Atualidade

No Brasil “há um saudosismo de Bolsonaro”, denuncia Jeferson Tenório

Publicidade - continue a ler a seguir

“A literatura é sempre uma forma de contestação social”, afirma Jeferson Tenório. O autor brasileiro que está a lançar em Portugal o livro “De Onde Eles Vêm” (Ed. Companhia das Letras) considera que os seus livros são uma forma de “chamar a atenção” para o que diz ser uma forma de “racismo subtil”.

Na origem das histórias como a de Joaquim, que conta no novo livro, estão sempre as personagens que o “procuram”. A questão racial é central na obra literária de Jeferson Tenório que ao programa Ensaio Geral, da Renascença conta que já foi alvo de um ataque racista quando foi “abordado de maneira violenta pela polícia no Rio Grande do Sul” quando dava uma entrevista ao The New York Times.

Questionado sobre o atual estado do Brasil, Tenório alerta para “uma herança muito profunda e enraizada” e de um certo “saudosismo da volta de Bolsonaro”. Diz que o “governo de esquerda que já não é tão de esquerda” e que continua a haver violência. O autor que considera que o Brasil tem ainda contas a ajustar com Portugal diz que a “reparação precisa acontecer, de facto”.

Em “De Onde Eles Vêm” conta a história de Joaquim. Quem é este estudante universitário e o que quis contar através da sua história?

Publicidade - continue a ler a seguir

“De Onde Eles Vêm” é, antes de tudo, a história sobre a formação de um leitor, mas não é qualquer leitor. É um rapaz negro que mora na periferia, que entra na universidade pública pelo sistema de quotas raciais.

Escolhi esse período de meados dos anos 2000 para contar o que considero um facto histórico, que é a entrada de pessoas negras na universidade e que ao longo dos anos vem modificando a sociedade brasileira.

O Joaquim é o símbolo dessa mudança no perfil dos alunos na universidade e também dos efeitos disso na sociedade.

Escreve a partir do seu olhar desse universo universitário?

É a partir do meu olhar. Eu também fui um aluno quotista, tive uma experiência académica. O que me diferencia do Joaquim é que ele já é um leitor. Quando entra na universidade, causa um certo estranhamento no meio, porque ele é um dos poucos alunos negros.

É um personagem que gosta de hip-hop e de rap e ao mesmo tempo é um leitor do Marcel Proust e de James Joyce. Então, esse perfil causa um estranhamento, como se essas formas culturais não pudessem dialogar.

Este título não é uma interrogação, mas poderia ser?

Esse foi um cuidado que eu tomei, porque não queria que fosse uma pergunta. É uma afirmação “de onde eles vêm”, mas ela soa também como um questionamento.

Em determinado momento no livro também há uma pergunta “de onde eles vêm?” e que não tem necessariamente a ver com as origens, mas tem a ver com a criação literária, a arte, a leitura. Ou seja, é um título que tem várias camadas.

Qual a pertinência para si e a atualidade desta questão racial e cultural está em todo o livro?

Eu acho que é o que eu venho perseguindo nos meus livros. É essa aproximação dessa experiência de pessoas negras e esse contato com os livros, com a arte, com a cultura, tentando derrubar essas barreiras que impedem essas pessoas.

É uma forma de devolver a humanidade, retirada pela questão do racismo, pelo preconceito. Então, para mim, é muito importante que os meus personagens se aproximem desse campo intelectual.

Nesse sentido, até pelo seu trajeto literário e por outros livros seus já publicados em Portugal, esta é uma forma de combate a esse racismo? A sua literatura é uma forma ativa de combater preconceitos?

Eu acho que a literatura é sempre uma forma de contestação social. Digo que os meus livros trabalham com a relação entre as pessoas. E, como são pessoas negras, acho que isso ganha uma outra discussão que tem a ver com o racismo estrutural.

Acho que o que os meus livros fazem, na verdade, é chamar a atenção para esse racismo subtil, esse racismo que, às vezes, não é identificado de maneira muito explícita, e convidar o leitor a fazer uma reflexão sobre o racismo e sobre o racismo estrutural.

Ao mesmo tempo, este “De Onde Eles Vêm” é também um livro sobre a importância da leitura e a forma como ela pode ajudar a combater esses preconceitos. Quão importante é a leitura na formação de qualquer ser humano?

A leitura é uma forma de experienciar o mundo, de experienciar outras vidas, outras vivências. A literatura é um grande encontro entre estranhos.

Um autor do Brasil escreve um livro e, de repente, um leitor português se identifica, mesmo não sendo uma pessoa negra, porque a literatura tem essa possibilidade de empatia, de identificação.

É uma forma também de combater o racismo, porque você se coloca no lugar daquela pessoa enquanto está lendo.

Ajuda a encontrar a compreensão do outro?

É. Eu acho que, quando a gente se aproxima da dor do outro, a gente se sente afetado. E acho que é justamente isso que procuro fazer com os meus livros.

Sensibilizar o outro, afetar o outro, para que ele também se identifique e consiga exercer essa alteridade, que é tentar se aproximar.

