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Violência obstétrica volta ao debate. “As mulheres já ligam do hospital a denunciar”, afirma Mia Negrão

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Na semana passada, a Ordem dos Médicos enviou um comunicado aos grupos parlamentares reiterando a rejeição do termo violência obstétrica e defendendo a substituição por “referência às experiências negativas no parto”. O debate reacendeu nas redes sociais e regressa em breve ao Parlamento, com a proposta do CDS-PP que pretende revogar a lei aprovada em março deste ano e que definiu o conceito de violência obstétrica. O Livre, pelo contrário, quer que a lei se mantenha e que o conceito seja alargado.

Não se trata de uma discussão apenas semântica, mas também legal: o que está em causa quando falamos de violência obstétrica? O que é, como é tratada pela lei, como se apresentam queixas e porque gera resistência entre os profissionais de saúde? E, sobretudo, o que é preciso mudar nas salas de parto para que este debate deixe de fazer sentido?

O SAPO falou com Mia Negrão, advogada, ativista e fundadora do projeto Nascer com Direitos, que acompanha diariamente mulheres que relatam abusos durante a gravidez e o parto e defende legislação clara para a violência obstétrica mas fala-nos sobre as suas dúvidas e dificuldades de legislar o tema.

Quais são os casos mais comuns de violência obstétrica?

As formas mais comuns de violência obstétrica são os atos sem consentimento: intervenções no corpo da mulher e a sua infantilização, como se não tivesse capacidade para decidir sobre si e sobre o bebé durante a gravidez e o parto.

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Os casos que mais me chegam são episiotomias, quase sempre feitas sem consentimento ou impostas sob coação, como ‘é isto ou o bebé morre’. É uma prática muito comum em Portugal e uma das que mais deixa marcas físicas e psicológicas. Muitas mulheres ficam traumatizadas porque se sentem violadas e não conseguem recuperar a sua vida normal. As consequências podem ir da incontinência a lesões que afetam até a marcha.

Há também situações em que morrem bebés, muitas vezes ligadas à chamada “cascata de intervenções”, sem que seja possível identificar a causa concreta.

E existem ainda os casos psicológicos, frequentemente desvalorizados por não deixarem marcas visíveis. O trauma de parto está descrito no DSM e é uma doença psiquiátrica. Não é a mesma coisa que a depressão pós-parto, é mesmo trauma de parto e tem consequências para a vida. 

E atualmente que consequências legais existem?                   

Isto depende se estamos a falar de um hospital público ou de um privado porque a lei é diferente em termos de recurso aos tribunais. Nos públicos, os processos correm nos tribunais administrativos, que têm um atraso muito grande, podem arrastar-se durante 20 ou 30 anos. Nos privados, seguem para os tribunais comuns e a Justiça é menos morosa, demoram em média três a cinco anos, sendo que muitas vezes há acordos extrajudiciais para evitar custos acrescidos. Regra geral, só compensa avançar com estas ações quando se trata de situações muito graves, como morte de bebés ou de violação de direitos humanos, casos em que amarram as grávidas. 

Em casos de abuso no parto, a responsabilidade é do hospital ou do médico?

Depende. Há situações em que são os hospitais os responsáveis. No caso dos públicos é sempre o hospital o responsável pelos atos dos seus funcionários. Mas se se tratar, por exemplo de uma intervenção sem o consentimento informado, já podemos estar perante a prática de um crime. No caso de uma episiotomia sem indicação clínica, a responsabilidade é do profissional de saúde, é ele quem responde em tribunal e nunca um hospital. Depois, vai-se aferir se há responsabilidade e as penas podem ser de multas ou de prisão para os profissionais de saúde.

Há ainda a possibilidade de fazer reclamação contra o hospital e contra os profissionais na Ordem dos Médicos ou dos Enfermeiros e na Inspeção-geral das atividades em saúde. 

Estes crimes já estão previstos na lei?

Sim, existe o crime de intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias e depois temos outros tipos de crimes nos quais conseguimos encaixar algumas das práticas mais comuns na obstetrícia, por exemplo, uma manobra de Kristeller vai ser punida eventualmente como uma ofensa à integridade física. Se morrer um bebé, por exemplo, temos o homicídio, homicídio por negligência, etc. Conseguimos ir sempre buscar tipos legais de crime para enquadrar estas intervenções, precisamente porque não temos o crime de violência obstétrica, e não sei se alguma vez teremos. A existir é difícil enquadrar todas as práticas que são violência. Agora temos esta nova lei, a lei 33 de 2025, que já vem fazer um pequeno enquadramento daquilo que é a violência obstétrica, mas é diferente de termos na lei penal.

Porque há a necessidade de legislar e criminalizar a violência obstétrica?

