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Rafaela Rosário: “Transformar a universalidade legal em acesso real exige políticas que promovam equidade”

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HealthNews (HN) – Tendo em conta que o acesso aos cuidados de saúde em Portugal é teoricamente universal, como se explica a persistência de necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas em certos grupos populacionais e que estratégias poderiam ser implementadas para mitigar esta contradição?
Rafaela Rosário (RR) – Apesar da cobertura formal universal, persistem necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas, sobretudo entre grupos socioeconomicamente vulneráveis. As desigualdades económicas, as barreiras geográficas e os pagamentos diretos, que representam cerca de 27% da despesa em saúde, dificultam o acesso efetivo, penalizando as famílias de baixos rendimentos. Para enfrentar esta realidade, é essencial adotar uma abordagem integrada e centrada na equidade. Primeiramente, os cuidados de saúde primários devem ser reforçados, com equipas multidisciplinares próximas das comunidades, capazes de atuar precocemente na promoção da saúde, prevenção de doenças e gestão de condições crónicas. Deve haver especial atenção a sinais de risco em crianças, como pré-obesidade ou pressão arterial aumentada. Em paralelo, é necessário implementar políticas que atuem sobre os determininantes sociais da saúde, como a taxação de produtos pouco saudáveis e a criação de cidades inteligentes que incentivem estilos de vida ativos e espaços verdes. A digitalização equitativa e co-construída também é estratégica, aproximando os serviços das regiões mais isoladas. Para ser eficaz, deve ser inclusiva, acessível e desenvolvida com participação ativa das populações mais vulneráveis, apoiada por interfaces intuitivas, capacitação digital e redes de apoio presencial. Em suma, transformar a universalidade legal em acesso real exige políticas que promovam equidade, reforcem coesão social e aproximem os cuidados das pessoas, com foco na promoção da saúde, prevenção da doença, proximidade e inclusão digital.

HN – O “Paradoxo Português” sugere que um elevado número de médicos não se traduz necessariamente em melhores resultados em saúde para a população. Que fatores, para além da disponibilidade de médicos, devem ser prioritariamente reforçados no Sistema Nacional de Saúde para melhorar efetivamente a saúde dos portugueses?
RR – O chamado “Paradoxo Português” demonstra que uma elevada densidade de médicos não garante, por si só, melhores resultados em saúde, exigindo uma abordagem integrada e centrada nas pessoas. Para além da disponibilidade médica, é urgente reforçar o número de enfermeiros, cuja escassez compromete a qualidade assistencial e a segurança do cidadão. Este reforço deve assentar numa estratégia que valorize a educação e a formação contínua, baseada em evidência científica e sustentada pela investigação, reconhecendo os enfermeiros como líderes em equipas multidisciplinares e agentes essenciais na promoção da saúde, prevenção e gestão de doenças crónicas. Outro fator crucial é restaurar e fortalecer a confiança no sistema de saúde. As pessoas não se afastam dos profissionais por falta de compreensão, mas sim quando se sentem ignoradas, inseguras ou desrespeitadas. Quando a confiança colapsa, surgem alternativas paralelas e serviços comerciais que prometem aquilo que o sistema não oferece: escuta, segurança e dignidade. Reconstruir a confiança implica comunicação transparente, segurança, acessibilidade e humanização dos cuidados. Por fim, é indispensável garantir melhores condições de trabalho para todos os profissionais de saúde. Carreiras atrativas, estabilidade laboral, ambientes seguros e equipas multidisciplinares bem estruturadas são fundamentais para reduzir a rotatividade, prevenir burnout e assegurar cuidados de qualidade. A modernização das infraestruturas e a incorporação de tecnologias digitais devem acompanhar esta transformação, tornando o SNS mais eficiente, resiliente e orientado para a equidade.

