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“A reter mais de 90% dos médicos de família recém-especialistas”

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É diretora clínica da ULS Algarve desde o primeiro dia, 1 de janeiro de 2024. Como foi assumir este cargo novo, num modelo que se tornou de âmbito nacional em pouco tempo?

Assumi este desafio movida por um forte sentido de missão e por empatia com os colegas do terreno, que naturalmente receavam ser ‘esmagados’ pela adoção abrupta do modelo ULS. De facto, a transição foi intensa: faltaram tempos e espaços de consensualização com as equipas intermédias e operacionais e assistimos à extinção das ARS, sem uma transferência estrutural completa de recursos humanos e apoio logístico.

Para responder a essa complexidade, apostámos em soluções inovadoras e possíveis, criámos grupos de trabalho mistos ativos para manter a identidade dos cuidados de saúde primários (CSP), dispersos por mais de 200 km e 90 pontos de prestação de cuidados. Tenho uma equipa de adjuntos, assessor e secretariado que, apesar de ser em pequenos números para as necessidades desta função, tem sido um suporte estrutural a todo o desempenho neste período. Tudo isto só foi possível graças ao profissionalismo e à criatividade das nossas equipas, que se envolveram de corpo e alma. O nosso compromisso é seguir este caminho de colaboração e inovação para garantir cuidados primários de excelência à população do Algarve.

 

Na sua perspetiva, a extinção das ARS fez sentido?

Tenho a humildade de reconhecer que não existe uma solução única que sirva todas as realidades. No caso concreto do Algarve, considero que a forma como se procedeu à extinção das ARS não foi a mais indicada. Teria sido mais sensato optar por uma fusão jurídica e funcional, integrando todos os profissionais que já trabalhavam na ARS e noutras estruturas complementares. São pessoas com um conhecimento técnico e institucional profundo, que faz falta, especialmente numa região já carente em recursos humanos com competências especializadas em saúde.

Com esta mudança, muitos desses profissionais foram redistribuídos para outras instituições locais e nacionais (Direção Executiva do SNS, ACSS, DGS) e isso enfraqueceu ainda mais a nossa capacidade de resposta regional. A transição para o modelo de ULS tem potencial, mas deveria ter sido feita com maior atenção às diferenças de cultura organizacional. Nos CSP temos uma experiência de mais de 20 anos em modelos como as USF, com pagamento por desempenho e assentes em verdadeiro trabalho em equipa multiprofissional e com autonomia. Já o hospital segue um modelo mais verticalizado. Esta diferença não pode ser ignorada e, a meu ver, exigia uma abordagem mais cautelosa.

Além disso, houve aspetos práticos que deviam ter sido preparados com mais tempo como os sistemas de informação e os códigos da Farmácia. Esta transição não é apenas logística, é cultural. E embora toda mudança tenha perdas e ganhos, acredito que um modelo híbrido, que reconheça e valorize o melhor de cada estrutura, seria o ideal para o Algarve. Só assim conseguimos preservar o que funciona bem e corrigir o que precisa de evolução.

“Este modelo colaborativo e adaptativo reforça o papel estratégico e resolutivo dos CSP, assegurando simultaneamente uma melhor articulação com o hospital, em benefício direto dos utentes”

No Algarve, sentiu que os CSP foram ‘engolidos’ pelo hospital?

Não diria exatamente ‘engolidos’, mas reconheço que existe uma perceção generalizada de uma maior visibilidade da componente hospitalar face aos CSP. Esta sensação foi reforçada pela perda de muitos profissionais da ARS Algarve, que detinham um profundo conhecimento sobre os processos específicos e operacionais dos centros de saúde. Consequentemente, alguns processos nos CSP continuam órfãos, o que gera desafios adicionais.

No entanto, apesar desta realidade, os CSP organizaram-se ainda mais para responder, em conjunto com os cuidados de saúde secundários, aos desafios específicos da região do Algarve. O processo tem sido complexo e exigente, tanto para o hospital como para os CSP. Manter o nível de prestação da ULS Algarve tem requerido esforços significativos, especialmente num cenário onde quase 20% da população não dispõe de médico de família, situação agravada pela presença constante de migrantes e turistas na região.

