
Bastonário dos Médicos: “É impossível melhorar o SNS cortando nas despesas”
O bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, é duro com o atual Governo: diz que nada fez para inverter a “rampa descendente” em que tem estado a Saúde, que falta “sensibilidade” à ministra e que não se podem “diabolizar” os médicos tarefeiros.
Em entrevista à Renascença e ao Público, deixa claro que “racionalizar despesa” no SNS apenas significa prestar menos cuidados aos utentes.
Na próxima semana vai reunir-se com a associação que representa os médicos tarefeiros. Já pensou no que lhes vai dizer?
A primeira coisa que vou fazer é ouvir, pois trata-se de um problema que não é apenas uma questão remuneratória. É uma questão de enorme complexidade, que começou há 15 anos, na altura da troika, quando o modelo da prestação de serviços foi potenciado e muitos médicos foram pressionados e incentivados a deixarem o seu contrato de trabalho com o hospital para passarem a ser prestadores de serviços. O motivo era simples: estávamos sob a intervenção da troika e era necessário dar a ideia de que tínhamos menos funcionários públicos. Essa figura manteve-se e acabou por crescer ao longo dos anos. Nenhum Ministério da Saúde quis resolver o problema — bem pelo contrário. E, de facto, houve uma desregulação do mercado. Hoje, os prestadores de serviços têm um papel absolutamente essencial.
Conhece o diploma que foi aprovado em Conselho de Ministros?
Infelizmente, não conheço o diploma. A Ordem dos Médicos entende que o Serviço Nacional de Saúde deve ter apenas uma figura contratual para os médicos e não múltiplas. Assim, a integração dos médicos prestadores de serviços no Serviço Nacional de Saúde parece-me uma medida que vai no bom sentido. Contudo, tem de haver um período de transição; não pode ser feito de forma brusca, nem à custa da diabolização do prestador de serviços.
A ministra da Saúde não geriu bem esta questão?
Geriu pessimamente desde o início, quando lançou um dedo acusatório sobre os médicos em regime de prestação de serviços, em vez de falar com eles.
E ainda vai a tempo de resolver o problema?
Vamos sempre a tempo, desde que haja boa vontade.
Mas dizia há pouco que não é com a diabolização que se resolve isto. Acha que a ministra diabolizou os médicos tarefeiros?
Tenho visto, nas últimas semanas, uma espécie de dedo acusatório apontado a médicos que, ao longo dos anos, contribuíram para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde em várias áreas, nomeadamente nos serviços de urgência. Temos de tratar deste assunto com enorme sensibilidade e respeito por pessoas que muito deram ao SNS.
Esta ministra ainda é capaz de fazer essas reformas com sensibilidade? Ainda tem condições para isso?
Tem de ter condições para resolver este dossier, como tantos outros. Este é um dossier que tem de ser resolvido com pinças, com muita sensibilidade, com compreensão e com profundo conhecimento do Serviço Nacional de Saúde.
O SNS está refém dos médicos tarefeiros?
Não. O SNS não está refém dos médicos tarefeiros. O SNS precisa de médicos e deve valorizar as pessoas que nele trabalham.
A ameaça de paralisação das urgências por parte dos médicos tarefeiros não é uma chantagem?
Não vejo isso como uma chantagem. Disse que entendia que essa poderia não ser a melhor solução. Foi agora criada uma associação, que recuou nessa intenção de paralisação, e acho isso muito bem, porque tem de haver diálogo.
A ministra anunciou também que vai haver uma via verde para que esses médicos possam regressar ao Serviço Nacional de Saúde. Esta medida é adequada para atrair mais médicos?
Não ouvi essas declarações, mas essa “via verde” não tem, a meu ver, significado concreto. A Ordem dos Médicos apresentou ao Ministério da Saúde e à Assembleia da República um pacote de vinte e cinco medidas para atrair médicos para o Serviço Nacional de Saúde.
E foram bem recebidas?
Foram recebidas. Estas medidas não têm propriamente um grande impacto orçamental, porque a remuneração é importante, mas não é o único fator. Há muitas outras áreas que são fundamentais para os médicos e que poderiam servir de estímulo à sua adesão ao SNS. Assim, se forem adotadas medidas punitivas ou restritivas para os prestadores de serviços, tem de haver também medidas de abertura que facilitem a sua integração no SNS.
O receio geral é que tais medidas afastem os prestadores de serviços do sistema público e os empurrem para o sector privado ou para a emigração. Todos os anos saem do país entre oitocentos e novecentos médicos.
