
A inteligência artificial e o emprego em forma de K
A IA é simultaneamente motor de eficiência e causa de instabilidade, acelerando a transição para uma economia onde o valor humano dependerá cada vez mais da capacidade de adaptação e de aprendizagem.
Inspirado no conceito económico de K-shaped recovery (Atwater, 2020), originalmente utilizado para descrever a recuperação desigual das economias após a pandemia de COVID-19, em que alguns setores económicos e grupos sociais prosperaram enquanto outros estagnaram ou entraram em declínio, o impacto da Inteligência Artificial (IA) no mercado de trabalho pode igualmente ser representado como uma ‘evolução em K’, onde certas competências são amplificadas pela IA, enquanto outras se tornam obsoletas. O conceito tem sido adaptado por diversos analistas para descrever o impacto da IA nas competências profissionais e na produtividade (2022–2025), incluindo instituições como a McKinsey, a Harvard Business Review e a Deloitte.
Por exemplo, algumas das demissões já realizadas, outras ainda em curso e outras recentemente anunciadas pela Amazon, UPS e Target evidenciam uma transformação profunda no mercado de trabalho ditada sobretudo pela IA. Tal como ilustra o gráfico da evolução em “K”, a tecnologia está a acentuar a clivagem entre competências que são potenciadas pela IA, aumentando de valor e impulsionando a sua produtividade, e competências que são facilmente substituídas, e são cada vez mais automatizadas pela IA. Desde o lançamento do ChatGPT, as ofertas de emprego das empresas norte-americanas caíram cerca de 32%, afetando sobretudo jovens e funções de entrada, como atendimento e apoio administrativo. Embora muitas empresas usem a IA como argumento para justificar cortes e reestruturações, parte dessas decisões resulta também de pressões económicas, do abrandamento do consumo e da necessidade de simplificar estruturas hierárquicas.
Na Amazon, mais de 40 mil postos de trabalho foram eliminados desde 2022, enquanto a empresa investe fortemente em infraestrutura e serviços de IA, preparando-se para ter menos pessoal em funções tradicionais, mas mais trabalhadores especializados em áreas tecnológicas. A UPS cortou 48 mil empregos, sobretudo ligados ao encerramento de instalações e à automatização de operações logísticas, e a Target reduziu 1800 cargos administrativos, procurando simplificar estruturas e acelerar a transformação digital após um período de vendas estagnadas.
Apesar do impacto negativo da automatização em vários setores, o da saúde surge como uma exceção positiva. Assim, funções como cuidadores e enfermeiros continuam em forte crescimento, já que a empatia e o contacto humano permanecem insubstituíveis. As estimativas do U.S. Bureau of Labor Statistics (2024–2034) antecipam a criação de quase dois milhões de empregos por ano nesta área na próxima década, impulsionada pelo envelhecimento da população e pela necessidade crescente de cuidados personalizados.
Em suma, o mercado de trabalho reorganiza-se gradualmente entre funções eliminadas e funções reforçadas pela tecnologia. A IA é simultaneamente motor de eficiência e causa de instabilidade, acelerando a transição para uma economia onde o valor humano dependerá cada vez mais da capacidade de adaptação e de aprendizagem contínua. A grande questão da próxima década será, portanto, a capacidade de adaptação e requalificação, para que a inovação tecnológica amplie — e não destrua — as oportunidades de trabalho e desenvolvimento humano, garantindo que a inovação tecnológica promova inclusão laboral em vez de exclusão.
No gráfico da “taxa de desemprego nos EUA vs. S&P 500”, observa-se uma correlação inversa tradicional. Quando o desemprego sobe, o mercado acionista tende a cair, ou seja, a evolução da taxa de desemprego nos EUA é o reflexo inverso quase perfeito da evolução do S&P 500. Sempre que a taxa de desemprego desce, indiciando melhoria da economia, o principal índice acionista dos EUA sobe, e vice-versa, um verdadeiro espelho, conforme evidencia o gráfico.
Atualmente, a taxa de desemprego nos EUA situa-se em 4,3%, o valor mais elevado dos últimos quatro anos (desde novembro de 2021), tendo subido gradualmente desde o pleno emprego, em torno dos 3,5%, registado nos meses seguintes ao lançamento do ChatGPT, a 30 de novembro de 2022.
Desde essa data, a valorização do S&P 500 acelerou, impulsionada pela força e entusiasmo dos investidores em torno da Inteligência Artificial, em especial nas grandes tecnológicas, as Big 7 (Nvidia, Microsoft, Alphabet, Amazon, Meta, Apple e Tesla). Contudo, nesse mesmo período, a taxa de desemprego aumentou cerca de 0,7 pontos percentuais, o que, em circunstâncias normais, indiciaria um abrandamento económico ou até mesmo o risco de recessão, esta amplamente antecipada por economistas nos últimos dois a três anos.
No entanto, o PIB real dos EUA tem crescido acima dos 2% e, no terceiro trimestre de 2025, o GDPNow da Fed de Atlanta antecipa um crescimento próximo de 4%, evidenciando uma economia norte-americana impulsionada não tanto pelo consumo, mas antes pelo investimento, sobretudo em Inteligência Artificial. Tal como corrobora a subida da taxa de desemprego, este movimento tem vindo, muito provavelmente, a substituir alguns empregos, reduzindo os custos das empresas, uma vez que a IA se revela mais barata e, em muitos casos, mais eficiente do que trabalhadores em funções administrativas ou tarefas mais rotineiras, onde a criatividade não é um requisito central.
Algumas gestoras de fundos começam já a recorrer à IA em detrimento de jovens licenciados nas áreas económicas para a leitura e análise de relatórios de empresas, researchs e tarefas repetitivas. Nestes casos, a criatividade não é ainda uma exigência determinante. Essa função continua a caber aos gestores séniores, cuja produtividade é, aliás, amplificada pela IA, num exemplo claro do fenómeno K-shaped, em que alguns profissionais são potenciados enquanto outros são substituídos.
Também as ofertas de emprego das empresas norte-americanas, de acordo com o indicador JOLTS (Job Openings and Labor Turnover Survey), têm diminuído desde o lançamento do ChatGPT, o que, em teoria, deveria indicar uma desaceleração económica. Historicamente, o padrão foi sempre o mesmo: quando as ofertas de emprego aumentam, o S&P 500 valoriza, e quando diminui, o índice cai, numa correlação bastante próxima ao longo dos últimos 25 anos. Todavia, após o lançamento do ChatGPT, essa relação inverteu-se e passou a refletir um padrão em “K”, tal como as competências profissionais. Por um lado, o S&P 500 tem subido, refletindo as expectativas de receitas crescentes das empresas que reduzem custos com mão de obra e ganham eficiência com a IA. Por outro, as oportunidades de emprego diminuem, representando a perna descendente do “K”.
Porém, à medida que a taxa de desemprego aumenta e o rendimento das famílias tende a abrandar, o consumo acabará também por ser afetado, podendo culminar na desaceleração das vendas e, mais tarde, na provável redução das receitas das empresas. Além disso, o aumento do desemprego tende a enfraquecer a coesão social, um entrave à sustentabilidade do crescimento económico a prazo.






