Atualidade

O Paradoxo Português: Mais Médicos Não Significa Melhor Saúde

Publicidade - continue a ler a seguir

Portugal supera a média da OCDE em número de médicos, uma vantagem que esconde uma fragilidade crítica. A escassez persistente de enfermeiros compromete a eficácia dos cuidados, sobrecarrega o sistema e expõe um desequilíbrio perigoso na equipa de saúde nacional

A fotografia instantânea da força de trabalho em saúde em Portugal, capturada pelo relatório “Health at a Glance 2025” da OCDE, revela um retrato paradoxal. Por um lado, o país exibe um indicador robusto: conta com 5,8 médicos por cada mil habitantes, um rácio que se posiciona confortavelmente acima da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Este dado, à primeira vista, sugere uma nação bem dotada de recursos médicos de alto nível. No entanto, esta aparente vantagem esconde uma fragilidade estrutural profunda e persistentemente negligenciada. Do outro lado do espectro, a densidade de enfermeiros, fixada em 7,6 por mil habitantes, permanece teimosamente abaixo do padrão da OCDE, que é de 9,2. Esta assimetria não é um mero desvio estatístico; é um desequilíbrio crítico na composição das equipas de saúde que ameaça a sustentabilidade, a eficiência e, em última análise, a qualidade dos cuidados prestados à população portuguesa.

A abundância relativa de médicos é um dado que deve ser lido com a máxima cautela. Como o próprio relatório adverte, o valor reportado inclui todos os médicos com licença para exercer, o que pode inflacionar ligeiramente o número de profissionais verdadeiramente ativos no Sistema Nacional de Saúde (SNS). Este fenómeno, também observado em países como a Grécia, significa que uma parte destes médicos poderá estar reformada, a trabalhar exclusivamente no setor privado, no estrangeiro, ou em funções não clínicas. Ainda assim, é inegável que o país formou um número substancial de médicos nas últimas décadas, um investimento que se reflete neste indicador. O problema, contudo, reside no outro lado da equação – um lado cujo défice anula parte significativa dos benefícios deste sucesso.

Com apenas 7,6 enfermeiros por mil habitantes, Portugal não só fica aquém da média da OCDE (9,2), como se situa a uma distância abismal de países líderes como a Suíça ou a Noruega, onde este valor ultrapassa consistentemente os 15 enfermeiros por mil habitantes. Esta disparidade coloca Portugal numa posição de clara desvantagem na construção de um sistema de saúde moderno e resiliente. A consequência mais imediata deste desequilíbrio é a sobrecarga insustentável imposta aos enfermeiros em exercício. Com equipas reduzidas, estes profissionais enfrentam níveis de burnout elevadíssimos, jornadas extenuantes e uma pressão constante que compromete o seu bem-estar e a sua capacidade de prestar cuidados compassivos e seguros.

Para além do impacto humano nos profissionais, a escassez de enfermeiros corrói a eficácia clínica e a segurança do doente. Os enfermeiros são peças fundamentais e insubstituíveis em domínios críticos dos cuidados de saúde. São eles a espinha dorsal da gestão de doenças crónicas, como a diabetes e a hipertensão, acompanhando os doentes a longo prazo e promovendo a adesão à terapêutica. São agentes primordiais na educação do doente e da família, capacitando-os para o autogestão da sua condição. Nos cuidados continuados e paliativos, o seu papel é absolutamente central, garantindo dignidade e conforto. No ambiente hospitalar, são os vigilantes na linha da frente, detetando precocemente complicações e assegurando a continuidade dos cuidados 24 horas por dia.

A sua ausência ou insuficiência numérica força uma redistribuição disfuncional de tarefas. Muitas atividades para as quais os enfermeiros são especificamente formados – como a administração de medicação, os curativos complexos, a monitorização vital contínua e a coordenação de cuidados – acabam, em contextos de desespero, por ser absorvidas pelos médicos. Esta sobrecarga sobre a classe médica desvia-os das suas funções de diagnóstico, tratamento e decisão clínica complexa, reduzindo a eficiência global do sistema e gerando frustração em ambas as profissões. A equipa multidisciplinar, considerada o modelo ideal de prestação de cuidados, vê-se impossibilitada de funcionar plenamente quando um dos seus pilares está severamente enfraquecido.

As raízes deste défice crónico são multifacetadas, mas a mais premente é a hemorragia de talento. A emigração de enfermeiros portugueses para outros países europeus, como o Reino Unido, a França e a Suíça, tornou-se um fenómeno estrutural. Atraídos por salários significativamente mais elevados, melhores condições de trabalho, horários previsíveis e oportunidades claras de progressão na carreira, milhares de enfermeiros formados em Portugal optam por levar a sua competência e dedicação para fora do país. O investimento público na sua formação reverte, assim, em benefício direto de outros sistemas de saúde, enquanto o SNS enfrenta vagas que não consegue preencher. Esta fuga não é apenas uma questão quantitativa; representa uma perda de experiência e de capital humano de valor incalculável.

Resolver este desequilíbrio histórico exige, portanto, uma estratégia dupla e urgente. Num primeiro plano, é imperativo continuar a expandir de forma sustentada a capacidade de formação, garantindo um número suficiente de vagas nas escolas de enfermagem para fazer face às necessidades presentes e futuras. Contudo, esta medida é totalmente inócua se não for acompanhada por uma transformação profunda das condições de trabalho. O aumento salarial é uma peça fundamental, mas não a única. É crucial oferecer carreiras com percursos de desenvolvimento e especialização atrativos, garantir horários que permitam a conciliação entre a vida profissional e familiar, e providenciar ambientes de trabalho seguros e com os recursos materiais e humanos adequados.

Em suma, o caso português serve como um alerta para outros países: um elevado número de médicos é um recurso valioso, mas não é uma panaceia. A verdadeira força de um sistema de saúde mede-se pela robustez e integração de todos os seus profissionais. Enquanto Portugal não abordar de forma decisiva e estrutural a escassez de enfermeiros, o seu SNS continuará a operar com um travão de mão puxado, incapaz de atingir o seu potencial máximo e de responder com a qualidade e a humanidade desejadas às necessidades de saúde dos portugueses. O caminho para a sustentabilidade passa, inevitavelmente, por valorizar, reter e atrair aqueles que são, comprovadamente, o coração e a alma dos cuidados de saúde.

Fonte: OCDE (2025), Health at a Glance 2025: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris. https://doi.org/10.1787/8f9e3f98-en

NR/OCDE/HN

Outros artigos com interesse:

Source link

Publicidade - continue a ler a seguir




[easy-profiles template="roundcolor" align="center" nospace="no" cta="no" cta_vertical="no" cta_number="no" profiles_all_networks="no"]

Portalenf Comunidade de Saúde

A PortalEnf é um Portal de Saúde on-line que tem por objectivo divulgar tutoriais e notícias sobre a Saúde e a Enfermagem de forma a promover o conhecimento entre os seus membros.

Artigos Relacionados

Deixe um comentário

Publicidade - continue a ler a seguir
Botão Voltar ao Topo