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Margarida Sousa viveu a perda auditiva na infância. Aos sete anos, escutou o mundo: “Agora sim, ouvia tudo”

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Em Portugal, cerca de 1,5 milhões de pessoas vivem com algum grau de perda auditiva, segundo dados da Direção-Geral da Saúde e da Associação Portuguesa de Audiologistas. Apesar dos rastreios neonatais previstos no Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil, muitos casos continuam a ser identificados tarde, sobretudo fora dos grandes centros urbanos.

A história de Margarida Sousa, hoje estudante de Enfermagem em Braga, revela o que muda quando o diagnóstico chega a tempo. Um tratamento para a meningite deixou-lhe sequelas auditivas ainda em tenra idade, mas o acompanhamento foi rápido. Aos sete anos, no consultório da audiologista Miriam Pinheiro, colocou os primeiros aparelhos e ouviu, pela primeira vez, o mundo com nitidez.

Vieram depois a adaptação à escola, a terapia da fala e a rotina de cuidar dos aparelhos — tarefas que, com o tempo, se tornaram parte do quotidiano. Hoje, Margarida fala do tema com naturalidade e insiste no valor do apoio familiar e profissional no processo de reabilitação.

Os audiologistas são uma peça fundamental no percurso de recuperação da audição — um campo onde a tecnologia e a relação humana se cruzam todos os dias. As associações do setor alertam que a falta de acompanhamento regular pode levar a isolamento e dificuldades de comunicação, tanto em crianças como em adultos.

Recorda-se do momento em que percebeu que algo na audição não estava bem? Como foi lidar com essa descoberta em criança e com os obstáculos que decorriam deste estado?

Foi bastante evidente quando entrei para a escola primária. Foi nesse período que começaram as dificuldades: o meu aproveitamento escolar era insuficiente e, no meu discurso, tornou-se evidente a alteração no fonema das palavras com a letra “L”, corrigido mais tarde através da terapia da fala.

De repente, era tudo novo: a escola, amigos, professora… e ainda os aparelhos auditivos, que chegaram como um acrescento inesperado, mas bastante positivo, à minha vida. Recordo-me de sentir que precisava de cuidar deles como se fossem um bebé ou um nenuco. Era uma grande responsabilidade para uma criança, não só pelo cuidado físico, mas também pela consciência do valor financeiro que representavam. Nos recreios, muitas vezes sentia-me limitada em algumas brincadeiras e interações. Tinha de ser seletiva e, por segurança, acabava por ficar mais no meu canto, mesmo quando não era o que eu queria. Enquanto criança, isso fazia-me sentir diferente. Não que os aparelhos fossem um problema em si, mas, na forma inocente como me via em criança, representavam para mim um sinal de distância em relação aos meus colegas.

Apesar das dificuldades e da pouca sensibilidade da professora primária, nunca deixei que a condição auditiva me definisse ou me limitasse. Hoje reconheço algumas sequelas desses tempos, mas também vejo como os meus pais fizeram tudo para colmatar essas falhas, dando-me sempre um enorme apoio em casa. Isso obrigou-me a crescer mais rápido, mas também me deu força para nunca deixar de avançar.

Apesar das dificuldades e da pouca sensibilidade da professora primária, nunca deixei que a condição auditiva me definisse ou me limitasse.

Que memórias guarda do dia em que ouviu claramente pela primeira vez com os aparelhos auditivos?

Não tenho recordações muito nítidas desse momento, mas os meus pais contam que, no consultório, comecei a gritar de entusiasmo, dizendo que finalmente conseguia ouvir tudo. Hoje, cada vez que coloco os aparelhos, esboço um sorriso. A diferença é realmente significativa — não só na quantidade de som, mas também na qualidade, e isso reflete-se diretamente na qualidade de vida que tenho.

As pessoas à minha volta geralmente não percebem que uso aparelhos auditivos, ficando surpreendidas sempre que o menciono. Já as crianças, por serem naturalmente muito observadoras, detetam logo e não hesitam em fazer imensas perguntas. Gosto de falar sobre o tema e de sensibilizar quem me rodeia, porque ainda existe o estigma de que os aparelhos auditivos são apenas usados por pessoas mais velhas. Partilhar a minha experiência ajuda a mostrar que nem sempre é assim e que ouvir bem é uma necessidade em qualquer idade.

