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Tiago Pitta e Cunha: “Precisamos de impulso político, mais ciência e uma verdadeira revolução na economia azul”

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Quando o presidente executivo da Fundação Oceano Azul recebeu a Renascença antes de partir para Nice, a versão final do Pacto Europeu do Oceano tinha acabado de ser anunciada. Tiago Pitta e Cunha conheceu os seis pilares da estratégia de Bruxelas ao longo desta entrevista, ensaiando uma primeira análise aos pontos-chave e explicitando onde estão os domínios considerados essenciais para a Fundação Oceano Azul.

A organização, com sede em Lisboa, foi proponente de um Pacto Europeu para o Oceano a par do instituto de reflexão Europe Jacques Delors. Nas vésperas da Conferência dos Oceanos em Nice, Tiago Pitta e Cunha insiste na necessidade de mais ambição na aposta na ciência dos oceanos, na economia azul e numa política externa para o Oceano.

A proposta de harmonização de toda a legislação que existe ao nível europeu poderá ser pouco mais do que apenas um índice das leis existentes?

Na primeira versão do Pacto que surgiu, e que depois foi retirada, havia uma grande diferença de ambição entre os proponentes do Pacto, como a Fundação Oceano Azul e o ‘think tank’ Europe Jacques Delors, e como a Comissão Europeia se posiciona neste tema do mar. Para nós era absolutamente claro que havia dois ou três aspetos que são fundamentais para se poder chamar a este exercício um verdadeiro Pacto da Europa com o Oceano.

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Em primeiro lugar, devia surgir uma ‘visão política de alto nível’, que trouxesse a geopolítica europeia para dentro de um ‘Pacto Com o Mar’, ou seja, a compreensão da importância do Oceano para a segurança e defesa da Europa, mas também para o seu posicionamento na economia. A Europa é ainda hoje, apesar da concorrência da China, a maior união de transportes marítimos do mundo. Nós fomos tradicionalmente os grandes velejadores, e isso deve-se a muitas coisas: à geografia que levou à história e à história que levou à economia. Há um posicionamento mundial da Europa que tinha de estar nessa visão de alto nível.

Parece-me também fundamental que este Pacto ‘leia’ o mundo do século XXI, e nos empurre para novas frentes onde o Oceano vai tornar a Europa mais pertinente no século XXI. Isso é incompatível com a manutenção do ‘status quo’, com tudo aquilo que a Europa já faz no mar.

O que vimos na primeira versão do Pacto foi um enumerar de uma miríade de iniciativas, de programas, de planos que existem para o mar. Há planos completamente concretos e políticas industriais para os portos, para o turismo marítimo, para as indústrias marítimas. Se estivermos apenas a juntar toda essa amálgama de iniciativas no mesmo documento, e a dizer que elas se devem articular, não estamos a avançar muito.

O que está definido neste Pacto é um ‘Ocean Act’, uma Lei do Oceano, em 2027, que a partir de uma revisão da Diretiva de Planeamento Espacial Marítimo, pretendendo simplificar os processos de coordenação, reduzir as obrigações de reporte para os Estados-membros e providenciar uma estratégia clara para implementar as legislações existentes.

Isto é um pouco esta lógica mais pragmática. Tem a ver com a simplificação, com a redução do peso administrativo que os Estados trazem às economias privadas. Obviamente que há uma perspetiva muito própria também da Comissão que hoje está a trabalhar na União Europeia. Parece-me que era preciso ser muito mais ambicioso que isso.

Isto não é só uma questão de reduzir burocracia. Se quiser ser pertinente com o mar no século XXI, a União Europeia tem de criar uma economia do mar, virada para os novos usos do mar, para uma economia sustentável e circular. Se nós mantivermos toda a economia do mar que existe hoje na Europa – que é uma economia não ‘verde’, mas ‘castanha’ – despejamos dinheiro para cima das pescas, sem que isso traduza em crescimento económico em nenhum país da Europa, mas mantendo apenas vivo – muitas vezes ligado à máquina – um setor económico que continua a prevalecer com esses subsídios.

Pacto Europeu para os Oceanos quer impulsionar economia azul e harmonizar legislação até 2027

O mesmo também podemos dizer, por exemplo, dos subsídios para a construção naval, em que podemos continuar a construir navios que são hoje movidos a propulsões obsoletas, que não são aquelas que vão poder, de alguma maneira, levar a Europa para a frente, no chamado ‘green shipping’ (Navegação Verde) ou ‘clean vessel’ (Embarcação Limpa)

Se isto for apenas para acrescentar uma camada nova – porque há um texto novo que é um Pacto – àquilo que já existe, nós nem sequer, no fim, vamos estar a reduzir burocracia, nem a simplificar. Vamos estar, como acontece frequentemente na Europa, a acrescentar camada em cima de camada, e, portanto, a manter tudo igual, ou até, se calhar, a piorar as coisas. O que era fundamental aqui era olhar para o que existe e ter um tempo de reflexão.

