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Em 2026, o nosso desejo: Enfermeiros Especialistas em Saúde Mental nos Cuidados de Saúde Primários

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A atual lei da saúde mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de julho) estabelece, em Portugal, um modelo de saúde mental centrado na pessoa e nos cuidados na comunidade, respondendo ao cenário urgente de um país com a mais elevada prevalência de sintomas psicológicos da Europa (23%), dos quais 60% não têm acesso a cuidados. No entanto, a efetiva implementação desta lei nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), a conhecida porta de entrada no SNS, enfrenta uma contradição. Enquanto a lei promove a integração, a ausência de uma engenharia de implementação e fragilidades estruturais dos CSP arriscam perpetuar a distância entre direitos formais e acessibilidade real dos utentes. O principal obstáculo não é apenas a escassez de recursos, mas uma falha sistémica de articulação e governança.

A análise crítica da Lei n.º 35/2023 revela uma desarticulação entre princípios e operacionalização. Apesar da mesma prever cuidados num ambiente o menos restritivo possível e assegurados por equipas multidisciplinares, carece de indicadores claros para a sua materialização nos CSP, remetendo essa tarefa para um futuro “diploma próprio”. Esta lacuna reflete um histórico de desfasamento no cumprimento dos objetivos, agravado por um modelo de financiamento que privilegia indicadores de saúde física, criando um desincentivo económico direto à integração da saúde mental. Tal confirma o risco da legislação não ser acompanhada pelos mecanismos financeiros necessários. A realidade dos CSP é marcada por carências críticas de recursos humanos especializados. A Entidade Reguladora da Saúde confirma escassez ou inexistência de recursos humanos na área da psiquiatria nos CSP, com cobertura por psicólogos muito aquém do rácio recomendado.

Apenas 45% dos médicos de família reportam formação específica em saúde mental, o que compromete a deteção precoce e a prevenção de doença mental bem como a promoção de saúde mental. É precisamente aqui que o DL n.º 113/2021 oferece um enquadramento operacional de relevância. Este diploma organiza os serviços de saúde mental com base em equipas multidisciplinares, nas quais a enfermagem é explicitamente integrada. Define ainda a participação de representantes da enfermagem nos Conselhos de Saúde Mental (nacional, regionais e locais), assegurando que a profissão contribui para a definição de políticas. O diploma sublinha a continuidade de cuidados, a articulação entre níveis de cuidados e uma abordagem centrada na recuperação e na comunidade, princípios alinhados com a Lei 35/2023. No entanto, uma lacuna evidente ainda persiste e concerne à não integração explícita e estratégica dos EESMP nos CSP.

Estes enfermeiros especialistas, com formação avançada, podem ser gestores de caso, disponibilizar intervenções psicoterapêuticas, realizar consultas de enfermagem de saúde mental, fazer acompanhamento na comunidade e servir de elo entre o utente, a família, o médico de família e os serviços especializados. A sua presença permitiria mitigar a pouca disponibilidade de médicos de família (MGF), operacionalizando competências, para as quais alguns MGF também não estão preparados, e fazendo a articulação prevista no DL 113/2021. Sem os EESMP, a lei de saúde mental arrisca criar um SNS a duas velocidades em que há um circuito para crises agudas e um abandono tácito da continuidade de cuidados para a maioria dos utentes nos CSP, perpetuando a fragmentação já identificada no Plano Nacional de Saúde Mental 2023-2030. O DL 113/2021 já fornece parte do arcabouço operacional, nomeadamente ao legitimar e estruturar o papel do enfermeiro especialista nas equipas comunitárias.

A subutilização estratégica dos Enfermeiros Especialistas em Saúde Mental e Psiquiátrica (EESMP) nos CSP representa, assim, uma oportunidade crítica perdida para a materialização do legislado e do direito à saúde, e também à saúde mental, constitucionalmente consagrado. Esta visão é corroborada pelo recente relatório da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental em 2024, que sublinha a importância da construção de um modelo colaborativo de gestão clínica, estratificação da prestação de cuidados e qualificação da referenciação entre os CSP e os serviços locais de saúde mental, realçando a necessidade de equipas multidisciplinares para operacionalizar essa integração.

Para que a recente legislação sobre saúde mental não se limite a ser uma estrutura normativa sem impacto prático, é fundamental que sejam implementadas medidas estratégicas que dialoguem e se articulem com o diploma legislativo anterior. Primeiro, é urgente desenvolver a regulação prevista no artigo 6.º da Lei 35/2023, transformando-o num plano de ação concreto com metas e integrado na contratualização dos CSP, redefinindo incentivos para resultados em saúde mental. Segundo, o reforço de recursos humanos deve ser inteligente e dar prioridade à integração efetiva dos EESMP nos CSP, tal como a lógica das equipas multidisciplinares do DL 113/2021 prevê. Isto implica criar vagas específicas na carreira e definir claramente o seu papel como elos da continuidade de cuidados na comunidade. Finalmente, é importante investir numa plataforma digital partilhada entre CSP e serviços especializados, como ferramenta ativa de referenciação e partilha de planos de cuidados, na qual os EESMP seriam atores-chave. Só com esta tríade de plano operacional, recursos humanos especializados a trabalhar em multidisciplinaridade e articulação será possível concretizar a arquitetura legislada e responder à crise de saúde mental em Portugal.

São necessárias a coragem política e a visão estratégica já em 2026, pois a saúde mental não pode continuar à espera.

Fonte: Lifestyle Sapo

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