Nos últimos 20 anos, a Ordem dos Médicos inscreveu mais 30 mil médicos. Passámos de 37 mil médicos em 2005 para 68 mil hoje. Em paralelo, o Serviço Nacional de Saúde aumentou os seus efectivos de 22 mil para 32 mil médicos. Ou seja, dos 30 mil novos médicos, o SNS apenas conseguiu reter 10 mil.
E acredita que isso vai acontecer num ano em que o primeiro-ministro já admitiu que não haverá cortes, mas uma “racionalização de recursos”?
Não sei muito bem o que significa “racionalização de recursos”. Acho muito difícil compatibilizar uma diminuição do orçamento, sobretudo no que toca à despesa corrente, com a melhoria do Serviço Nacional de Saúde. É uma equação impossível. Há muitos anos que ouço a expressão mágica da “eficiência na gestão”.
Receia que haja cortes na resposta assistencial? Ou Luís Montenegro está a atirar areia para os olhos das pessoas?
Não acredito que se consiga melhorar o SNS cortando nas despesas. Não acredito nessa teoria e não sou dos que acham que devemos continuar a apertar o orçamento da Saúde — bem pelo contrário. Estou cansado de ouvir falar apenas em números. Temos pessoas que precisam do SNS, que precisam de consultas, que precisam de ser tratadas. É isso que me preocupa.
A resposta do SNS está pior com este Governo?
Não consigo fazer uma avaliação temporal entre governos. O que posso dizer é que, nos últimos 20 anos, a saúde tem estado sistematicamente numa rampa descendente e não vejo que tenha sido atenuada na sua inclinação. Este Governo criou enormes expectativas na área da Saúde — uma espécie de fórmula milagrosa, como se tudo pudesse ser resolvido rapidamente, quando a Saúde é uma área de enorme complexidade. Passados dois anos, nada foi resolvido e, em muitos aspectos, estamos pior.
O plano de emergência não está a resultar?
A tal fórmula milagrosa não é assim tão milagrosa. Caímos na realidade do que é o Serviço Nacional de Saúde. É preciso coragem e reformas, mas sobretudo capacidade de as implementar. Há decisões que são tomadas e nunca são executadas.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, falou de “interesses instalados” e de uma luta contra esses interesses. Referia-se aos interesses corporativos dos médicos?
Não sei que interesses instalados são esses, mas estou perfeitamente disponível para esclarecer tudo o que possa dizer respeito aos médicos. Os médicos são um fator de desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde. Não faz sentido dizer, como se ouviu nas últimas semanas, que o problema está nos profissionais de saúde. Mas que é isto? São os profissionais de saúde que fazem viver o Serviço Nacional de Saúde. É preciso fazer as reformas necessárias, como a da carreira médica.
A Ordem dos Médicos pediu aos colégios de especialidade para reverem os rácios de médicos nas equipas de urgência. Já têm essas propostas?
Ainda não. São propostas técnicas que têm de ser bem analisadas. A Ordem não decide a política de saúde do país; faz recomendações, mas estas não fazem lei. Quem decide a constituição das equipas nos hospitais é o próprio Ministério da Saúde ou a Direcção Executiva. Recentemente, esses rácios já foram revistos na obstetrícia. Nós assumimos a nossa responsabilidade técnica; os dirigentes devem assumir a sua responsabilidade decisória — e muitas vezes isso não acontece.
Como vê as situações de mulheres a terem bebés em ambulâncias, carros, a caminho das maternidades?
Não é obviamente nas ambulâncias, nos carros ou na rua que isto deve acontecer. O SNS tem de ter uma rede adequada de apoio. Preocupa-me muito, e temos de fazer algo nessa área para resolver o problema.
Mas o problema de fundo é a falta de recursos humanos médicos.
Já expliquei que Portugal tem esses recursos; o que falta é tê-los no SNS. Assim, é essencial fazer tudo para contratar os médicos necessários. Se isso não for possível, não posso concordar que haja dois ou três médicos em cada hospital dispersos pelo país.
Portanto, concorda com a concentração de urgências?
Obviamente quero que as grávidas tenham uma resposta segura e de qualidade. Se a contratação de médicos não for suficiente, então é preciso encontrar uma solução alternativa e concentrar os serviços, de modo a garantir equipas completas.
Por que razão a Ordem é tão crítica quanto à possibilidade de os enfermeiros especialistas em saúde materna fazerem a vigilância das grávidas de baixo risco nos centros de saúde?
Recebemos esta semana uma proposta do Ministério da Saúde que estamos a avaliar. Sou defensor das equipas multidisciplinares, em que cada um tem a sua função e o seu papel. A nossa posição será comunicada, em primeira mão, à Ministra da Saúde. A Ordem está perfeitamente tranquila e disponível para participar, desde que haja sempre supervisão médica em todos esses processos.
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