Nacional de Reabilitação é uma prioridade de Saúde Pública”
Nesta conversa, o Presidentes da SPMFR aborda os principais objetivos do plano, a importância da reabilitação como prioridade de saúde pública e as estratégias para garantir acessibilidade e qualidade nos cuidados de reabilitação em Portugal. Além disso, salienta o papel da sociedade civil na implementação dessas propostas e os desafios que se anteveem na evolução da Medicina Física e de Reabilitação no país.
Healthnews (HN) – A Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação (SPMFR) apresentou recentemente um Plano Nacional de Reabilitação ao Ministério da Saúde. Quais são os principais objetivos desse plano?
Dr. Renato Nunes (RN) – A SPMFR, enquanto associação médica que tem como missão promover o desenvolvimento científico e a implementação dos melhores cuidados de saúde na área da medicina física e de reabilitação (MFR), segundo práticas de intervenção baseadas em evidência científica, apresentou ao Ministério da Saúde as estratégias de organização nacional dos cuidados de Reabilitação no sistema de saúde em Portugal. A implementação de um Plano Nacional de Reabilitação (PNR) deve ser entendida como uma prioridade de Saúde Pública, pelos objetivos de qualidade que Portugal assume enquanto estado membro da União Europeia A estratégia nacional de organização dos cuidados de Reabilitação que deve considerar a implementação de medidas de desenvolvimento da estrutura assistencial, o que inclui necessariamente a constituição de equipas multiprofissionais de reabilitação com todas as valências em todas as tipologias de cuidados, assim como a adequada transição e continuidade de cuidados, acompanhando as várias fases do processo de recuperação e, por outro lado, a orientação da intervenção segundo as melhores práticas clínicas e recomendações científicas internacionais.
É importante referir que este plano surge alinhado com as recomendações da Organização Mundial da Saúde que, em 2023, no seu documento “Strengthening Rehabilitation in Health Systems” (EB152/10,) vem reforçar a necessidade de uma estratégia para melhoria dos cuidados de reabilitação em todo o mundo.
HN – Como a SPMFR planeia implementar as propostas contidas no plano e qual é o papel da sociedade civil neste processo?
RN – A implementação do plano pressupõe que a Reabilitação passe a fazer parte das prioridades de planeamento e políticas de saúde que envolvem toda a cadeia de cuidados, desde a promoção da saúde e prevenção primária até à vida com uma participação ativa na sociedade. Naturalmente, as recomendações baseiam-se em pressupostos relacionados com a importância e as atuais necessidades em cuidados de Reabilitação, que devem orientar o modelo de organização dos cuidados de reabilitação. A sua implementação requer sempre respostas orientadas pelas necessidades de saúde da população, a garantia de equidade no acesso e sobretudo a existência de recursos em todos os níveis de cuidados de forma integrada, o que é essencial para a obtenção de ganhos em saúde.
A nossa realidade tem assimetrias de organização e de recursos técnicos e humanos, pelo que o plano deve considerar as especificidades regionais e contar com a participação de especialistas nas diferentes fases e problemáticas das consequências das doenças, que aliem o conhecimento e experiência clínica, às recomendações técnico-científicas internacionais.
A organização dos cuidados de Reabilitação é um processo dinâmico e deve adaptar-se às alterações do modelo organizativo do sistema de saúde. Neste aspeto, a criação das Unidades Locais de Saúde (ULS) representa um momento para redefinir a organização da Reabilitação nos diferentes níveis de cuidados, incluindo os Cuidados de Saúde Hospitalares, onde se incluem os Serviços de MFR, os Centros Especializados de Reabilitação, a Rede Nacional de cuidados Continuados Integrados e os Cuidados de Saúde Primários de forma faseada, integrada e articulada.
A sociedade civil pode ter um papel crucial no desenvolvimento das condições para a implementação deste plano, contribuindo ativamente para que ele seja mais equitativo, acessível e sustentável. Em primeiro lugar deve haver uma campanha de sensibilização e consciencialização sobre importância da Reabilitação e dos direitos das pessoas que necessitam de cuidados de Reabilitação. A mobilização da população, a par com o trabalho de associações de doentes e familiares e outras organizações não governamentais, é uma das formas para promover uma mudança da agenda política. A Reabilitação é um direito que deve estar garantido para todos. Há também outras possibilidades como a participação em consultas públicas, a colaboração com instituições de saúde, o envolvimento em iniciativas de âmbito comunitário desenvolvidas por instituições de saúde e autarquias. O testemunho de quem teve um processo de reabilitação adequado e do impacto que esses cuidados tiveram na recuperação e modificação do estado de saúde, é a melhor forma de monitorizar a implementação do plano.