Congratulo-me que haja um ‘Ocean Act’ em 2027. Achámos sempre que a legislação era necessária, mas não apenas para cortar, porque isso poderá não ser o suficiente. Aqui era preciso ter a ambição de rasgar novos caminhos e de emendar o caminho do passado. Não podemos querer ter uma economia do futuro com a ‘canga’ toda de uma economia do passado e do presente que tem um peso enorme nas contas da União.

O Pacto apresentado pela Comissão Europeia assenta em seis pilares: restaurar a saúde dos Oceanos, reforçar a competitividade sustentável da economia azul, apoiar as comunidades costeiras e insulares, promover a investigação no domínio dos Oceanos, reforçar a segurança marítima e dar mais força à diplomacia do Oceano da União Europeia e à governação internacional do Oceano. O que pensa desta estratégia?

Todos os pilares são pertinentes, mas poderia haver mais ambição no conteúdo de cada um deles. A Fundação Oceano Azul vai apresentar, na conferência do Oceano das Nações Unidas em Nice, um documento um pouco em reação a este pacto, onde identificamos três prioridades que consideramos que são as mais importantes entre estes seis pilares.

São as mais importantes na ótica de uma fundação para a conservação do Oceano, muito preocupada com o estado do sistema do Oceano. Sabemos que os cientistas dos sistemas da Terra estão profundamente preocupados com a situação do Oceano. Eles explicam-nos que é o Oceano que comanda os sistemas de suporte de vida no planeta.

O planeta tem três sistemas de suporte de vida: a atmosfera, a hidrosfera e a biosfera. Todos eles dependem do Oceano. Sem ele, não haveria sequer a possibilidade de haver oxigénio na atmosfera. A biosfera é sobre biologia e 80% das formas de vida vivem no Oceano. Sem Oceano não poderíamos ter a biosfera que temos. E a hidrosfera é 99% Oceano. Estes cientistas dizem-nos que é preciso arrepiar caminho. Temos de olhar para o Oceano numa perspetiva muito mais abrangente, do ponto de vista da sua sustentabilidade.

Em primeiro lugar, a Europa pode investir mais em ciência. Por isso gosto de ler no Pacto que há uma estratégia para a investigação científica e para a inovação do mar. Isso é fundamental. A Europa precisa de investir muito mais na ciência do mar do que investe. Investe muito mais no espaço. Precisa de investir com propósito, com sentido e com a compreensão sobre onde é que estão os interesses da União. Temos de investir naquilo que possa potenciar a satisfação dos interesses da União.

Isso tem a ver também com a preservação do Oceano e a criação das áreas marinhas protegidas, a proteção de 30% do Oceano até 2030, a harmonização dos usos do Oceano. Daí a importância da revisão da Diretiva para o Planeamento Espacial Marítimo que observo neste Pacto.

Se não sabemos mais do Oceano, não compreendemos sequer como é que os diferentes fenómenos do Oceano se processam. Se tivermos mais ciência do Oceano, vamos compreender que não podemos pescar nem tubarões, nem pescar krill, por exemplo, na Antártida, porque são espécies fundamentais no topo da cadeia ou na base da cadeia trófica, que, por sua vez, mantém o ‘motor do Oceano’ a funcionar. Sabemos que não podemos começar a fazer exploração mineira submarina, porque isso vai destruir completamente o funcionamento do ‘motor do Oceano’.

A questão da mineração tem sido um dos pontos mais criticados pelas organizações não-governamentais

Não temos aqui, de facto, ainda aquela ambição que é necessária ter. E principalmente a compreensão de que não vai haver economia do mar se já não houver mar. Se o capital natural azul, determinante para a vida de todas as espécies do planeta, a começar na espécie humana, continuar a ser delapidado como se não houvesse amanhã, não vamos poder explorar depois os juros do capital. Sem capital não há juros.

Um Pacto europeu tem de caminhar para uma Lei do Oceano, que não tem de ser uma lei apenas só sobre ambiente, como muita gente receia. Tem de ter o ambiente como ponto de partida e a parte da investigação científica é a base, quer para uma economia inovadora e respeitadora do ambiente, quer para a defesa do próprio ambiente marinho e do Oceano. Temos de entrar numa era de um novo entendimento sobre o Oceano, deixar de ver o Oceano como cinco espaços, como nos diz a legislação internacional que identifica cinco Oceanos: o Pacífico, o Atlântico, o Índico, o Antártico e o Ártico. Os cientistas do Sistema da Terra dizem-nos que só existe um Oceano.