Não consigo ainda ter uma opinião formada porque me parece muito difícil criar o tipo legal de crime de violência obstétrica porque é sistémica. Teríamos de pôr todos os atos que configuram violência obstétrica: íamos deixar imensos de fora e podíamos colocar outros que faria com que tivéssemos uma medicina muito mais defensiva ao ponto de não se fazerem as intervenções necessárias. É perigoso. 

Eu acho que isto vai ser possível quando nós evoluirmos do ponto de vista social e cultural. E depois o Direito acompanha. Acho que ser o Direito a dar o primeiro passo talvez não seja uma atitude muito responsável.

É difícil distinguir entre emergência e abuso?

Não é, mas culturalmente continua a ser difícil nos hospitais. A maioria das episiotomias que são feitas são justificadas pelos profissionais de saúde como sendo de emergência. A formação médica já está feita para que o parto seja entendido como um evento que é emergente. E sabemos que não é e dá para perceber nos processos clínicos, mas é difícil traçar aqui esta linha. É sempre um tudo ou nada, um ‘ou faz isto ou o bebé morre’. Claro que há exceções, como emergências em que a grávida está inconsciente, mas muitas vezes esse argumento é usado de forma abusiva quando é só um parto a acontecer. 

Referiu os processos clínicos, mas muitas mulheres têm muita dificuldade a ter acesso a estes documentos. O que devem fazer nesses casos?  

O processo clínico pertence sempre à pessoa e os hospitais são apenas os fiéis depositários dessa informação. Por lei, quando o processo é pedido, têm dez dias para o entregar, mas quase nunca cumprem. Nesses casos, pode-se apresentar queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Se mesmo assim não houver resposta, é possível recorrer ao tribunal através de uma ação simples e relativamente rápida. 

Há algum prazo para se pedir este processo?

Não há um prazo para se pedir. Os hospitais têm um prazo obrigatório para guardar estes documentos, creio que cerca de 20 anos.

E os prazos para fazer as queixas? 

Regra geral, são 6 meses para a queixa-crime, mas para o pedido de indemnização, que temos entre 13 e 20 anos, dependendo se foi ao hospital público ou privado. 

Tendo em conta que neste caso a vítima torna-se mãe e tem um bebé para cuidar, o prazo de seis meses é suficiente?

É muito curto. Acaba de se passar por um trauma, fica-se com um bebé nos braços (nos casos em que se fica), e os primeiros seis meses são os meses de amamentação exclusiva e de adaptação à maternidade, principalmente quando é um primeiro filho. Seis meses passam num piscar de olhos. 

Mas é importante saber que podemos passar por uma situação de violência obstétrica sem noção que o estamos a passar. E o prazo pode começar a contar a partir da data em que nós tivemos conhecimento dos factos. Por exemplo, uma mulher que não tenha tido conhecimento que lhe foi feita uma episiotomia e só descobre passado oito meses quando foi a uma consulta de pós-parto com queixas de incontinência, nesse caso começo a contar a partir do momento em que se teve conhecimento do crime.

E como seria enquadrada legalmente a violência obstétrica?

Fico dividida entre criminalizar ou não. Se estivesse tipificada no Código Penal, os prazos seriam mais longos, um ou dois anos para apresentar queixa, enquanto agora temos de usar os prazos dos crimes em que encaixamos estas situações, como as ofensas à integridade física (seis meses) ou, no caso de homicídio, mais tempo.

O que é que o alargamento da lei propõe? É diferente ser crime de estar apenas previsto na lei?

Sim. O Código Penal implica crime, arguido, acusação do Ministério Público e possibilidade de prisão. Já a nova Lei 33/2025 não criminaliza, mas prevê contraordenações e reforça a responsabilidade civil: dá às vítimas direito a indemnização quando a lei não é cumprida. Não há pena de prisão, mas há sanções e, sobretudo, o reconhecimento de que estamos perante violência obstétrica.

Isto prende-se com o Direito Civil? 

Exatamente. No Código Penal falaríamos de crime e sanções criminais; no Civil estamos a falar de responsabilidade indemnizatória.

Qual é a sua posição?

Não tenho dúvidas de que precisamos de uma lei clara que defina o que é a violência obstétrica. Mas criar um crime autónomo é mais difícil: além de ser quase impossível tipificar todos os atos que a integram, arriscaríamos uma prática médica demasiado defensiva. Por isso, defendo legislação clara, mas tenho reservas quanto a autonomizar o crime no Código Penal.

As mulheres estão muito mais informadas dos seus direitos?