HN – O plano propõe uma reorganização dos cuidados de reabilitação a nível nacional. Quais são as principais mudanças que se pretendem implementar?
RN – A principal mudança é o reconhecimento da importância da Reabilitação para a saúde das pessoas, isto é trazer a Reabilitação para a primeira linha de cuidados de saúde. Já não é aceitável que tenhamos os melhores tratamentos médicos e cirúrgicos para uma diversidade de doenças e que estes não se acompanhem do mais adequado programa de reabilitação que permita uma melhor recuperação e uma vida com qualidade.
No Plano definimos como prioridades as áreas onde se identificam mais problemas e dificuldades que comprometem o acesso aos cuidados de reabilitação, relacionadas com as instalações e recursos humanos, a gestão da transição e continuidade de cuidados e as questões relacionadas coma reintegração, participação, promoção da saúde e vida na comunidade.
Para cada área de intervenção estratégica são apresentados os principais problemas e falhas identificados e propostas para a sua resolução, que deverão ser, posteriormente, trabalhadas em detalhe para preparar a concretização da sua implementação da forma mais adequada.
HN – Como a SPMFR pretende garantir a acessibilidade aos cuidados de reabilitação para todas as camadas da população?
RN – O acesso aos cuidados de Reabilitação é um direito universal consagrado pela Carta das Nações Unidas. A cobertura universal de saúde implica que todas as pessoas tenham acesso, sem discriminação, aos serviços de saúde necessários para o tratamento, a promoção, a prevenção, a reabilitação e os cuidados paliativos.
Segundo o Plano Nacional de Saúde 2021-2030, a extensão da cobertura de cuidados de saúde em Portugal, em 2019, foi estimada em 61%, encontrando-se abaixo da média da OCDE (74%), sendo especialmente baixa nos cuidados médicos ambulatórios, incluindo os cuidados de reabilitação.
A OMS defende que a reabilitação deve ser alargada a todos os níveis de saúde, assegurando a
disponibilidade e acessibilidade a cuidados de reabilitação atempados, acessíveis e utilizáveis por pessoas com incapacidade; assim como defende o desenvolvimento de estratégias baseadas
na comunidade, que permitam que a reabilitação chegue a zonas remotas e de difícil acesso, implementando simultaneamente estratégias centradas na pessoa e centros especializados com
programas para doentes com quadros mais complexos.
Algumas medidas a implementar passam pela sensibilização dos profissionais de saúde para a necessidade de cuidados de reabilitação precoces, promovendo uma melhor e mais rápida referenciação para os Serviços de MFR, o reforço das equipas de reabilitação em hospitais carenciados, promovendo a fixação de profissionais através de incentivos, o desenvolvimento de novas tipologias de consultas e de cuidados de Reabilitação (teleconsulta, telereabilitação, hospital de dia, cuidados domiciliários), a identificação e formalização de um grupo de patologias para tratamento prioritário em função da sua gravidade, da incapacidade resultante e do impacto funcional. É importante também definir tempos de resposta às diferentes prioridades e tipologias de cuidados.
HN – Que medidas estão previstas para melhorar a formação e a capacitação dos profissionais na área da reabilitação?
RN – As equipas de reabilitação são o motor dos cuidados de reabilitação, pelo que a sua constituição multiprofissional é um aspeto de crítica importância. Estas equipas devem incluir os profissionais da área da reabilitação, organizados segundo o modelo da OMS: médico fisiatra, que assume a coordenação da equipa, outros médicos conforme as necessidades específicas do doente (medicina interna, ortopedia, neurocirurgia, neurologia, psiquiatria, etc.), enfermeiro de reabilitação, terapeuta da fala, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, psicólogo/neuropsicólogo, nutricionista, assistente social, entre outros.
Existe um défice de formação especializada e de diferenciação nas equipas de reabilitação. A educação e formação dos profissionais de saúde, tanto de base como contínua, deve ser de qualidade e orientada para as questões da deficiência e incapacidade, e incluir competências de comunicação eficazes.