Quando se verifica que a procura está a aumentar significativamente e que os tempos de resposta às situações urgentes ultrapassam os tempos-alvo, acionamos rapidamente medidas concretas: delineamos a abertura de respostas alargadas nos CSP, como o reforço de horários ou a ativação de estruturas temporárias. Este modelo, concebido no terreno, tem-se revelado inovador e eficaz. Permite-nos antecipar cenários de rutura e atuar com rapidez, aliviando a pressão onde ela mais se sente e garantindo uma resposta mais equilibrada.

Portanto, apesar das dificuldades, com a redefinição de circuitos e a mudanças de vários serviços de suporte, conseguimos manter a nossa identidade e autonomia dentro da ULS Algarve, algo que é fundamental numa região extensa, com mais de 500 mil habitantes inscritos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e desafios próprios, como a grande mobilidade sazonal.

Com a equipa que me acompanha, desenhámos um Plano de Contingência no  Verão do ano passado, baseado numa gestão inovadora, através da monitorização informática diária, em tempo real dos dados dos Serviços de Urgência Básica (SUB) e das três unidades hospitalares de urgência. Esta estratégia permite-nos antecipar períodos críticos, especialmente quando observamos dificuldades prolongadas no atendimento adequado dos doentes que recorrerem a estes serviços. Nestes momentos, se prolongados por alguns dias, despoleta abrirmos respostas adicionais nos CSP, proporcionando uma gestão mais tranquila e eficiente das urgências. Este modelo colaborativo e adaptativo reforça o papel estratégico e resolutivo dos CSP, assegurando simultaneamente uma melhor articulação com o hospital, em benefício direto dos utentes.

Temos tido uma resposta muito empenhada das equipas, com alargamento de horários, abertura de extensões em locais críticos, como Quarteira e Altura, e, claro, muito trabalho extra. Tudo isto para garantir que os utentes são atendidos em tempo útil, sem sobrecarregar ainda mais as urgências hospitalares. Este modelo colaborativo e adaptativo articula o melhor dos dois mundos: a proximidade e o conhecimento do território dos CSP com a capacidade técnica e logística dos hospitais, sendo uma mais-valia para todos, sobretudo para quem nos procura.”

 

O Algarve está sempre debaixo dos holofotes e nem sempre pelas melhoras razões quando se trata do setor da saúde, em particular as urgências. Estamos a chegar ao verão, esse modelo também facilita a resposta nos CSP nesta época balnear? Também se sente a pressão nos CSP?

Sim, sem dúvida, também sentimos pressão nos CSP, especialmente nos Serviços de Atendimento Complementar (SAC), que funcionam como uma porta aberta para todos: residentes, turistas ou migrantes. Atendemos indiscriminadamente, mesmo que os utentes não estejam inscritos no nosso sistema. E isso, nesta altura do ano, tem um impacto direto no volume de trabalho.

Apesar da pressão, temos conseguido dar resposta graças ao reforço de prestadores de serviço médico e à dedicação das nossas equipas, muitas das quais assumem carteiras adicionais ou horário extraordinário, precisamente para atender este aumento sazonal de procura. Estamos a falar de pessoas que não entram nas estatísticas tradicionais, porque não estão formalmente inscritas, mas que têm, obviamente, necessidades reais de saúde que não podem ser ignoradas.

É aqui que o modelo que adotámos tem feito a diferença: com recurso à plataforma de monitorização que desenvolvemos, conseguimos antecipar os picos de procura e sempre que possível ativar respostas alargadas nos CSP, antes que a pressão se torne insustentável. Esta capacidade de adaptação rápida é essencial, sobretudo numa região como o Algarve, onde a população pode duplicar em poucas semanas. O desafio é grande, mas o compromisso das equipas também é. E isso tem feito toda a diferença para manter a acessibilidade e evitar a sobrecarga das urgências hospitalares.

“Como diretora clínica, o mais difícil é encontrar o equilíbrio entre a resposta a esta população sem médico de família e a proteção das equipas, para que não entrem em exaustão”

Relativamente aos imigrantes, como têm gerido a resposta numa região com escassez de médicos de família?