Eu sinto que as mulheres recorriam a mim passado dois ou três anos para saber o que poderiam fazer porque têm lesões ou não conseguem andar, mas agora não, agora ligam-me ainda no hospital e ainda nem o bebé nasceu. Na maior parte dos casos não se pode fazer muito, está-se em trabalho de parto e não se vai mudar de hospital e ainda menos com as restrições que existem. Mas tiram-se fotos, fazem-se vídeos, apontam-se nomes, fica tudo registado. Mesmo fotografias aos medicamentos, às vezes vemos determinada medicação que foi administrada (e sabemos porque há fotos) e não está registada no processo clínico. 

Cada vez mais as pessoas têm noção. Mas há muitas outras pessoas que não têm toda esta informação e merecem ser protegidas e terem um prazo alargado para fazer a queixa. 

Estamos perante uma mudança de paradigma na forma como as mulheres entram na sala de parto?

Não sei se posso chamar uma mudança de paradigma, já que a maioria dos meus clientes são pessoas de classe média ou média alta. São pessoas que têm acesso à informação e a cuidados privados, mas existe um outro lado com pessoas desfavorecidas e sem tanto acesso a informação, estão dependentes de um SNS que muitas vezes nem consultas atempadas tem. Eu vejo esta mudança de paradigma na minha área, mas em Portugal há muitas assimetrias. 

Os médicos estão muito descontentes com este debate e a Ordem já enviou recomendações ao Parlamento rejeitando o termo. Porque é que existe tanta resistência?

Os profissionais de saúde não vão estar do nosso lado. Há uma fase em que temos de ser confrontadores e depois do confronto virão as tréguas e um consenso. Nós vamos continuar a chamar a isto de violência obstétrica: o tema está no Parlamento e agora somos obrigados a discuti-lo de outra forma.

Creio que a resistência vem de não quererem assumir que estiveram a fazer mal até agora e de não quererem alterar práticas. É muito difícil médicos mudarem hábitos que mantiveram durante décadas, e isso está a gerar de facto um problema. Sei que esta mudança vai acontecer, sobretudo com a renovação geracional, mas gostava que as gerações mais velhas pudessem atualizar os seus conhecimentos. Vejo mais os enfermeiros a fazê-lo, a admitir práticas erradas e a procurar formação para se atualizarem.

Vai voltar-se a discutir a lei que foi aprovada em março. O CDS quer limitar o conceito e o Livre alargá-lo. O que seria desejável sair desta discussão?

É importante manter a lei. Não é perfeita, tem algumas imprecisões e acho que referir-se algumas questões da episiotomia não foi uma manobra muito inteligente. A proposta do Livre é a mais acertada e que vai mais ao encontro daquilo que é a defesa dos direitos da gravidez e do parto. 

A definição de violência é sempre para manter ou ampliar e nunca para retirar conteúdo. Dizem que há muitos tipos de violência obstétrica, mas não estão descritos e é necessário fazer uma definição completa. Acho que é muito positivo termos uma comissão e ver esta questão mais falada.

E cada vez mais há exigências por parte das mulheres…

Sim, mas agora há médicos que perceberam que isto é um nicho e dizem que oferecem parto humanizado e depois não é verdade.

Já falámos da importância da formação e das novas gerações, mas o que terá de ser feito além disto para que haja mudanças nas salas de parto? 

Com este governo estamos a perder direitos e os serviços públicos estão a sofrer bastante. Acho que tem de fazer parte do currículo nas escolas na disciplina de Cidadania, não digo especificamente o tema da violência obstétrica, mas que haja uma educação para os direitos. 

Acho que não temos realmente a noção do que é ter direitos, agimos muitas vezes como não sendo pessoas com autonomia para tomar decisões. Há muitos resquícios da ditadura em nós. Temos de pedir autorização para tudo, mesmo para ir à casa de banho na escola. É necessário ensinar o que é a responsabilidade.

Isto reflete-se no parto. Temos mulheres que pedem autorização para se levantarem, para irem à casa de banho. Agem completamente desempoderadas e isto também contribuiu para manter este modelo médico. Agora também temos este confronto porque os médicos não estão a aceitar que afinal as mulheres têm autonomia para tomar decisões. 

Tem vindo a trabalhar afincadamente nesta área, publicou o livro “O meu parto, as minhas regras” e criou o projeto Nascer com Direitos. Quais são as suas maiores conquistas?

Considero também uma grande conquista estarmos a falar sobre o assunto na Assembleia da República. Quando comecei a falar de violência obstétrica havia muito a dúvida se se devia ou não usar este termo e se não deveríamos falar de maus-tratos ou abusos obstétricos. Falamos do crime de violência doméstica, porque temos de andar aqui com rodeios? Isto é sistémico, não depende da intenção: é violência, e devemos chamá-la assim.

Muita gente fala comigo dos seus partos e eu gosto de saber que a pessoa teve o parto que queria, que esteve no comando e foi respeitada no processo.


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