
Vital Moreira. “Cavaco Silva foi o que menos se afastou do meu modelo de Presidente da República”

Porque foi aquele que, com algumas exceções, exerceu o mandato de forma discreta e até frugal, contida. E, no entanto, como as suas memórias e um artigo recente mostram, ele foi porventura um dos Presidentes cuja magistratura de influência foi mais notória. Não precisou de falar todos os dias na televisão, não precisou dissolver o Parlamento com frequência, não precisou de vetar leis a ‘trouxe-mouxe’. A visibilidade do cargo presidencial não significa eficiência.
Sendo insuspeito de simpatias pelo político Cavaco Silva, [escolheria] enquanto Presidente da República, talvez por ter sido primeiro-ministro e ter experimentado um certo ativismo presidencial do Presidente Mário Soares, mesmo assim bastante contido comparado com o do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Os cidadãos não podem ter dúvidas sobre quem é que manda no país. Não pode haver dois Governos, não pode haver duas pessoas que aparecem perante a opinião Pública como governantes do país. Essa separação entre Belém e São Bento é um dado não só da Constituição, mas do bom senso político. O Presidente Marcelo chegou a propor, surpreendentemente, uma parceria estratégica entre Belém e São Bento.
A repetição e a banalização não favorecem o papel do Presidente da República.
O Presidente não é um legislador, não é um governante, não manda na Assembleia, não manda no Governo, não tutela o legislador, não tutela o chefe do Governo, que não é responsável perante ele. A Constituição é clara: o Governo não responde politicamente perante o Presidente da República. O Presidente é como o polícia, o árbitro. Verifica se as regras são cumpridas, mas não pode dizer que está a jogar mal, que é um péssimo condutor. Isso não faz parte da competência do árbitro.
Escreve que o Presidente da República, das suas declarações públicas, deve pautar-se pela sobriedade e reserva. Não teme que possa propor um perfil de um Presidente “mais calado”, mais remetido ao Palácio de Belém?
É uma questão de estilo. O Presidente pode fazer o mesmo e de forma mais ostensiva, mais pública. Mas, a meu ver, o perfil e a autoridade do Presidente da República não ganham nada com a banalização. Sempre fui a favor da contenção, da reserva, da descrição, até da frugalidade. Por isso considero que o Presidente Cavaco foi o que menos se afastou do meu modelo de Presidente da República.
A minha defesa da contenção, da reserva, da descrição é a favor de um Presidente da República que se faz respeitar, cuja autoridade tem uma ‘majestade’ que não deriva da frequência com que aparece na televisão. A repetição e a banalização não favorecem o papel do Presidente da República.
No seu livro insiste que não é o Presidente da República que define o programa do Governo, que não co-governa, nem superintende a ação governativa. Isso leva-me às tentações de os Presidentes imporem condições aos Governos para governarem ou colocá-los ‘sob vigilância’, como aconteceu com Jorge Sampaio, em relação ao Governo liderado por Pedro Santana Lopes em 2004.
Entre os candidatos atuais, por exemplo, Marques Mendes diz que daria posse ao Governo do Chega, mas exigiria garantias constitucionais. Gouveia e Melo diz que dará posse a qualquer coligação, só dissolvendo o Parlamento face a desenvolvimentos extraordinários.
Esta ideia de pôr um caderno de encargos a um Governo não pode justificar-se em determinadas circunstâncias?
Não. Apenas quando haja um risco sério com pré-aviso, que é o caso, por exemplo, do Chega, que claramente é um partido que se propõe meter a Constituição no lixo. Aí justifica-se uma advertência do Presidente da República na tomada de posse.
Agora, aquilo que Jorge Sampaio fez a Santana Lopes, não tem sentido. Critiquei na altura o Presidente Jorge Sampaio porque nomear um segundo Governo na mesma legislatura não dava autoridade para estabelecer baias muito estreitas ao mandato do novo primeiro-ministro. E essa é a regra, exatamente, porque o Governo não é responsável perante o Presidente da República, mas o Presidente da República é o guardião que zela pelo respeito da Constituição.
Ao fazer o juramento, o Presidente jura cumprir e fazer cumprir a Constituição. Portanto, perante um primeiro-ministro líder de um partido que ganha as eleições – , portanto com o direito a ser apontado como primeiro-ministro – num caso em que previsivelmente há claramente um risco da violação da Constituição, aí, a meu ver, justifica-se claramente que o Presidente faça a devida advertência pública para isso, porque isso está no seu mandato.
Isso implica uma ‘vigilância’ do Governo ao longo do mandato?
A vigilância aplica-se quanto ao respeito da Constituição, sem dúvida. Não quanto ao desempenho político, que é do Governo. O Governo responde pelo desempenho político perante a Assembleia, perante os cidadãos. Não responde perante o Presidente da República.
O Presidente da República avisou que no espaço de uma semana diria algo sobre a Ministra da Saúde. Os cidadãos podem ter a pior ideia da Ministra da Saúde, mas o Presidente da República não tem. Quando muito, indiscretamente, às quintas-feiras, pode dizer ao Primeiro-Ministro que deve vigiar a Ministra. Agora, o Presidente, como tal, publicamente, não pode, não deve, a meu ver, fazer juízos sobre o desempenho político do Ministro.
Então como interpretar o artigo 190º da Constituição, que diz textualmente que ‘o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República’?
Não. A Constituição é clara. A resposta política está no artigo seguinte, a responsabilidade política é só perante a Assembleia da República. [Artigo 191º, número 1, diz que o Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República].
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