
A nova fronteira da autonomia: o direito à informação nos cuidados mediados por Inteligência Artificial
A utilização de sistemas de Inteligência Artificial (IA) na prática clínica representa uma das mais profundas e rápidas transformações tecnológicas na história da saúde contemporânea. Contudo, a incorporação destas ferramentas exige que os profissionais mantenham um compromisso inabalável com os princípios éticos, deontológicos e jurídicos que sustentam a relação terapêutica. Entre estes, destaca-se o dever de informar e obter o consentimento informado e esclarecido do utente sempre que a IA é utilizada para diagnóstico, prescrição, monitorização ou apoio à decisão clínica. A omissão desse dever compromete direitos fundamentais e constitui uma violação da autonomia e da confiança que estão na base do ato de cuidar.
A legislação europeia é inequívoca ao exigir transparência e supervisão humana nas decisões assistidas por IA. O Regulamento (UE) 2024/AI Act, aprovado pelo Parlamento Europeu, classifica os sistemas de IA aplicados à saúde como de alto risco, impondo requisitos de explicabilidade, rastreabilidade e avaliação prévia de segurança. Paralelamente, o Regulamento (UE) 2016/679 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD) consagra o direito do titular a ser informado sempre que os seus dados pessoais são tratados por meios automatizados, bem como o direito de recusar decisões exclusivamente baseadas em algoritmos. Estes instrumentos jurídicos vinculam todos os Estados-Membros e conferem aos utentes europeus uma proteção reforçada contra a utilização opaca de sistemas tecnológicos em contextos clínicos.
Em Portugal, o Decreto-Lei n.º 29/2024, de 5 de abril, que transpõe o Regulamento (UE) 2017/745, de 5 de abril, relativo aos dispositivos médicos, estabelece que qualquer tecnologia utilizada para fins diagnósticos ou terapêuticos deve garantir segurança, eficácia e informação clara ao utilizador. Isso inclui sistemas baseados em IA. O mesmo diploma reforça a obrigação das instituições de saúde em assegurar que o doente conhece a natureza e a função do dispositivo aplicado, bem como os riscos e benefícios previsíveis. Assim, a utilização de IA sem comunicação transparente ou sem consentimento informado, constitui não apenas uma falha ética, mas também uma infração jurídica suscetível de responsabilidade profissional e institucional.
Do ponto de vista deontológico, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos (Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho) nos artigos 19.º e 20º, refere que o esclarecimento deve ser prestado previamente e incidir sobre os aspetos relevantes de atos e práticas, dos seus objetivos e consequências funcionais, permitindo que o doente possa consentir em consciência. O esclarecimento deve ser prestado pelo médico com palavras adequadas, em termos compreensíveis, adaptados a cada doente, realçando o que tem importância ou o que, sendo menos importante, preocupa o doente. O consentimento do doente só é válido se este, no momento em que o dá, tiver capacidade de decidir livremente e se estiver na posse da informação relevante. No mesmo sentido, o Código Deontológico da Ordem dos Enfermeiros (Lei n.º 156/2015, de 16 de setembro) no artigo nº 105º, no respeito pelo direito à autodeterminação, o enfermeiro assume o dever de informar o indivíduo e a família no que respeita aos cuidados de enfermagem e de respeitar, defender e promover o direito da pessoa ao consentimento informado.
Estes códigos afirmam que a prestação de cuidados requer o consentimento livre e esclarecido, precedido de informação completa, verdadeira e compreensível. Sempre que o ato clínico envolve tecnologias emergentes, incluindo a IA, o profissional tem o dever acrescido de explicar a natureza da intervenção, as suas limitações e os riscos potenciais, garantindo que o utente compreende que a decisão final permanece sob responsabilidade humana. A delegação acrítica de tarefas clínicas a um algoritmo, compromete o dever de competência técnica e o princípio da não-maleficência.
Estes dispositivos normativos deixam claro que a informação e o consentimento não são meros formalismos, mas expressão concreta do respeito pela dignidade e pela liberdade individual, constituindo a base ética e deontológica de toda a prática clínica. Assim, a omissão de informação ou o uso de IA sem consentimento informado e esclarecido não viola apenas a lei, fere o próprio núcleo moral da profissão de saúde, que assenta na relação de confiança, no respeito pela vontade do doente e na integridade do ato terapêutico. Respeitar o consentimento não é apenas cumprir a lei, é preservar o que torna a medicina e a enfermagem profissões morais e humanas. A tecnologia pode ajudar a decidir, mas só o consentimento informado transforma a decisão em ato ético.
Quando um utente não é informado da utilização de IA nos seus cuidados, vários direitos fundamentais são violados. Em primeiro lugar, o direito à autonomia e à autodeterminação, previsto na Constituição da República Portuguesa e na Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo), que refere que qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido e que esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. Em segundo lugar, o direito à privacidade e à proteção dos dados pessoais, uma vez que a pessoa ignora que os seus dados clínicos estão a ser processados por sistemas automatizados. Em terceiro lugar, o direito à transparência e à confiança legítima, elementos estruturantes da relação terapêutica. A ausência de informação impede o doente de exercer a sua liberdade de escolha e de avaliar os riscos éticos, clínicos e de segurança associados ao uso de algoritmos, configurando uma violação do princípio da justiça e da dignidade humana.