HN – A transição digital na saúde é frequentemente apelidada de “revolução inacabada”. Quais são os maiores obstáculos à sua plena implementação em Portugal e de que forma o baixo nível de literacia em saúde digital da população e dos próprios profissionais pode comprometer os seus benefícios?
RR – A transição digital na saúde portuguesa enfrenta obstáculos estruturais que comprometem a sua plena implementação. A interoperabilidade é um desafio central. A falta de integração entre sistemas e a fragmentação tecnológica criam ilhas de informação, dificultando a continuidade dos cuidados e a eficiência operacional. Soma-se a isto a literacia digital limitada, tanto da população como dos profissionais; estima-se que 38% dos idosos não consigam utilizar plataformas digitais, transformando a inovação numa barreira em vez de uma ponte. Esta exclusão penaliza os mais vulneráveis, atrasando diagnósticos, dificultando a renovação de prescrições e aumentando a dependência de terceiros, agravada por determinantes sociais como a baixa escolaridade. Outro obstáculo crítico é a desinformação e a má qualidade da informação em saúde, que se tornou um novo determinante social da saúde. A proliferação de conteúdos falsos ou distorcidos compromete decisões informadas, fragiliza a confiança no sistema e aumenta riscos para a população. Para enfrentar este desafio, é indispensável desenvolver estratégias robustas de capacitação que promovam a literacia em saúde e as competências digitais, tornando cidadãos e comunidades mais resilientes à desinformação. Isso implica intervenções integradas em escolas, serviços de saúde e plataformas digitais, que ensinem a avaliar conteúdos e fontes de informação, a interpretar dados e distinguir informação credível. Por fim, é essencial reforçar a literacia em saúde organizacional, tornando as instituições mais responsivas, capazes de integrar informação correta e de se adaptar rapidamente a contextos novos e inesperados. Sem programas de capacitação, redes de apoio presencial e interfaces inclusivas, os benefícios da digitalização serão limitados. Estes fatores são indispensáveis para que a revolução digital cumpra a sua promessa de equidade, eficiência e confiança.

HN – A dependência de trabalhadores estrangeiros para assegurar a sustentabilidade do SNS é vista como um “esteio insustentável”. Que políticas de atração e retenção de profissionais de saúde nacionais são urgentes, não só para reduzir esta dependência, mas também para melhorar as condições de trabalho e a saúde mental destes profissionais?
RR – A urgência de políticas eficazes para atrair e reter profissionais de saúde nacionais é inegável. A dependência crescente de médicos estrangeiros evidencia fragilidades estruturais que só podem ser resolvidas com investimento nos recursos humanos formados em Portugal. É imperativo garantir salários competitivos e vínculos laborais estáveis, reduzindo a precariedade que alimenta a emigração. Além dos médicos, o défice de enfermeiros compromete as dotações seguras, colocando em risco a qualidade dos cuidados e a segurança dos cidadãos. Estes profissionais, sobrecarregados por turnos extenuantes e falta de recursos, constituem a coluna vertebral do SNS. Melhorar as condições de trabalho é também cuidar da sua saúde mental, prevenindo o burnout e o abandono da profissão. Planos de carreira claros, incentivos à fixação em zonas carenciadas e ambientes de trabalho dignos são medidas urgentes. Investir nos profissionais nacionais é investir na saúde dos cidadãos e na sustentabilidade do SNS.

HN – O envelhecimento da população representa um desafio profundo para a sustentabilidade do SNS. Como pode Portugal promover de forma mais eficaz o envelhecimento ativo e robustecer a rede de cuidados continuados integrados e de cuidados paliativos, de modo a garantir qualidade de vida e a aliviar a pressão sobre os serviços hospitalares?
RR – O envelhecimento acelerado da população exige respostas estruturadas e eficazes. Promover o envelhecimento ativo é essencial para garantir qualidade de vida e reduzir a dependência, através de programas comunitários que combatam a solidão e incentivem a participação social. A articulação entre saúde, segurança social e autarquias deve ser reforçada para criar redes integradas que apoiem a autonomia dos idosos. É urgente tornar os cuidados continuados e paliativos mais robustos, garantindo cobertura nacional e equipas multidisciplinares capazes de responder a doenças crónicas e à fragilidade crescente. A aposta na prevenção, reabilitação e saúde mental deve ser central, evitando que os anos adicionais sejam vividos com sofrimento. Investir em formação especializada e tecnologia para cuidados domiciliários aliviará a pressão sobre os hospitais e permitirá respostas mais humanizadas. Incentivos fiscais e financiamento adequado às instituições de solidariedade podem acelerar esta transformação. O envelhecimento deve ser visto como oportunidade para criar comunidades coesas e resilientes, com políticas integradas e visão de longo prazo.

