
A Indústria da Quase Morte
Há uma realidade que a sociedade portuguesa evita discutir de forma séria, não por falta de sinais e de tendências, mas porque o tema é moralmente incómodo, potencialmente polémico e politicamente explosivo. Trata-se do prolongamento artificial da vida de muitos idosos em situação de dependência extrema, frequentemente sem consciência, sem autonomia e sem qualquer hipótese realista de recuperação, em estados clínicos que se aproximam de um estado vegetativo ou de demência avançada. O silêncio em torno deste tema não é inocente: há interesses económicos instalados, custos públicos e familiares muito elevados e uma recusa coletiva em distinguir vida humana de mera sobrevivência biológica. A própria legislação portuguesa já reconhece, ainda que de forma limitada, que nem tudo o que é tecnicamente possível é humanamente desejável, ao consagrar no testamento vital o direito a recusar meios invasivos de suporte artificial de funções vitais e medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte.
Comecemos pelos números, porque é neles que a discussão também precisa de ter lugar, ainda que com alguma prudência, porque este também é o campo do coração: em Portugal, as estimativas apontam para centenas de milhares de pessoas com demência, sendo a Doença de Alzheimer responsável por uma larga maioria dos casos. Alguns relatórios internacionais sugerem que Portugal se encontra acima da média de países comparáveis na prevalência de demência entre a população idosa, e as projeções demográficas apontam para um aumento muito significativo do número de doentes nas próximas décadas, acompanhando o envelhecimento da população. Mesmo sem discutir aqui o valor exato de cada projeção (coisa que deixo aos peritos), é claro que o universo potencial de pessoas em situação de grande dependência cognitiva e funcional vai crescer de forma sustentada, o que torna a discussão sobre limites terapêuticos uma questão estrutural e não apenas teórica.
O Serviço Nacional de Saúde consome hoje uma fatia muito relevante do orçamento público, na ordem de vários pontos percentuais do PIB, e sabe‑se que uma parte substancial dessa despesa é absorvida por faixas etárias mais avançadas, em especial acima dos 75 anos. Um idoso em estado de dependência total ou em situação clínica muito degradada pode representar para o SNS custos mensais significativos em cuidados diretos (medicação crónica, consultas, internamentos repetidos, episódios de urgência, exames e acompanhamento continuado) que facilmente atingem milhares de euros por ano. Para além disso, muitos destes cuidados prolongam‑se por anos sem um ganho funcional ou cognitivo relevante, o que levanta a questão de saber até que ponto faz sentido manter intervenções intensivas quando não existe hipótese realista de recuperação. Esta situação contrasta com o direito já consagrado de recusar tratamentos experimentais ou de interromper a participação em programas de investigação e ensaios clínicos, mesmo que previamente autorizados, reconhecendo-se aí o primado da vontade do doente e o direito a não ser sujeito a intervenções desproporcionadas.
Se, por hipótese conservadora, considerarmos que existem dezenas de milhares de idosos em situações de dependência extrema prolongada, o custo direto anual para o SNS e para o sistema de proteção social ascende facilmente a centenas de milhões de euros. Mesmo admitindo uma grande margem de incerteza quanto ao número exato de pessoas e aos custos médios por caso, é evidente que estamos perante um encargo estrutural, permanente e crescente. Muitas destas situações são sustentadas por intervenções médicas que o próprio cidadão poderia legalmente recusar se tivesse expressado previamente a sua vontade através de um testamento vital, incluindo a recusa de determinados suportes artificiais de vida ou de transfusões de sangue, possibilidades que a lei já contempla em termos gerais.
A estes custos diretos acrescem os custos da institucionalização. Um idoso altamente dependente num lar ou numa unidade de cuidados continuados com condições minimamente dignas representa, na prática, uma despesa mensal que pode ultrapassar facilmente o valor de muitas pensões, obrigando as famílias a comparticipações significativas. Em situações de longa duração (10, 15 ou mais anos), o custo acumulado por pessoa pode atingir centenas de milhares de euros em despesas de alojamento e cuidados, sem contar com outros encargos associados. Quando multiplicamos estas ordens de grandeza por várias dezenas de milhares de casos, torna-se evidente que existe um verdadeiro modelo económico ancorado no prolongamento da sobrevivência biológica, mesmo quando o próprio ordenamento jurídico reconhece o direito a privilegiar cuidados paliativos, medidas de conforto, hidratação e alimentação proporcionais e controlo eficaz da dor, em vez da obstinação terapêutica.
Este modelo alimenta uma cadeia alargada de interesses legítimos, mas nem sempre questionados: indústria farmacêutica centrada em polimedicação crónica, lares e unidades de cuidados continuados, serviços médicos e de enfermagem permanentes, fisioterapia e outros cuidados de saúde, empresas de dispositivos e consumíveis médicos e toda uma máquina administrativa que gere estas situações. Tudo isto gera faturação, emprego e investimento, mas importa dizê‑lo com clareza: na maioria destes casos não se está a “devolver vida” a quem a perdeu, está-se sobretudo a manter corpos biologicamente ativos quando a pessoa, enquanto sujeito consciente e relacional, já não está presente, está-se a vegetalizar uma parte significativa (e crescente) da população a pretexto de “promover a vida” mesmo quando esta, vegetalizada, já não faz sentido. O próprio facto de o sistema jurídico admitir o direito a recusar tratamentos e a interromper meios artificiais em determinadas condições mostra que há um limite reconhecido; o problema é que, na ausência de uma declaração prévia do doente, o padrão continua a ser “fazer tudo”, mesmo quando “tudo” significa apenas prolongar uma situação irreversível.