É fundamental também garantir a organização e o cumprimento dos conteúdos funcionais de cada profissão, em complementaridade com a restante equipa, sendo obrigatório o papel do médico fisiatra no diagnóstico, na avaliação clínica e funcional, na prescrição terapêutica, no desenho, supervisão e coordenação dos programas de reabilitação, de recapacitação, e de paliação executados pela equipa de reabilitação.
Um outro aspeto importante é criar modelos de avaliação de resultados para a atividade multiprofissional e multidisciplinar da MFR no internamento e no ambulatório.
HN – O que a SPMFR considera essencial para garantir a continuidade dos cuidados de reabilitação entre os diferentes níveis de assistência?
RN – A gestão do circuito ou jornada dos doentes, desde o hospital até à comunidade, promovendo os melhores e mais adequados cuidados de transição e continuidade do processo de reabilitação, é uma atividade complexa e com inúmeras falhas. Todos os doentes devem ter um plano documentado de reabilitação para continuidade de cuidados após a alta hospitalar.
O processo de reabilitação não deve ter interrupções e a continuidade deve estar assegurada sempre que há transição de cuidados, como quando o doente tem alta do hospital para casa ou é referenciado para um centro especializado. É imprescindível criar orientações clínicas para a referenciação para a MFR como área da saúde, inicialmente com carater obrigatório através da consulta médica de MFR e de acordo com as patologias, estados e níveis funcionais ou condições de saúde. Para garantir uma adequada gestão da transição de cuidados, é importante a inclusão de médico fisiatra e de outros profissionais da equipa de reabilitação nas Equipas de Gestão de Altas, assim como a criação de vias preferenciais de referenciação para as estruturas da comunidade, incluindo o setor convencionado e/ou privado que atualmente têm um peso importante, mas, simultaneamente, promover a criação de estruturas de reabilitação e equipas completas de reabilitação nos Centros de Saúde, coordenadas por médicos fisiatras (próprios ou provenientes das equipas hospitalares).
HN – Como o plano aborda a transição dos pacientes do hospital para a comunidade e quais as estratégias para evitar lacunas nos cuidados?
RN – Como já referi, na transição para a comunidade, com a carência generalizada de recursos de Reabilitação nos Cuidados de Saúde Primários, o problema da continuidade de cuidados revela-se ainda mais grave, quer em termos de estruturas e equipamentos, quer em recursos humanos adequados para dar continuidade aos programas de reabilitação. O Setor Convencionado representa uma intervenção comunitária fundamental, mas está sobrelotado e muitas vezes a resposta não é temporalmente adequada à continuidade de cuidados após a alta hospitalar ou de centro especializado e não tem, na maioria das instituições, equipas organizadas com a diferenciação apropriada para a algumas patologias mais graves. Por outro lado, os Centros de Saúde têm predominantemente profissionais da valência técnica de fisioterapia, quase sempre não organizada, e faltam recorrentemente valências como o treino de comunicação, o treino de deglutição e a reabilitação cognitiva. O modelo a implementar brevemente de Unidades Locais de Saúde poderá favorecer a melhor articulação entre as equipas hospitalares e dos centros de saúde, assim como implementar modalidades de tratamento como a telereabilitação.
Na perspetiva da vida na comunidade é evidente a dificuldade no acompanhamento e seguimento dos doentes ao longo da vida, assim como a definição de estratégias de promoção da participação social ativa e reintegração profissional. Além do doente, há que considerar a família, amigos e outras pessoas que prestam cuidados e apoio, e cuja qualidade de vida e atividades socioprofissionais também são potencialmente afetadas numa situação de doença. E isso inclui doentes integrados nos seus domicílios, mas também abrange aqueles que vivem em residências institucionais.
As equipas de acompanhamento devem sempre abordar questões com potencial impacto na vida dos doentes, como por exemplo a atividade sexual e a condução automóvel. A vida na sociedade deve incluir também momentos de partilha de experiências e atividades com outros doentes. É fundamental apoiar e informar os doentes sobre associações de doentes e familiares/cuidadores.
HN – De que forma a reabilitação pode contribuir para a redução dos custos de saúde a nível nacional?