Tem sido um desafio constante, sem dúvida. O Centro de Saúde de Albufeira, por exemplo, tem mais de 60 nacionalidades entre os utentes inscritos — e isso sem contar com os chamados ‘esporádicos’, que recorrem aos nossos serviços, sobretudo durante os picos sazonais. Essa diversidade implica mais tempo por consulta e maior exigência para os profissionais, desde logo pelas barreiras linguísticas e pelas diferenças culturais que impactam o atendimento.

O Algarve é uma região com características muito particulares: por um lado, uma população residente bastante envelhecida; por outro, uma pressão constante de migrantes e turistas. Para responder a este cenário, contratualizámos com as equipas tempo alargado em carteiras adicionais, permitindo consultas mais longas, porque muitas vezes 20 minutos não chegam, sobretudo quando o utente não fala português. As próprias equipas foram incentivadas a dedicar mais tempo a estes atendimentos, porque sabemos que é necessário. Temos ainda procurado minimizar estas dificuldades com medidas concretas: contamos com intérpretes em vários centros, temos panfletos informativos em diversas línguas e beneficiamos da presença de profissionais de diferentes nacionalidades nas nossas equipas.

Como diretora clínica, o mais difícil é encontrar o equilíbrio entre a resposta a esta população sem médico de família e a proteção das equipas, para que não entrem em exaustão. A telemedicina está na equação como uma das alternativas a ser usada para aliviar a carga, sem comprometer o acesso. No Algarve, ser médico de família exige um grau de polivalência muito superior à média, porque nem sempre temos retaguarda hospitalar disponível e reencaminhar para Lisboa não é solução para todos, pois nem todos os doentes conseguem ou querem ir.

E tem sido fácil atrair e fixar os médicos mais jovens?

Diria que o balanço é francamente positivo. Na ULS Algarve estamos a reter mais de 90% dos recém-especialistas: no último concurso só um decidiu não ficar e, em contrapartida, vieram três colegas de outras regiões. O segredo tem sido escutar e criar condições reais de crescimento. Sempre que chegam, reúno-me com eles para perceber expectativas e, dentro do possível, dando-lhes margem para concretizarem projetos. O equilíbrio entre satisfação profissional e atividade assistencial nunca é fácil, mas quando as pessoas percebem que têm voz e futuro, ficam.

Enquanto não existirem vagas carenciadas com incentivos salariais claros, a minha prioridade é mantê-los dentro do SNS, mesmo que, a dada altura, queiram rodar para outra zona. É uma visão de longo prazo: quanto mais médicos tivermos no sistema, mais cedo conseguiremos aliviar a sobrecarga nos pontos mais frágeis.

Além disso, apostamos em fatores que contam: qualidade de vida, com protocolos com autarquias para apoio à habitação e outras facilidades – o Algarve tem um custo de vida desafiante em certas zonas. A prova de que estamos no caminho certo é que, mesmo numa região conhecida pelos défices, estamos a transformar essa narrativa: o Algarve, além de sol e praia, também pode ser um excelente laboratório de boas práticas em Medicina Familiar.

“O tempo protegido para investigação é uma boa ideia, mas, atualmente, é preciso pensar onde é que este se integra, porque é alocado a mais a horas extraordinárias, o que desequilibra a vida profissional e pessoal”

A região tem um centro de saúde universitário. Acaba por ser um projeto que atrai os jovens que querem conciliar a atividade assistencial com a investigação e a docência?

Sem dúvida. O próprio desenho do curso de Medicina da Universidade do Algarve faz dos CSP o palco principal desde o primeiro ano do curso e o que aproxima, naturalmente, os jovens médicos da clínica, da docência e da investigação ao mesmo tempo. Um grande número dos nossos médicos de família são tutores formais; recebem estudantes de Medicina todas as semanas e isso abre portas e é diferenciador. O novo Centro de Saúde Universitário, em Loulé, veio cimentar esse triângulo prestação de cuidados médicos-ensino-ciência.

É um espaço privilegiado para que os médicos e outros profissionais da área dos CSP possam ir mais além, com maior acesso a redes de investigação. Estão a ser criados os alicerces para se começar a fazer mais investigação em CSP. O centro de saúde universitário é a sede, aliando a ciência e a prática diária. Contribui, sem dúvida, para a retenção de profissionais, que queiram manter ligação à academia.

