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Na escolha do próximo Papa, “muitos cardeais estarão preocupados com o colapso da ordem mundial”

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Austen Ivereigh, jornalista britânico e autor de uma das biografias do Papa, considera que as transformações que Francisco introduziu na Igreja, como a sinodalidade ou a participação das mulheres na liderança, serão “permanentes”.

O escritor, que está em Portugal a propósito do seu novo livro “Em Primeiro Lugar Pertencer a Deus – Exercícios Espirituais com o Papa Francisco”, editado pela Paulinas, defende que um dos traços mais distintivos do Papa argentino é a “clareza do seu discernimento”.

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Em entrevista à Renascença, salienta que o colapso da ordem mundial é um dos temas de que os cardeais já falam, quando pensam na eleição do próximo Papa e diz que Francisco recusa intermediários. Tem “contacto direto com as fontes de informação” e “sabe sempre o que está a acontecer”, ao contrário de João Paulo II e Bento XVI, que “tinham secretários muito poderosos”, refere.

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Esta quinta-feira, dia 10, Austen Ivereigh dará uma conferência, no Colégio de São João de Brito, em Lisboa, intitulada “Chamados à Conversão numa mudança de época: o legado do Papa Francisco e o futuro da Igreja”.

Chega agora a Portugal o seu novo livro “Em Primeiro Lugar Pertencer a Deus – Exercícios Espirituais do Papa Francisco”. Como é que foi construindo cada um dos textos destes Exercícios Espirituais?

O livro é originalmente um retiro que dei aos jesuítas, em Inglaterra. A minha ideia foi usar as palestras que dava o padre Bergoglio – sendo jesuíta, pregava muitos retiros, na Argentina – e usar estas palestras como se o Papa fosse mesmo o diretor espiritual de um retiro de oito dias, como se fosse ele a dar os pontos, como dizemos [nos Exercícios Espirituais]. Usei aquelas palestras, mas também as homilias, os discursos do pontificado.

É uma combinação destas duas fontes e ambas estão ligadas à estrutura dos Exercícios. Há o primeiro dia, depois o segundo, o terceiro, seguindo o ritmo dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Este método é uma forma de fazer um caminho de conversão a que o Papa Francisco nos tem chamado nestes 12 anos. É uma forma de engarrafar, como digo, a dinâmica espiritual de conversão do pontificado num retiro de oito dias, que se pode, também, usar durante oito semanas ou oito meses. Pode ser usado por um grupo, uma comunidade, uma paróquia, por exemplo. Tem sido usado para isso na Irlanda e em Inglaterra, e tem sido muito frutuoso.

Que critérios usou para escolher esses textos?

No fundo, o critério foi o de identificar os ensinos do pontificado, do magistério papal que são mais relevantes para cada momento dos Exercícios Espirituais. Acho que a originalidade do texto é que é fiel ao caminho de Santo Inácio, com coisas que são muito de Francisco. Por exemplo, tenho um dia inteiro que se chama “O Senhor do Mundo” que amplia o tema da mundanidade, que é muito importante para Francisco e que tem a ver com um convite à Igreja para que não dependa do poder do mundo, mas confie na graça de Deus. Também há o tema da migração e da ecologia. Uso um dos Exercícios clássicos, uma das contemplações clássicas de Santo Inácio, “As Duas Bandeiras”, na escolha para uma conversão ecológica. São exemplos onde o pontificado tem influenciado, digamos, a minha escolha de textos.

Como é que estes textos são também uma maneira de conhecer melhor o Papa?

São uma forma de entender melhor as preocupações do seu pontificado, porque muitas vezes a linguagem e as prioridades do Papa são as prioridades de Santo Inácio, isto é, o caminho da conversão, a centralidade de Cristo. Foi muito interessante justapor o texto dos Exercícios aos do magistério do Papa, porque há muitas coisas que não sendo explícitas, estão por detrás do magistério. Os ritmos e as prioridades são os mesmos.

Até certo ponto, os papas têm sido tradicionalmente prisioneiros da corte do Vaticano.

Escreveu vários livros sobre o Papa Francisco. O que é que, do seu ponto de vista, é distintivo na sua personalidade e no exercício do seu ministério?

