
Continuam a surgir casos de vacinação indevida. Já são mais de 340
Christian Bruna / EPA
Autarcas, dirigentes de lares, funcionários da Segurança Social e do INEM estão no centro dos vários casos de vacinação indevida denunciados em vários pontos do país, alguns a ser alvo de inquéritos por parte do Ministério Público.
O primeiro caso de vacinação que violou os critérios estabelecidos no Plano Nacional de Vacinação contra a covid-19 a ser denunciado envolveu José Calixto, presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, que justificou ter sido vacinado na qualidade de presidente da fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, que gere o lar onde, em agosto do ano passado, um surto fez 18 mortos.
Depois desta atuação ter sido condenada pelo coordenador da task-force responsável pelo plano de vacinação, Francisco Ramos, que considerou tratar-se de “um uso indevido da vacina”, sucederam-se os casos de outros autarcas como Francisco Araújo, presidente da Assembleia Municipal de Arcos de Valdevez e provedor da Santa Casa da Misericórdia local, ou de Elisabete Adrião, vereadora da Câmara do Seixal e responsável pelo Núcleo Local de Inserção de Sesimbra (NLI).
Situação mais polémica verificou-se no Centro Distrital de Setúbal do Instituto da Segurança Social (ISS), cuja diretora, Natividade Coelho, apresentou a demissão, a 29 de janeiro, depois de, na véspera, a SIC ter noticiado que 126 funcionários daquele organismo público tinham sido vacinados indevidamente.
O Instituto da Segurança Social abriu um processo de averiguações urgente com vista ao apuramento dos factos e, em resposta a uma pergunta da agência Lusa, a Procuradoria-Geral da República (PGR), confirmou que este é um dos casos em que, até ao momento, o Ministério Público (MP) já instaurou inquérito.
De acordo com a PGR, foram também já instaurados inquéritos relativamente aos casos que envolvem o INEM de Lisboa e o do Porto. Os dois casos foram denunciados pela Associação Nacional de Emergência e Proteção Civil (APROSOC), que divulgou que o presidente do INEM, Luís Meira, “contrariou as indicações do Ministério da Saúde e vacinou dezenas de profissionais não-essenciais e que não são profissionais de saúde”.
Segundo a APROSOC, o presidente do INEM “requisitou dezenas de vacinas a mais para imunizar funcionários do instituto, prestadores de serviços e colaboradores externos, parte dos quais seus amigos pessoais, violando as indicações do plano de vacinação”.
Na sequência da denuncia, o diretor regional do INEM no Norte, António Barbosa, assumiu que tinha autorizado a vacinação de 11 funcionários de uma pastelaria próxima, alegando tratar-se de uma opção para evitar o desperdício das doses de vacina. A polémica acabou, no entanto, por levar à demissão deste responsável.
Nos últimos dias vieram ainda a público alegados usos indevidos de vacinas no Centro de Apoio a Idosos de Portimão (cujos órgãos sociais foram incluídos na lista dos prioritários), e no Hospital Narciso Ferreira, em Vila Nova de Famalicão, (cujo administrador incluiu a filha e a mulher na lista de profissionais prioritários).
Além dos casos referidos, estão ainda a ser investigados pelo MP o lar da Santa Casa da Misericórdia de Bragança, onde terão sido vacinados todos os órgãos sociais, e a Santa Casa da Misericórdia do Montijo, cujo provedor terá incluído a mulher na lista da vacinação.
Entretanto, a agência Lusa noticiou que tanto a costureira como a mãe do presidente do Centro Social e Paroquial de Alfena (CSPA), em Valongo, foram vacinadas, em janeiro, juntamente com utentes e funcionários na instituição.
O pároco Manuel Fernando Silva explicou que a mãe, embora não seja funcionária nem utente, “faz vivência na instituição e tem contacto constante no seu interior”. A costureira acabou por ser vacinada por ter havido “sobra de vacinas”, acrescentando que, como tem um ateliê de costura com os utentes, esse “contacto mais ou menos frequente” levou a direção a “encarar que era de acautelar essa situação também”.
Segundo o jornal online Observador, o pároco de Valongo do Vouga e Macinhata do Vouga, no concelho de Águeda, também foi vacinado fora da vez. João Paulo Sarabando Marques, que diz não ter pedido nada, recebeu a primeira dose a pedido da Fundação da Nossa Senhora da Conceição.
A SRCentro da Ordem dos Enfermeiros também recebeu uma denúncia de vacinação indevida na Associação de Solidariedade Social de Farminhão (ASSF), em Viseu. Entre os dirigentes e outros funcionários não prioritários que receberam a vacina estão o presidente da direção, Duarte Coelho, a sua filha, que é vice-presidente, bem como a mulher, voluntária na cozinha.
Ainda de acordo com o mesmo jornal digital, a presidente da Câmara de Portimão, a socialista Isilda Gomes, também já recebeu as duas doses da vacina. A autarca foi incluída na lista dos profissionais que iriam trabalhar no hospital de campanha que foi recentemente erguido no recinto do Portimão Arena.
A justificação da presidente do município é que é também, por inerência, presidente da Proteção Civil de Portimão e está a trabalhar como voluntária no hospital de campanha afeto ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) a intermediar as videochamadas entre os doentes e os familiares.
Ministério empenhado em que situação não se repita
O Ministério da Saúde considerou já “inaceitável” qualquer utilização indevida de vacinas, alertando que este ato pode ser “criminalmente punível”, e pediu à task-force que prepare uma lista de suplentes de outras pessoas prioritárias para evitar que estes casos aconteçam.
Esta segunda-feira, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, afirmou que haverá “tolerância zero” para vacinações indevidas e confirmou que o plano de vacinação contemplará listas suplementares para as vacinas sobrantes.
A ministra da Saúde, Marta Temido, disse também que o Ministério está empenhado em que os casos de incumprimento “sejam tratados adequadamente”, porque o processo de vacinação “não pode sofrer fragilidades”.
A governante afirmou ainda que todas as situações que tenham sido reportadas como desvios às regras do plano de vacinação, que merecem “veemente repúdio”, “serão investigadas por quem de direito e serão retiradas as consequências após a investigação”.
Temido disse que “não há processos” em que não se faça antes uma “investigação exata e concreta” e acrescentou que, desde a semana passada, a Direção-Geral das Atividades em Saúde está a avaliar e a auditar semanalmente o processo de vacinação em curso.
Em declarações ao jornal Correio da Manhã, fonte da task-force responsável pela vacinação admitiu que já foram indevidamente vacinadas mais de 340 pessoas, a maior parte em IPSS, e que este número “peca, com toda a certeza, por defeito”.
De acordo com o matutino, estes casos podem configurar crime de abuso de poder, peculato ou até apropriação ilegítima, que podem ser punidos com penas até oito anos de prisão.