Claro que o trabalho em Medicina Geral e Familiar continua exigente; a pressão assistencial não desaparece. Enquanto especialidade também é preciso repensar nos tempos protegidos para investigação, entre outras funções. Apesar de se dizer que estes existem, e que cabe a cada equipa criá-los, a verdade é que a pressão assistencial e dos números é muito grande. O médico tem sempre de pensar que o tempo protegido vai ter impacto na remuneração dos outros colegas, logo não há grande autonomia. O tempo protegido para investigação é uma boa ideia, mas, atualmente, é preciso pensar onde é que este se integra, porque é alocado a mais a horas extraordinárias, o que desequilibra a vida profissional e pessoal.

E que outros projetos têm na ULS Algarve e que já fazem – ou vão fazer – a diferença?

Existem alguns projetos inovadores em fase de desenvolvimento e implementação com financiamento europeu e que, em breve, vão dar frutos e serão conhecidos. Mas temos vários projetos diferenciadores na região, um deles é o da Monitorização Ambulatória da Pressão Arterial (MAPA). Desde o início de 2020 que cada médico de família, em cerca de 33 unidades dos CSP da região, tem acesso direto a estes dispositivos, prontos a ser usados pelas equipas, sem qualquer custo adicional. Este investimento tem sido determinante para uma vigilância muito mais eficaz dos doentes hipertensos, permitindo diagnósticos mais precisos e ajustando terapêuticas de forma segura. É uma ferramenta que melhora silenciosamente a qualidade dos cuidados e tem sido uma mais-valia inequívoca, tanto para os utentes como para os profissionais.

Além disso, a região tem outros projetos estruturantes tais como a extensa rede de Radiologia nos centros de saúde, com oito equipamentos fixos e dois portáteis para visitas domiciliárias e equipamentos com ajuda de leitura com Inteligência artificial na Radiologia de Tórax.  Desta forma, tem-se aumentado significativamente a capacidade de resposta dos médicos de família e evitam-se deslocações desnecessárias aos hospitais, ganhando-se tempo clínico.

Na área da saúde mental infantil, temos o modelo dos Grupos de Apoio à Saúde Mental Infantil (GASMI), que funcionam com o apoio de três médicos pedopsiquiatras do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, há mais de 20 anos. Este acompanhamento é feito a dez equipas locais multidisciplinares, constituídas por médicos de família, enfermeiros, psicólogos, terapeuta ocupacional, terapeuta da fala, fisioterapeuta e assistente social, permitindo uma abordagem integrada e segura de casos até aos 12 anos, com continuidade de cuidados no território. As crianças são avaliadas e o médico de família, com o apoio à distância da pedopsiquiatra, inicia e reajusta os fármacos.

Temos a funcionar um programa de reabilitação respiratória para doentes com fibrose pulmonar e DPOC, com equipa composta por uma pneumologista, uma médica de família e uma fisioterapeuta. Está previsto o alargamento a outras zonas do Algarve.

Mas mais do que acumular iniciativas, o que importa é que os profissionais sintam que têm margem para inovar, crescer e envolver-se em projetos com impacto real no dia a dia dos utentes.

Em suma, as adversidades da região acabam por ser oportunidades?

Sem dúvida. As adversidades da região, quando bem geridas, transformam-se em oportunidades para inovar e evoluir. Veja-se o exemplo das urgências, que têm sido tão faladas nos últimos tempos: apesar da pressão constante, conseguimos até à data manter pelo menos uma das portas abertas, sem encerramentos. Isso só foi possível graças a um esforço notável das equipas, um verdadeiro compromisso com o serviço público.

O Algarve vive numa pressão permanente. Temos turistas durante todo o ano, populações muito diversas e uma geografia que cria desigualdades de acesso. Mas temos também uma enorme capacidade de adaptação, profissionais dedicados e uma matéria-prima que nos permite ser inovadores. Com as condições certas, esta pode ser uma região de excelência para captar e fixar mais médicos de família e testar novas formas de organização dos cuidados.

Maria João Garcia

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Fonte: Saúde Online

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