Importa sublinhar que a omissão de informação não é apenas uma falha ética ou deontológica, mas pode ainda configurar ilicitude penal, à luz do Código Penal Português. O artigo 156.º que tipifica o crime de intervenção médica ou cirúrgica arbitrária, refere que o profissional não pode realizar um ato médico sem consentimento do paciente ou que o obtenha mediante falta de esclarecimento adequado sobre a natureza e as consequências da intervenção. Complementarmente, o artigo 157.º estabelece que o consentimento do paciente deve ser livre e esclarecido, pressupondo a prestação prévia de informação suficiente sobre a natureza, o alcance, as finalidades e os riscos do procedimento. Este artigo determina ainda que o consentimento é inválido se o doente não tiver sido devidamente informado ou se a informação prestada for omissa ou enganadora.
À luz destes preceitos, a utilização de sistemas de IA sem informação e consentimento explícitos, pode ser interpretada como uma violação dos deveres profissionais e uma infração penal, uma vez que priva o utente do seu direito a decidir de forma consciente sobre intervenções que envolvem tratamento automatizado de dados e apoio algorítmico à decisão clínica. O respeito pelos artigos 156.º e 157.º do Código Penal reafirma, assim, que o dever de informar não é apenas uma obrigação moral, mas uma exigência legal que protege a integridade, a liberdade e a dignidade da pessoa assistida.
A necessidade de informar e obter o consentimento do doente sempre que é utilizada IA resulta do facto de a IA não ser um mero instrumento de consulta ou de apoio documental, mas sim um sistema ativo de análise, inferência e recomendação, capaz de influenciar diretamente o raciocínio clínico e o curso terapêutico. A diferença é substancial: um livro contém conhecimento estático, cuja interpretação depende inteiramente do profissional; a IA, pelo contrário, processa dados, estabelece correlações, aprende padrões e propõe decisões, podendo alterar o próprio juízo clínico. Por essa razão, a sua utilização não se enquadra no domínio dos meios de apoio bibliográfico, mas no das intervenções tecnológicas com potencial de impacto clínico, sujeitas ao dever de informação e ao consentimento prévio e esclarecido do utente.
O utente/doente tem o direito de saber que a sua avaliação ou tratamento foi influenciada por um algoritmo, e o profissional tem o dever de garantir que essa influência é transparente, compreensível e supervisionada. Informar é, neste contexto, uma exigência ética, legal e deontológica que decorre do respeito pela autonomia e pela integridade moral da pessoa, porque a IA não é um livro, é um agente de decisão que participa no ato clínico e, por isso, exige consentimento humano e proteção efetiva de quem dela depende.
Do lado dos profissionais, a omissão da informação e a ausência de consentimento violam igualmente os deveres deontológicos de competência, lealdade e responsabilidade profissional. O exercício da medicina, da enfermagem ou de qualquer profissão de saúde deve basear-se em conhecimento atualizado e no respeito integral pelos direitos das pessoas assistidas. A introdução de IA sem consentimento informado equivale a um ato de experimentação sem base ética, contrariando a legislação e os códigos profissionais. Além disso, o AI Act e o RGPD determinam que a supervisão humana é obrigatória, o que significa que o profissional mantém sempre a responsabilidade final pelas decisões clínicas, não podendo escudar-se na autonomia do algoritmo.
A obtenção do consentimento informado no contexto da IA deve, portanto, incluir a explicação de que o sistema utilizado não substitui o juízo clínico humano, mas apenas o complementa, que as recomendações produzidas são probabilísticas e que podem existir margens de erro ou enviesamento de dados. A clareza, a honestidade e a linguagem acessível são componentes indissociáveis do respeito pela autonomia do doente. Informa-lo não é um ato burocrático, mas um imperativo ético e uma salvaguarda de confiança.
Em última instância, a questão central não é apenas se devemos usar IA em saúde, mas como o fazemos. A tecnologia pode reforçar a qualidade e a segurança dos cuidados, desde que seja usada de forma transparente e supervisionada. A confiança do doente e a integridade profissional só se mantêm se a inovação for acompanhada de responsabilidade, literacia digital e compromisso ético. Ignorar o dever de informar é, neste contexto, desrespeitar o princípio que sustenta toda a prática clínica, o respeito pela pessoa humana.
O futuro da saúde digital em Portugal e na Europa exige que cada profissional compreenda que a IA não dispensa a ética, exige-a ainda mais. Formar equipas com literacia em IA, em direito da saúde e em bioética é uma condição essencial para que a transformação tecnológica se traduza em benefício e não em risco. A transparência e o consentimento informado são, e continuarão a ser, o alicerce da relação terapêutica, mesmo numa era em que o conhecimento é mediado por algoritmos. A era digital não redefine a autonomia e o direito de escolher, apenas torna mais urgente o dever de informar.
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