HN – A crise na saúde mental dos adolescentes e da população em geral tem vindo a agravar-se. Que medidas de prevenção e intervenção precoce, nomeadamente em contextos escolares e laborais, considera serem fundamentais para inverter esta tendência e criar uma rede de apoio mais resiliente?
RR – Estudos da OMS, como o Health behavior in School-Children (HBSC) e o Childhood Obesity Surveillance Initiative (COSI), são cruciais para mapear tendências e identificar riscos na saúde das crianças e adolescentes. Contudo, é urgente implementar programas efetivos de promoção da saúde nas escolas. A evidência científica confirma que as intervenções precoces, integradas no contexto escolar, reduzem a ansiedade, fortalecem competências socioemocionais e previnem comportamentos de risco. A saúde escolar deve ser uma política estruturante, com recursos humanos adequados e implementação massificada. Os enfermeiros de saúde escolar, integrados nas escolas ou nas unidades de saúde comunitárias, são essenciais para atuar de forma proativa e acompanhar crianças, jovens, professores, auxiliares e famílias. A literacia em saúde e a promoção da saúde devem começar cedo, se aos 15 anos 12,1% dos jovens autoavaliam a sua saúde como “má” ou “muito má”, estamos a falhar uma geração. O currículos escolares devem incluir, como já acontece em alguns países Europeus, literacia em saúde, gestão da infodemia, uso crítico das redes sociais, determinantes comerciais da saúde, alimentação, movimento, saúde emocional e gestão da ansiedade. Os programas de mentoria entre pares e a educação e formação de professores que integrem a saúde e bem-estar são medidas de baixo custo e elevado impacto. Investir na saúde escolar é investir no futuro da sociedade.

HN – Perante a necessidade de contenção de custos, como pode o SNS aumentar a eficiência através de modelos de prestação de cuidados como a cirurgia de ambulatório, e simultaneamente investir mais em prevenção e inovação, de forma a abordar a chamada “dívida oculta” na saúde, que resulta do adiamento de cuidados?
RR – Para conter custos, o SNS deve apostar em modelos mais eficientes, como a cirurgia de ambulatório, que reduz internamentos prolongados e liberta recursos para outras áreas críticas. Esta abordagem permite ganhos imediatos em produtividade e qualidade, sem comprometer a segurança clínica. Contudo, eficiência não pode significar apenas cortes; é essencial investir em prevenção e inovação para evitar a “dívida oculta” resultante do adiamento de cuidados. Programas de diagnóstico precoce, prevenção primária e secundária, e gestão de doenças crónicas são estratégias essenciais para reduzir custos futuros e melhorar os resultados em saúde. Evidências recentes demonstram que crianças que conseguem reverter um índice de massa corporal elevado e atingir valores normais na idade adulta apresentam riscos semelhantes aos daqueles que nunca tiveram excesso de peso, reforçando o potencial transformador da intervenção em crianças. Isto significa que investir hoje em prevenção e inovação não é apenas uma questão de equidade, mas uma forma eficaz de evitar custos exponenciais associados a doenças cardiovasculares, renais e metabólicas a longo prazo. A digitalização e a telemedicina ampliam o acesso, reduzem deslocações desnecessárias e otimizam recursos, tornando os cuidados mais ágeis e inclusivos. A integração de cuidados com equipas multidisciplinares e gestão centrada na pessoa aumenta a eficiência e reduz duplicações. O equilíbrio entre contenção de custos e investimento inteligente é a chave para um SNS sustentável, capaz de enfrentar a “dívida oculta” e garantir cuidados de qualidade para todos.

Fonte: Lifestyle Sapo

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