
Turismo de saúde: o novo eldorado português e o seu custo oculto para o SNS
Portugal atrai milhões em turismo de saúde, mas o crescimento desregulado agrava listas de espera e esgota profissionais do SNS. O modelo atual, assente no duplo exercício, coloca em risco a equidade do sistema público de saúde, exigindo regulação urgente
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O sector do turismo de saúde em Portugal conheceu um crescimento exponencial na última década, posicionando o país como um destino de eleição na Europa para cuidados médicos, sobretudo para cidadãos dos PALOP e da diáspora portuguesa. Estimativas da AICEP apontam para um volume de negócios na ordem dos 300 milhões de euros anuais, um nicho de mercado que tem sido activamente promovido pelo governo como um pilar de desenvolvimento económico. Este fluxo, que inclui desde tratamentos dentários e check-ups de rotina a cirurgias complexas em áreas como a oncologia, a ortopedia e a cardiologia, traz consigo receitas vitais para a economia nacional e para o sector da saúde privado. Uma directora clínica de uma clínica privada em Lisboa especializada em oncologia confirma esta tendência: “Recebemos cada vez mais pacientes de Angola e Moçambique que procuram tratamentos que não estão disponíveis nos seus países, bem como portugueses emigrados que combinam férias com cuidados de saúde. A confiança na formação dos nossos profissionais é um factor decisivo”.
Contudo, por detrás deste sucesso económico aparente, esconde-se uma realidade complexa que coloca sérias pressões sobre a sustentabilidade e a equidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A espinha dorsal deste modelo de turismo de saúde em Portugal assenta, em grande medida, num mecanismo controverso: o duplo exercício dos profissionais de saúde. Um estudo da Ordem dos Médicos estima que cerca de 65% dos especialistas hospitalares exercem actividade privada, um número que não para de aumentar. Esta simbiose, por um lado, permite ao sector privado oferecer qualidade técnica sem investir maciçamente na formação, mas, por outro, cria uma concorrência directa e assimétrica pelo mesmo recurso mais escasso: o tempo dos médicos e enfermeiros altamente qualificados.
A tensão é palpável em especialidades críticas como a ortopedia e a oftalmologia, onde as listas de espera no SNS podem facilmente ultrapassar um ano, enquanto no sector privado os tratamentos estão disponíveis em dias ou semanas. Esta dicotomia concretiza o risco de um sistema de saúde a duas velocidades. Enquanto os turistas de saúde e os cidadãos com maior capacidade financeira acedem a cuidados rápidos e de qualidade no sector privado, os utentes dependentes do SNS veem os seus tempos de espera agravarem-se. Um economista da saúde da Católica-Lisbon alerta para este perigo: “Se não formos capazes de gerir este crescimento de forma estruturada, arriscamo-nos a cristalizar uma iniquidade profunda. O sector público pode tornar-se, inadvertidamente, um viveiro de formação para um sector privado voltado para quem pode pagar, esvaziando-se de capacidade clínica e alargando o fosso no acesso”.
A comparação com destinos históricos de turismo médico, como a Tailândia ou a Índia, é elucidativa. Nestes países, o modelo foi frequentemente construído com hospitais privados que recrutam profissionais de forma dedicada, por vezes internacionalmente, criando um ecossistema paralelo ao sistema público. Em Portugal, a linha é muito mais ténue. A falta de uma regulamentação específica para este fenómeno cria uma zona cinzenta onde os mesmos profissionais dividem o seu tempo – e energia – entre os dois sectores. Esta sobrecarga levanta questões prementes não só sobre conflitos de interesse, mas também sobre o bem-estar e o esgotamento profissional, que podem, em última análise, comprometer a segurança do doente em ambos os contextos.
Olhando para o contexto europeu, o caso de Espanha oferece lições importantes. Em cidades como Barcelona, hospitais públicos de referência, como o Hospital Clínic, foram autorizados a criar unidades privadas dedicadas a doentes internacionais (não residentes). As receitas geradas por estas unidades revertem parcialmente para o financiamento do sistema público, criando um ciclo virtuoso de reinvestimento. Este modelo, apesar de não estar isento de críticas, tenta capitalizar a reputação do sector público de uma forma que o fortalece, em vez de o drenar.
Em Portugal, debates semelhantes sobre a criação de um modelo híbrido ou a taxação específica da actividade do turismo de saúde para benefício do SNS têm sido sistematicamente adiados, frequentemente por receio de reacções políticas e da corporativas. A ausência de um quadro estratégico que defina regras do jogo é o caldo de cultura para os actuais desequilíbrios. O desenvolvimento de um cluster de saúde de excelência é, inquestionavelmente, uma oportunidade económica e de inovação para o país. No entanto, este projecto não pode avançar à custa do princípio da universalidade que está na base do SNS, consagrado na Constituição da República.
O relatório “Health at a Glance 2025” da OCDE vem sublinhar a importância de sistemas de saúde resilientes e equitativos. Neste contexto, o desafio português é claro e premente: encontrar o ponto de equilíbrio. É imperativo conceber um modelo de governança que permita aproveitar as oportunidades económicas do turismo de saúde – atraindo investimento, criando empregos e fomentando a inovação – sem comprometer a sustentabilidade e a equidade do sistema público. Isto poderá passar pela regulação do duplo exercício, por incentivos para a dedicação exclusiva em áreas críticas do SNS, ou pela criação de mecanismos de partilha de receitas, como o exemplo espanhol sugere. O tempo de ignorar esta tensão entre o lucro privado e o serviço público está a esgotar-se. A escolha é entre um mercado de saúde selvagem que alarga desigualdades ou um modelo inteligente que valoriza a saúde como um bem económico e social.
Link de acesso: https://doi.org/10.1787/8f9e3f98-en
NR/OCDE/HN
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