Mais graves ainda são os custos invisíveis, aqueles que não aparecem no Orçamento do Estado nem nas estatísticas oficiais. Os cuidadores informais – quase sempre familiares – suspendem a própria vida durante anos, reduzem ou abandonam carreiras, diminuem contribuições para a Segurança Social, perdem rendimento, desenvolvem problemas físicos e psicológicos e, em muitos casos, acabam eles próprios em situação de fragilidade. Há quem perca uma década ou mais de vida produtiva para cuidar de um familiar em estado avançado de dependência. Quando o idoso em situação irreversível acaba por falecer, o cuidador está frequentemente exausto, empobrecido e envelhecido, sem rede de apoio e com pouca capacidade de recomeço. Cria-se assim um ciclo perverso em que o prolongamento artificial da vida de uns destrói silenciosamente a qualidade de vida de outros, apesar de a lei já prever que, quando se decide interromper meios artificiais de suporte, a pessoa deve ter acesso a cuidados paliativos adequados, apoio psicológico e, se assim o desejar, assistência religiosa e a presença de alguém por si designado.
Apesar deste cenário, persiste no espaço público e mediático uma narrativa-espectáculo de celebração acrítica da longevidade extrema, em que casos de pessoas muito idosas em lares, já sem consciência de si, são apresentados como “histórias de sucesso” apenas pelo número de anos vividos (“É a mulher mais velha de Portugal. Maria da Conceição fez, esta segunda-feira, 113 anos e o dia foi de festa em São Brás de Alportel”). Uma existência reduzida a funções biológicas mínimas, sem consciência, relação, vontade ou experiência, não corresponde ao que muitos entendem por vida com sentido. Um estado vegetativo permanente ou uma demência em fase terminal não cumprem qualquer dos critérios que associamos a uma vida humana plena, mesmo que sejam mantidos por medicação, hidratação artificial e tecnologia médica avançada.
O aspecto mais perturbador é que tudo isto acontece, na maioria das vezes, sem que a própria pessoa tenha podido decidir sobre o que aceitaria ou recusaria nessas circunstâncias. Quem entra em estado vegetativo ou em demência avançada já não decide. As decisões passam para familiares e profissionais, muitas vezes sob enorme pressão emocional, social e jurídica, numa lógica de “fazer tudo” mesmo quando esse “tudo” já não acrescenta nada em termos de qualidade de vida, apenas adia o desfecho inevitável. A lei oferece instrumentos para evitar este cenário, nomeadamente o testamento vital e a possibilidade de designar um procurador de cuidados de saúde, mas a sua utilização continua muito limitada. Falta informação, falta apoio para preencher estes documentos e falta, sobretudo, a coragem coletiva de admitir que a recusa de tratamentos desproporcionados pode ser uma forma de respeito pela pessoa e pela sua dignidade.
É por isso que esta discussão não pode continuar a ser evitada. Manter, durante muitos anos, pessoas em estados irreversíveis de ausência de consciência não honra necessariamente a vida, não melhora a sociedade e não é eticamente neutro. Serve interesses económicos, consome recursos que poderiam ser dirigidos para cuidados verdadeiramente terapêuticos ou preventivos e transfere sofrimento para famílias inteiras. A existência do testamento vital demonstra que o legislador reconhece o problema e admite o direito a colocar limites, mas falta coragem social e política para assumir plenamente as implicações desse reconhecimento nas práticas clínicas, nos protocolos institucionais e na organização dos cuidados.
A conclusão é exigente, mas não precisa de ser dramática: todos devíamos ponderar seriamente a elaboração de um testamento vital, declarando, de forma informada, que tipo de intervenções aceitamos ou recusamos em situações de irreversibilidade, qual o limite que colocamos a meios invasivos de suporte artificial de funções vitais e que papel queremos atribuir aos cuidados paliativos no fim de vida. A eventual inclusão de opções como a eutanásia medicamente assistida é, hoje, objeto de debate e de regulamentação própria, e não deve ser confundida com o simples exercício do direito a recusar tratamentos desproporcionados.
Longe de ser um gesto de desumanidade, trata-se de responsabilidade individual e coletiva, de clarificar preferências para não deixar decisões impossíveis nas mãos de terceiros em momentos de crise.
Continuar a afirmar que se está a “defender a vida” enquanto, na prática, se prolongam de forma industrial estados de morte prolongada é uma forma de dissonância moral. Quem se recusa a discutir este tema não está necessariamente a proteger valores; muitas vezes está apenas a recusar olhar de frente para a tensão entre números, lei e realidade concreta de milhares de pessoas e famílias, adiando uma conversa que o envelhecimento acelerado da sociedade portuguesa tornará cada vez mais urgente.
Rui Martins, Iniciativa Cidadãos pela Cibersegurança (CpC)