Se tivesse de escolher uma característica – ele tem muitas que têm tido impacto em mim –, mas se tivesse de escolher seria a clareza do seu discernimento. As pessoas que trabalham com ele no Vaticano, ou trabalharam antes, na Argentina, dizem que, enquanto a maioria das pessoas tem dificuldade em ver para além do horizonte, ele vê para além dos próximos três horizontes. É muito intuitivo, baseia-se muito no coração, no discernimento dos espíritos. Como o tem feito toda a vida, é muito rápido, muito visceral. Vê com muita, muita claridade.

Quando não vê, tem tendência para esperar. É muito paciente neste sentido. E quando as coisas são claras, avança com muita força, com muita valentia. É claro que pode cometer erros, como todos, mas isso geralmente acontece porque a informação que lhe foi dada é limitada ou defeituosa.

Isso é outra coisa que me surpreende sempre nele: a amplitude das suas fontes de informação. Ele sabe sempre o que está a acontecer – e este é um comentário tanto dos que gostam dele, como daqueles que não gostam. Acho que isto se deve ao seu contacto constante com pessoas comuns, pessoas fora do Vaticano. Claro que de manhã tem audiências oficiais no Palácio Apostólico, mas à tarde, que é normalmente quando o encontro, recebe informalmente pessoas em Santa Marta. Este canal aberto, possibilitado pelo facto de viver em Santa Marta, é fundamental para o exercício do seu papado. Significa que o Vaticano não pode continuar a funcionar como uma corte. O Papa tem este contacto direto com as fontes de informação. Isto parece-me muito importante.

O que de certo modo é revolucionário e inovador…

Acho que sim. Até certo ponto, os papas têm sido tradicionalmente prisioneiros da corte do Vaticano. O Palácio Apostólico, onde os papas têm vivido nos últimos séculos, tem uma série de corredores controlados por intermediários. Vendo isto, Francisco tem construído uma forma de exercer o papado onde não há intermediários. Até os seus secretários pessoais, que são muito bons, muito fiéis, ninguém sabe quem são. Eu sei, porque comunico com eles, mas não são figuras públicas. O Papa pede-lhes que fiquem [a trabalhar] com ele só três anos. Depois são substituídos. Não são intermediários, ajudam-no simplesmente a comunicar, o que é diferente, por exemplo, do que sucedia com Bento XVI e com João Paulo II que tinham secretários muito poderosos, que acabavam por controlar, até certo ponto, o papado, porque controlavam a comunicação. Para Francisco, é muito estratégico varrer com os intermediários.

A sinodalidade é a ferramenta principal para conseguir essa mudança cultural na Igreja.

Entre as diferentes reformas que foi implementando, ao longo do Pontificado, qual considera ser a mais revolucionária e também a que pode transformar a Igreja de forma mais estrutural?

A palavra revolucionária é sempre problemática, porque implica uma coisa totalmente nova, mas, de facto, a revolução de Francisco consiste na recuperação de uma coisa que a Igreja talvez tenha perdido. Diria, e não sou o único, que é a sinodalidade, porque a prática da sinodalidade, que é muito da Igreja, sobretudo da Igreja dos primeiros séculos, é uma forma particular da Igreja proceder, de se abrir ao Espírito. É a ideia de descobrir a vontade de Deus através do diálogo, da consulta, do envolvimento do povo de Deus no discernimento das decisões. Tudo isto é muito da Igreja, mas é uma coisa que se tinha perdido e que é fundamental para o futuro.

Estamos a viver, neste momento, uma mudança de época na sociedade, mas também na Igreja. A forma de ser católico vai ser muito diferente, já está a ser diferente. Há uma grande necessidade de recuperar esta forma de proceder, de ser, esse habitus, como se diz em Latim, que remonta aos primeiros séculos do Cristianismo, quando a Igreja não tinha poder, não tinha grande influência cultural, mas cativava pela forma de ser dos cristãos. Parece-me que esta é a reforma mais profunda do pontificado de Francisco e um convite para adotar este estilo de Deus, como ele diz. A sinodalidade é a ferramenta principal para conseguir essa mudança cultural na Igreja.

Há muitos bispos que não querem a sinodalidade e aguardam que desapareça, mas não vai desaparecer.