A relação com a audiologista Miriam Pinheiro parece ter sido determinante neste processo. Que papel teve esta profissional no seu percurso de adaptação?

A Miriam Pinheiro teve, e tem, um papel fundamental no meu percurso. Desde o primeiro instante que demonstrou empatia, sensibilidade, transparência e verdade, valores que considero essenciais nesta relação terapêutica. Soube conhecer-me, adaptar-se a mim enquanto cliente e proporcionar-me a experiência mais personalizada possível.

Recentemente, comprei aparelhos novos, mas não existiam as cores vibrantes que tanto adoro e que fazem parte da minha identidade. À primeira vista, parecia algo difícil de concretizar, mas a Miriam não desistiu até encontrar solução. Hoje, tenho um aparelho amarelo e outro cor de laranja. Não poderia estar mais realizada, é um detalhe para quem está de fora, mas para mim é simplesmente incrível. Este detalhe mostra como ela conseguiu transformar algo que poderia ser apenas funcional em algo verdadeiramente meu e que faz parte da minha identidade.

Adoro usar aparelhos auditivos. Não os sinto como um fardo ou uma obrigação, porque são os meus aparelhos — construídos, em parte, em conjunto com ela. Ouvir melhor não é apenas colocar uns aparelhos auditivos. É todo o processo, a dedicação e o acompanhamento até lá chegar. E a Miriam fez toda a diferença nesse caminho. Tenho-a como um exemplo enquanto profissional e amiga, contagia-me por quem é e pela forma positiva com que encara cada desafio. Não poderia estar mais grata.

Ouvir melhor não é apenas colocar uns aparelhos auditivos. É todo o processo, a dedicação e o acompanhamento até lá chegar.

O diagnóstico e o acompanhamento chegaram cedo, mas muitas crianças não têm a mesma sorte. O que aprendeu sobre a importância do diagnóstico precoce?

O diagnóstico precoce faz toda a diferença. Quanto mais cedo a perda auditiva é identificada, maior é o sucesso no desenvolvimento da criança e menores são as consequências na aprendizagem, na comunicação e na vida social. Tive a sorte de ter pais muito atentos e sempre presentes, o que permitiu que o acompanhamento chegasse cedo e que a perda auditiva não tivesse um impacto significativo no meu desenvolvimento pessoal nem no percurso académico. Tenho consciência de que muitas crianças não têm a mesma sorte e, sem um diagnóstico precoce, podem enfrentar dificuldades acrescidas na escola, na comunicação e na autoestima. Por isso, acredito que investir em rastreios e em acompanhamento especializado desde os primeiros sinais é essencial para garantir inclusão e qualidade de vida. Esta experiência pessoal também reforça a minha visão enquanto futura profissional de saúde: a prevenção deve ser uma prioridade, porque muitas vezes é aí que se faz a verdadeira diferença na vida das pessoas.

Houve momentos em que sentiu vontade de esconder os aparelhos ou vergonha por usá-los? Como transformou isso numa parte da sua identidade?

Uso aparelhos auditivos há mais de 15 anos, e sempre os encarei como parte natural da minha identidade e do meu dia a dia. Não recordo momentos de vergonha ou necessidade de os esconder, pelo contrário, sempre os utilizei de forma consciente e confiante.

Para mim, o cuidado diário com os aparelhos tornou-se tão rotineiro como lavar a cara ou escovar os dentes antes de ir para a escola. Em algumas situações, podia ser incómodo ocupar sempre os lugares da frente na escola, mas isso, para além de sempre ter sido uma opção minha, nunca afetou a minha relação com os aparelhos. Com os avanços tecnológicos, aprendi a utilizar ferramentas adicionais para adaptar e direcionar o som às minhas necessidades, o que se revelou muito útil em contexto académico.

Cheguei inclusive a partilhar o funcionamento dos aparelhos auditivos com colegas e professores, transformando o desconhecido em curiosidade e conhecimento e promovendo uma maior compreensão sobre a realidade das pessoas com deficiência auditiva. A forma como sempre lidei com o uso de aparelhos auditivos, e o apoio incansável que recebi em casa por parte dos meus pais, permitiu que se tornassem uma extensão natural de quem eu sou.

