
sentimentalismo convencional do filme da Netflix elevado por Kate Winslet e elenco de luxo
A HISTÓRIA: Nos dias que antecedem o Natal, a frágil saúde da mãe lança quatro irmãos adultos e o seu pai exasperante numa espiral de caos familiar que os obriga a enfrentar as suas relações disfuncionais e a possibilidade da perda. Mas June, essa mãe de espírito aguçado, está determinada a orquestrar o seu destino como bem entende: com um humor ácido, uma franqueza desconcertante e muito amor.
“Adeus, June”: disponível na Netflix a 24 de dezembro de 2025.
Crítica: Manuel São Bento (aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).
Classificação (0 a 5): * * *
“Adeus, June” é um estudo íntimo sobre a fragilidade dos laços familiares, equilibrando a realização sensível e atmosférica de Kate Winslet com interpretações avassaladoras de um elenco que eleva arquétipos a figuras profundamente humanas. Embora a narrativa siga trilhos convencionais, a obra triunfa ao transformar o luto antecipado num laboratório de emoções onde a dor se torna a matéria-prima para a descoberta da paz interior. No final, fica a lição de que a morte não é apenas o encerramento abrupto de um livro, mas o último capítulo de uma vida que merece ser lida com a coragem de quem sabe que o amor é a única coisa que sobrevive ao silêncio eterno.
A crítica
Iniciei a visualização caseira de “Adeus, June”: sem quaisquer expectativas concretas, movido apenas por uma curiosidade genuína em relação ao que Kate Winslet poderia alcançar agora que se senta na cadeira de realizadora. Sabia pouco sobre o projeto, para além do facto da narrativa se desenrolar na época natalícia e do desejo da nova cineasta em apoiar novos talentos na indústria se ter refletido na escolha de muitos estreantes para os departamentos técnicos. É sempre refrescante testemunhar uma figura de proeminência mundial a abrir portas a quem está a começar e essa energia de renovação sente-se na textura da obra, mesmo que o resultado final oscile entre o brilhantismo interpretativo e as armadilhas de um sentimentalismo mais convencional.
Com um argumento assinado por Joe Anders (filho de Winslet e do cineasta Sam Mendes), a história foca-se no último encontro de uma família disfuncional em torno da matriarca, June (Helen Mirren). O elenco de peso inclui ainda a própria Winslet, Andrea Riseborough (“Para Leslie”), Toni Collette (“Hereditário”), Johnny Flynn (“Emma”), Timothy Spall (“Mr. Turner”) e Fisayo Akinade (“Heartstopper”). A premissa é simples e direta: perante a iminência da morte, os segredos, as mágoas acumuladas e os papéis que cada um desempenha na estrutura familiar são colocados sob um microscópio emocional, transformando um cenário de hospital no palco central de uma despedida inevitável.
Não sou propriamente um espectador de se inundar em lágrimas com facilidade durante cenas tristes apenas porque o guião assim o dita. Se não me importar com as personagens ou com a história em si, os momentos dramáticos passam sem deixar marca – exceptuando casos que envolvam animais, especialmente cães. Contudo, serve como uma espécie de “regra de ouro”: mesmo que um filme seja formulaico, genérico ou previsível, se me emocionar e chegar ao ponto de chorar, é porque a obra conseguiu o mais importante: fazer-me sentir algo real.
É precisamente o que acontece em “Adeus, June”. O filme não reinventa a roda e o desfecho antecipa-se desde os primeiros minutos, mas o foco reside no estudo das dinâmicas familiares perante o adeus, um mergulho profundo no luto antecipado e na reflexão sobre o que realmente importa quando o tempo escasseia.
A narrativa explora de forma acutilante como os irmãos ficam muitas vezes presos nas identidades que formaram ao longo das suas vidas, seja a filha mais velha responsável mas ausente, a rebelde desvalorizada ou a “ovelha negra” que fugiu para longe. Quando a crise de saúde de June se instala, estes papéis predefinidos deixam de funcionar, forçando-os a verem-se finalmente como adultos imperfeitos.
Este processo de desconstrução é, por vezes, emocionalmente tortuoso, apresentando várias sequências de momentos desconfortáveis que servem para carregar no acelerador do sentimentalismo. “Adeus, June” não justifica totalmente a sua duração de quase duas horas, apresentando um conjunto de personagens demasiado vasto para um turbilhão familiar que já é, por si só, bastante denso, tornando a experiência ocasionalmente penosa.
Apesar de algumas figuras serem desenhadas de forma arquetípica, as interpretações são tão poderosas que acabei por me render. Riseborough é o grande destaque como Molly, a irmã mais vocal e ressentida, transmitindo uma energia de alguém que está permanentemente prestes a quebrar. Winslet surge logo atrás com uma exibição magnífica de contenção na pele de Julia, a filha que tenta gerir a morte como se fosse um projeto de trabalho; quando finalmente permite que as defesas caiam, o impacto é devastador. Flynn e Spall também brilham, com o último a equilibrar o alívio cómico inicial com uma negação masculina crua e dolorosa. Quanto a Mirren, a atriz é sempre impecável, sendo o sol em torno do qual todos orbitam, enquanto Akinade, como o enfermeiro Angel, oferece a bússola moral necessária para validar o caos daquela família.
No que toca à realização, fiquei positivamente impressionado com o trabalho de Winslet. A cineasta-atriz demonstra um cuidado natural na criação de atmosferas íntimas, utilizando planos longos e estáticos que permitem aos atores habitar verdadeiramente o espaço e o silêncio. A forma como capta o tempo de espera revela uma sensibilidade que foge ao registo mais histriónico. Denota-se uma arquitetura de papéis familiares que filma com paciência, focando nos rostos e nas reações silenciosas, o que confere a “Adeus, June” uma honestidade palpável.
A conclusão, embora esperada, é elevada por uma cena final belíssima onde se percebe a harmonia entre todos os departamentos técnicos, provando que a colaboração entre os estreantes e os veteranos deu frutos visíveis. É um momento de união que encapsula a ideia de que as famílias não precisam de ser perfeitas para serem completas.
Não recomendaria que assistissem a este filme durante o dia de Natal propriamente dito, dada a carga melancólica da história. No entanto, é uma obra que deve ser vista assim que tiverem oportunidade, especialmente se estiverem num momento de reflexão sobre os vossos próprios laços familiares e sobre a importância de fazer as pazes com o passado enquanto o presente ainda nos permite o toque e a palavra.
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