Pesca de arrasto reduz a absorção de CO2 pelos oceanos

A parte da investigação é fundamental tal como a da economia. Interessa-nos na Europa ter um Oceano sustentável para depois podermos ser altamente competitivos do ponto de vista económico com outros blocos económicos.

Por isso, em segundo lugar, a economia da Europa vai ter de mudar o ‘status quo’. Nós pedimos nada mais, nada menos que uma verdadeira revolução para a economia azul. Significa criar uma política industrial, mas não fracionada para os portos ou para o turismo, mas uma política industrial para toda a economia azul.

De fora desta economia azul deve ficar aquilo que não é azul: a mineração submarina, a criação de novas construções de exploração de gás e petróleo, a pesca de arrasto de fundo, a captura de tubarões e raias em extinção ou de krill. Com isso, conseguiríamos desviar recursos públicos para novas áreas, incluindo a biotecnologia azul, a nova aquacultura das algas e dos bivalves – que nos vai trazer segurança alimentar – as propulsões novas dos navios limpas, a eletrificação dos portos – os chamados portos verdes – e, obviamente, a energia eólica offshore, que também, com o respeito pela natureza, vai ser fundamental para o nosso componente de energia.

E finalmente, em terceiro lugar, uma política externa para o Oceano, porque a situação é de tal maneira urgente que são necessárias decisões a nível internacional que venham a implementar uma “agenda transformadora de Nice”.

A Declaração Final da Conferência de Nice já é conhecida.

Sou muito cético sobre as declarações finais. A Fundação Oceano Azul esteve nas primeira e segunda UNOC e viu o que foram as declarações finais. ‘Não puxam carroça’, ou seja, não mudam a agulha. São declarações finais em que se referem, mais uma vez, todos os temas candentes ligados ao Oceano. São importantes, mas, no fundo, é tudo feito de uma maneira muito declarativa e com um ritmo que não se compadece com a necessidade urgente de enfrentar a emergência.

Então para que serve a UNOC, a Conferência do Oceano das Nações Unidas?

Em 2022, a UNOC 2, a Conferência das Nações Unidas para o Oceano que teve lugar em Lisboa, serviu não tanto só pela sua declaração final, mas porque cada vez que há uma UNOC, fala-se dos Oceanos ao mais alto nível, de chefes de Estado e de Governo. A seguir a 2022, desencadeou-se uma energia e uma atenção política que permitiu acabar o Tratado do Alto Mar que há 20 anos que não se conseguia fechar. E permitiu ainda aquilo que é um dos maiores e mais importantes passos na história da humanidade, que é a decisão de proteger 30% do Oceano até 2030.

Era algo que estava completamente ‘fora do radar’, porque toda a gente pensava que conseguiríamos ter uma decisão sobre proteger 30% do planeta terrestre, mas nunca se pensou que o Oceano conseguisse entrar, porque o Oceano é muito mais difícil de proteger.

Para manter o planeta a funcionar, temos de preservar pelo menos 30% da natureza. Se não o fizermos até 2030, no entender dos cientistas, como a delapidação está a ser bastante intensa, já não vamos ter 30% para proteger. E, portanto, a alternativa é entre proteger 30% em 2030 ou proteger 20% em 2040.

Mas como é que se acelera isso? Porque sabemos que estamos muito longe.

Com muita pressão política, com muita vontade política. É aí que entra a UNOC. Este vai ser um dos grandes temas desta conferência. Outro tema será a cimeira do clima, a COP30 no Brasil. É muito importante que se passe uma mensagem clara de Nice para Belém do Pará, no Brasil, do Oceano para o clima. O Oceano não pode continuar arredado das negociações do clima.

Vai ser importante também discutir a pesca de arrasto de fundo, que está na ordem do dia, principalmente com o novo filme de David Attenborough, em que pela primeira vez conseguiram colocar câmeras de filmar nas redes de arrasto. Acho que vai mudar a opinião mundial sobre esse tema.

E vai-se também falar da mineração submarina, bem entendido, ou da descarbonização dos navios

E será abordado o Tratado do Alto Mar, mas ainda longe do número de ratificações que se pretende.

Ainda longe, mas todos os dias estão a aparecer novas ratificações. Os organizadores, como França, entendem que podemos chegar perto das 50. Não chegaremos, muito provavelmente, diria quase de certeza, às 60 ratificações.

Mas isso também não é importante, porque o mundo não acaba no dia em que acaba a cimeira do Oceano de Nice. O mundo continua. Como referi, aquando da cimeira do Oceano de Lisboa das Nações Unidas, as coisas que se conseguiram nos meses seguintes foram mais importantes que a cimeira em si propriamente dita.

E, portanto, o que podemos encontrar aqui nesta cimeira, é a ambição, o impulso que permita depois ter uma agenda verdadeiramente transformadora onde estes temas sejam solucionados.


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