O diagnóstico precoce faz toda a diferença. Quanto mais cedo a perda auditiva é identificada, maior é o sucesso no desenvolvimento da criança.

Estudar Enfermagem implica lidar com o corpo, com a escuta e com o outro. A sua experiência pessoal influenciou a forma como olha para a profissão que pretende abraçar?

Estudar Enfermagem implica, de facto, lidar com o corpo, com a escuta e com o outro. A minha experiência pessoal fez com que desenvolvesse especial atenção às pessoas e ao ambiente que me rodeia no meu dia a dia, sobretudo na capacidade de ler o outro através das suas diferentes formas de comunicação, nomeadamente a linguagem não verbal, muitas vezes subvalorizada. Futuramente gostava de aprender Língua Gestual Portuguesa, de forma a poder prestar cuidados verdadeiramente inclusivos na minha profissão.

Considero que a comunicação interpessoal é um dos pilares fundamentais da profissão de Enfermagem. É a partir da relação de confiança estabelecida com a pessoa que os cuidados propriamente ditos podem ser eficazes. A minha própria audiologista é um exemplo que me inspira: começa sempre por conversar comigo sobre a vida e os desafios do dia a dia relacionados com a audição, antes de passar à parte mais prática e funcional de configuração dos aparelhos auditivos. A meu ver, na vida somos constantemente exemplo e espelho uns para os outros, a todo o momento.

Da mesma forma, acredito que a Enfermagem exige empatia, paciência e disponibilidade para explicar com calma — tantas vezes quantas forem necessárias. Para mim, ser enfermeira, é mais do que tratar uma patologia ou um sentido em particular, é sim olhar para a pessoa como um todo. É nesse olhar atento e nessa forma de estar que encontro a verdadeira essência da profissão e acredito poder fazer toda a diferença nos cuidados de saúde prestados.

A tecnologia ajuda, mas o que sente que faz realmente a diferença na vida de quem vive com perda auditiva?

A tecnologia tem um papel fundamental, mas o que realmente faz a diferença é a possibilidade de me inserir plenamente nos diferentes contextos da vida. Costumo dizer que, sem os aparelhos auditivos, é como se caísse “ao fundo de um poço”. Quem me conhece bem percebe de imediato quando não os estou a usar, pela necessidade constante de repetir as mesmas coisas.

O que os aparelhos auditivos oferecem não é apenas volume, mas sim um som confortável, adaptado às minhas preferências, permitindo-me ouvir com clareza e até direcionar a captação sonora. Hoje, graças à evolução tecnológica, consigo atender chamadas, ouvir música e podcasts com transmissão direta do telemóvel para os aparelhos, mesmo em ambientes ruidosos — algo que eu considero espetacular que há alguns anos era praticamente impossível.

Mais do que ouvir, trata-se de poder comunicar, compreender e participar. A perda auditiva, sendo uma limitação num sentido essencial, quando não é bem corrigida, retira uma parte importante da vida, podendo gerar frustração e até exclusão. Os avanços tecnológicos dos últimos anos, pelo contrário, devolvem integração, autonomia e muita qualidade de vida.

Que mensagem deixaria a outras pessoas — sobretudo jovens — que estão a iniciar este caminho de adaptação?

Com os avanços tecnológicos atuais, usar aparelhos auditivos é simples e confortável. Não é um bicho de sete cabeças: rapidamente passam a fazer parte do dia a dia de forma natural.

Ao contrário do que se possa pensar, os aparelhos quase não se sentem na orelha e quase não se veem. Muitas vezes, é mais a nossa perceção e atenção a dar-lhes destaque do que propriamente o mundo à nossa volta, para o qual são apenas um detalhe discreto.

Costumo também colocar as pessoas à vontade para fazer perguntas, porque acredito que quanto mais se fala sobre o tema, menos ele se torna um tabu. Há curiosidade e trocas de olhares, mas poucas perguntas. O meu apelo é simples: não tenham receio de perguntar — no fundo, somos todos iguais, cada um com as suas particularidades.

Fonte: Lifestyle Sapo

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