No fundo, trata-se de voltar à essência das primeiras comunidades cristãs, perdendo uma vertente política, mais ligada às estruturas e ao poder do Vaticano e de toda a hierarquia?

Não são coisas contraditórias, porque a hierarquia, o sacerdócio, o papado e as estruturas de autoridade da Igreja ficam, mas são complementadas pela horizontalidade da consulta, do envolvimento do Povo de Deus no discernimento da missão da Igreja. Diria que é mais recuperar estas formas primitivas da Igreja de uma forma relevante para a atualidade.

Por exemplo, o sínodo sobre a sinodalidade, que durou três anos e vai continuar por mais três, começou com a consulta mais ampla da história, muito mais ampla do que nos primeiros séculos do Cristianismo. Vivemos numa Igreja, num mundo muito mais global e temos tecnologia que facilita este tipo de consulta. Digamos que não é só voltar para trás, mas é recuperar e reformular para a atualidade o que precisamos.

A Igreja está preparada para responder a tantas portas e janelas que Francisco escancarou (e aqui podemos falar do sínodo, do lugar das mulheres na Igreja, do escândalo dos abusos sexuais)? Está preparada para toda esta transformação que Francisco iniciou?

A Igreja é muito, muito grande, e é muito difícil que uma reforma, uma mudança fomentada por um Papa possa chegar imediatamente a toda a Igreja. O que o Papa pode fazer é abrir janelas, abrir processos, como diria ele, que permitam esta mudança a longo prazo.

Em todos estes aspetos as reformas de Francisco são permanentes. Por exemplo, o lugar das mulheres na liderança da Igreja é fundamental. É impossível voltar para trás. O que há agora é resistência, sobretudo em culturas onde as mulheres não estão em lugares de liderança nas instituições. Há resistência cultural, também dos tradicionalistas. Ainda assim, acho que são sinais do futuro.

Para mim tem sido muito interessante estar no sínodo. Tenho estado envolvido desde o princípio, como especialista. Tenho falado com muitos bispos, e é muito óbvio que não imaginam voltar atrás. Isto é a implementação do Vaticano II. Na perspetiva do Concílio, a sinodalidade é natural. Neste sentido, não vejo forma de voltar atrás, mas sim, há muita resistência. Por exemplo, neste momento, há muitos bispos que não querem a sinodalidade e aguardam que desapareça, mas não vai desaparecer. A resistência é normal. A cultura e a mentalidade são sempre o mais difícil de mudar.

O facto de ter sobrevivido é um sinal de que Deus tem, ainda, uma missão para ele

Do ponto de vista político e social, e estou a pensar na crise migratória, na crise ambiental e nas atuais guerras, quais foram, na sua perspetiva, as conquistas de Francisco?

É um grande, grande contributo ter posto no centro da preocupação social da Igreja as migrações e a crise climática. Diria, também, que o facto de ter mudado, com base nos pontificados anteriores, a posição da Igreja a favor da não violência como forma de resolver os conflitos tem significado, pondo, por exemplo, menos ênfase na guerra justa, que pode ser justificada.

Há mudanças, também, na forma como se fala da pena de morte. Estes são passos definitivos na Igreja, passos adiante. Penso, também, no grande contributo da fraternidade como objetivo social da Igreja, na ideia de construirmos formas de viver em conjunto, importante sobretudo no atual momento em que estamos a perder as formas de convivência pacífica.

O que é que, na sua opinião, a recente doença e fragilidade de saúde do Papa Francisco trouxeram ao seu pontificado e aos fiéis?

Paciência, a paciência de Deus, a paciência como forma de ser cristã, de confiança na ação divina, apesar da debilidade e da fragilidade física. Estive em Roma neste tempo em que ele esteve no hospital. Podia ter morrido – quase o perdemos por duas vezes. O facto de ter sobrevivido é um sinal de que Deus tem, ainda, uma missão para ele, uma missão papal.

[Daqui para a frente], será um papado muito diferente, muito mais limitado do ponto de vista físico, mas mais criativo, mais dependente da graça de Deus. Vimos um exemplo disso há cinco anos, quando o Papa estava em confinamento e não podia sair. Ainda assim, encontrou formas de desempenhar a sua missão, formas muito criativas, muito interessantes. O livro que fizemos juntos, e que se chama “Sonhemos Juntos”, foi uma maneira de chegar a muitas pessoas fora da igreja.