Infelizmente, muitas vezes, esse é cada vez menos o caminho que estamos a viver. O discurso de ódio é cada vez mais gritante, fala mais alto. Como é que o Jeferson olha para essa questão, sobretudo vendo que ela se passa não só a nível da sociedade, mas também a nível político e de dirigentes mundiais?

É, o discurso de ódio é o efeito colateral desse avanço de uma extrema-direita conservadora e que procura, justamente, aniquilar todo o tipo de diferença.

Eu acho que é importante que, cada vez mais, a gente tente ganhar terreno também nesse espaço, produzindo boas histórias, boa arte, boa poesia, boa literatura, porque, assim, chegamos ao coração das pessoas.

Acho que o discurso político é importante, mas a arte chega a um outro lugar da subjetividade, que é esse da sensibilidade.

É esse o caminho que quer continuar como escritor, procurar estas personagens que tenham esta identidade racial?

Acho que são os personagens que me procuram. Eles convivem comigo há muitos anos. Tenho muitos personagens, e são personagens negros, acho que pela minha experiência.

Eu penso primeiro em que tipo de relação esses personagens têm com o mundo e consigo próprios, e depois defino qual é a cor deles.

Não é algo que vem primeiro?

Não, o que vem primeiro é a experiência existencial, e por isso que é que este último livro é existencialista, por todas as citações que há sobre Sartre, Simone de Beauvoir, Camus. Acho que vem primeiro a existência e depois a essência.

As universidades são hoje, muitas vezes, palco de discussões políticas, e estão a ser alvo de ataque. Vemos o exemplo de Donald Trump, nos Estados Unidos, a querer interferir diretamente nas universidades e a excluir estudantes do acesso à universidade por serem estrangeiros. A universidade tem visto a sua verdadeira função atacada?

Isso tem acontecido porque a escola e a universidade são as últimas barreiras antes da barbárie. Donald Trump sabe disso. Sabe que ali é a última trincheira, é o último lugar onde é possível barrar qualquer tipo de barbárie que está por vir.

Me parece que se as coisas continuarem como estão, acho que teremos um futuro bastante sombrio pela frente. É importante que haja essa resistência e é importante que haja protestos que defendam o conhecimento e a arte.

Recordo-me quando conversámos há dois anos na Feira do Livro de São Paulo, o contexto político do Brasil era outro. Há ainda muitos resquícios daquilo que ficou da presidência de Jair Bolsonaro?

Há uma herança muito profunda, enraizada no Brasil. Há um saudosismo da volta de Bolsonaro.

Por outro lado, há também um governo de esquerda que já não é tão de esquerda assim, porque governa sobre uma influência de um parlamento de centro-direita. O presidente Lula da Silva tem, às vezes, pouco o que fazer.

A diferença que temos do Bolsonaro para o Lula é que hoje não temos um discurso declarado preconceituoso contra negros, mulheres, mas as violências continuam acontecendo.

A pobreza continua, as violências continuam, e isso é fruto da estrutura que se criou em torno do poder.

E o Jeferson Tenório sente isso na pele, literalmente?

Sim, eu acho que o facto de ser um autor hoje reconhecido nas ruas, no Brasil, ainda continuo sofrendo violências.

No ano passado, fui abordado de maneira violenta pela polícia no Rio Grande do Sul, e estava dando uma entrevista para o jornal The New York Times.

Fui abordado justamente nesse momento. Então, eu acho que não estou imune.

Como é que imagina o Brasil ideal?

Eu acho que é um Brasil diverso, um Brasil mais justo, com menos desigualdades e com mais leitores.

Somos um país grande, com 250 milhões de pessoas, e a taxa de leitura ainda é muito pequena, e que a gente tenha saúde, educação para todos.

Eu sei que é um pouco utópico, mas se eu não acreditar nisso, não tenho mais motivos para escrever.

Há ainda contas a ajustar com o Portugal de há 500 anos?

Eu acho que a gente tem contas a ajustar com a Europa toda, em um certo sentido, não só o Brasil, mas as ex-colónias.

O presidente Marcelo [Rebelo de Sousa], acho que no ano passado, deu uma declaração dizendo que reconhecia a colonização, enfim, tudo o que gerou, e que era preciso fazer uma reparação.

Acho que é um primeiro passo, o reconhecimento, e essa reparação precisa acontecer de facto. Não sei se financeiramente ou simbolicamente, mas acho que é importante para os dois países.


Source link

94,589Fans
287seguidores
6,774seguidores
3,579Seguidores
105Subscritores
3,384Membros
 Segue o nosso canal
Faz um DonativoFaz um donativo

Publicidade - continue a ler a seguir

Seja membro da PortalEnf 




Portalenf Comunidade de Saúde

A PortalEnf é um Portal de Saúde on-line que tem por objectivo divulgar tutoriais e notícias sobre a Saúde e a Enfermagem de forma a promover o conhecimento entre os seus membros.

Deixe um comentário

Publicidade - continue a ler a seguir
Botão Voltar ao Topo
Send this to a friend