RN – Hoje discutimos o que custa não reabilitar um doente, trazendo o foco para o investimento necessário que tem de ser feito para garantir a reabilitação de quem precisa.
Está demonstrado o perfil favorável de custo-efetividade da Reabilitação na redução da despesa geral em cuidados de saúde, com diminuição do tempo de internamento hospitalar, das complicações e sequelas e seu impacto, da necessidade permanente de cuidados, contribuindo para uma reintegração na sociedade da pessoa que sofreu uma incapacidade, incluindo a reintegração laboral.
Para além disso, a Reabilitação é eficaz na redução da sobrecarga da incapacidade e na potenciação das oportunidades de vida para os indivíduos incapacitados e os seus custos são habitualmente inferiores aos que teriam de ser assumidos pelos serviços de saúde caso não se proporcionassem tais serviços.
De mais difícil mensuração, mas sendo o custo mais relevante, é o impacto que o investimento na Reabilitação tem na vida (com qualidade) dos doentes e o seu bem-estar físico, psicológico e social.
HN – Quais são os principais desafios que a SPMFR antecipa na implementação do Plano Nacional de Reabilitação?
RN – O primeiro desafio é conseguir que a Reabilitação faça parte das prioridades da estratégia nacional para a saúde, do planeamento às políticas de saúde a implementar na próxima década. O segundo desafio é que esta mudança de paradigma requer investimento e canalização de recursos financeiros para melhorar uma rede de cuidados que é funcionante, mas tem carências que devem ser colmatadas para chegar a todos os doentes que precisam de cuidados de Reabilitação.
Existe uma grande assimetria nas infraestruturas e equipamento de reabilitação entre os serviços hospitalares, centros especializados e unidades dos cuidados de saúde primários. Teremos de criar e alargar a rede de estruturas nas diferentes tipologias de cuidados. Terá também de existir um enorme investimento em recursos humanos para dotar as equipas de reabilitação com todos os profissionais em hospitais, centros especializados e na comunidade. Estas alterações devem ser acompanhadas por um modelo organizativo articulado e abrangente que favoreça o carácter integrador e transversal da área da saúde Reabilitação.
HN – Como a SPMFR vê a evolução da Medicina Física e de Reabilitação em Portugal nos próximos anos?
RN – Na iniciativa Reabilitação 2030, a OMS faz um apelo mundial para dar resposta às necessidades significativas de Reabilitação em todo o mundo, salientando a necessidade de um acesso equitativo a uma reabilitação com qualidade, como uma das ações prioritárias para reforçar os sistemas de saúde.
Assistimos hoje a um aumento da necessidade de cuidados de Reabilitação como resultado da evolução demográfica global, com um rápido envelhecimento da população e um consequente
aumento de problemas de saúde física e mental, particularmente no contexto nacional, uma vez que Portugal é o segundo país da União Europeia com maior índice de envelhecimento e,
o quarto do mundo com maior proporção de população idosa. Existe, além disso, um aumento da expressão das doenças crónicas, nomeadamente as que se traduzem por um significativo compromisso da funcionalidade, atividade e participação, com destaque, pela sua prevalência, nas doenças respiratórias, osteoarticulares e neurológicas.
A organização dos cuidados de Reabilitação deve acompanhar esta evolução. A Medicina Física e de Reabilitação (MFR), aqui entendida como especialidade médica e área da saúde, define e prioriza que as boas práticas de Reabilitação devem assegurar que o indivíduo incapacitado se encontre no centro de uma abordagem multidisciplinar/multiprofissional e que sua intervenção é mais abrangente e holística, segundo o modelo biopsicossocial, privilegiando as consequências da doença, nomeadamente as que comprometem a autonomia e a funcionalidade ao nível individual (atividade) e num plano social, familiar e comunitário (participação).
Assistimos nos últimos 30 anos a mudanças substanciais na organização dos cuidados de reabilitação, com a implementação de uma diversidade crescente de áreas de intervenção que reflete o desenvolvimento científico e tecnológico.
A Reabilitação deve assumir o seu papel nuclear na saúde e a estratégia para o seu desenvolvimento futuro pressupõe a implementação de políticas de saúde, que envolvam toda a cadeia de cuidados de reabilitação, desde a promoção da saúde e prevenção primária até à vida na comunidade.
Entrevista de Antónia Lisboa
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