A resignação continua a ser uma possibilidade?

Sim, sim continua a ser uma possibilidade. Digo isto porque o Papa tem dito várias vezes que se não pudesse exercer o Ministério Petrino, por razões físicas ou mentais, consideraria a possibilidade de resignação. A liberdade para discernir essa possibilidade é muito importante. É uma questão muito pessoal.

O que está claro é que ele pensa que não chegou esse momento. Por exemplo, se a sua saúde fosse tão débil que se tornasse numa distração permanente, acho que ele consideraria [essa hipótese]. Atualmente, ele dispõe de todas as suas faculdades mentais, tem a mente de uma pessoa de 50 anos, como disse o médico. Tem estado muito doente, está em convalescença, mas não há nenhuma razão para pensar, neste momento, que não pode continuar a exercer o papado desta outra forma de que já falei.

Hoje, a possibilidade de uma guerra é muito clara. Neste contexto, o papel da Igreja e o papel do papado são muito importantes

Quais são para si as grandes questões para a Igreja nos próximos anos?

Se tivermos um conclave dentro de um ou dois anos, acho que muitos cardeais estarão preocupados com o colapso da ordem mundial. Isto é muito importante para a Igreja, porque estamos numa situação que se pode comparar com o que aconteceu há 100 anos, um período de autoritarismo e populismo que conduziu à II Guerra Mundial. Hoje, a possibilidade de uma guerra é muito clara.

Neste contexto, o papel da Igreja e o papel do papado são muito importantes – acho que isto vai ser muito importante para os cardeais que já estão a falar disso e pensam no Papa que precisamos para o mundo de hoje, mas também para a Igreja de hoje.

Penso, também, que a continuação do grande projeto da sinodalidade vai ser uma prioridade. Se Francisco iniciou o caminho sinodal, o próximo Papa vai ser como Paulo VI depois de João XXIII. Como é que podemos continuar a implementar o caminho sinodal? É muito importante que Roma tenha anunciado este processo de implementação do sínodo para os próximos três anos, tornando claro que não importa quem será o Papa. É um processo da Igreja Universal, uma prioridade para o futuro. Neste mundo em crise, a Igreja pode ser uma fonte de renovação, de unidade e de fraternidade – isso é importantíssimo.

Uma pergunta mais pessoal: como é que, sendo jornalista, se tornou pregador e orientador de retiros?

Quando os jesuítas me convidaram para dirigir este retiro, a primeira coisa que lhes disse foi: “eu sou escritor, sou jornalista, não sou pregador de retiros”. Ao mesmo tempo, tenho feito muitos retiros, sou um leigo inaciano, faço todos os anos um retiro de oito dias. No fundo, penso que este é um serviço que posso prestar.

Depois de fazer este retiro, durante o confinamento de 2020, os jesuítas disseram-me que seria muito interessante publicar estes textos. Tenho trabalhado durante bastante tempo na sua elaboração, porque queria que fosse realmente um serviço à Igreja. No final, fi-lo porque outras pessoas mais qualificadas não o fizeram.

Aconteceu o mesmo, quando escrevi a biografia de Francisco há dez anos. Pensava: não sou biógrafo de ninguém, mas ninguém escreveu uma biografia que eu queira ler. Às vezes, as editoras dizem que o melhor livro para escrever é aquele que queres ler e ninguém escreveu.

O que é que tem aprendido com o Papa e com esta proximidade que têm tido?

A nível pessoal, sou seu discípulo. Já não sou um comentador, um escritor objetivo. Sou seu discípulo. Ele tem-me ensinado tanto, tanto que a minha forma de pensar, de olhar o mundo segue muito a linha dele. É o mestre que tenho procurado. Tenho tido grandes pessoas na minha vida espiritual que me têm ensinado muito, mas Francisco é o mestre que procurava inconscientemente.

Da última vez que o vi, em dezembro, quando já tinha com bronquite, estava bastante fraco. Apercebi-me que a nossa relação tinha mudado – foi mais como visitar um avô, havia ali uma ternura. É o Evangelho de Jesus Cristo segundo o Papa Francisco. Essa é, para mim, uma forma de seguir Jesus mais clara e mais convincente. Devo-lhe muito.


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