
o que deve saber quem vive com Doença Inflamatória do Intestino. Uma conversa com a médica Raquel Gonçalves
Como forma de introdução, pode explicar-nos o que é a Doença Inflamatória do Intestino e quais são as formas mais frequentes?
As doenças inflamatórias intestinais (DII) são doenças crónicas que atingem o tubo digestivo (sobretudo o cólon e o intestino delgado), mas que podem atingir outros segmentos e também outros órgãos. Caracterizam-se por inflamação crónica do tubo digestivo, mas são também doenças sistémicas, o que significa que outros órgãos e sistemas podem ser afetados, nomeadamente a pele, os olhos e as articulações.
Quando falamos de DII, referimo-nos, fundamentalmente, à Colite Ulcerosa e à Doença de Crohn. Pensa-se que existe uma desregulação geneticamente condicionada do sistema imunitário que, juntamente com alguns fatores do ambiente, pode levar ao aparecimento da doença. A Colite Ulcerosa afeta apenas o cólon, enquanto a Doença de Crohn pode envolver qualquer segmento desde a boca até ao ânus.
Atinge de forma semelhante homens e mulheres, tem predileção por idades jovens, mas pode surgir em qualquer fase da vida.
Quando falamos de DII, referimo-nos, fundamentalmente, à Colite Ulcerosa e à Doença de Crohn.
A incidência e a prevalência têm aumentado nas últimas décadas, sobretudo nos chamados países desenvolvidos. Em Portugal, estima-se que a prevalência ronde os 146 doentes por 100 000 habitantes.
O tratamento tem evoluído imenso e, atualmente, embora não exista uma cura conhecida, existe uma grande diversidade de medicamentos, nomeadamente as messalazinas e as chamadas terapêuticas avançadas (biológicos e pequenas moléculas), que tornam possível um melhor controlo da doença e, por consequência, uma grande melhoria na qualidade de vida destes doentes.
Que equívocos persistem quando falamos de alimentação, convívio social e “comer diferente” no caso da pessoa com DII?
Os doentes com DII, geralmente, podem comer de tudo, tendo em atenção as regras básicas de uma alimentação saudável, de base mediterrânica. O mito de “não posso comer nada” contribui fortemente para o agravamento da qualidade de vida e para uma pior experiência com a doença. O fundamental na gestão da doença é tratá-la na sua base, fazer a medicação correta e ter acompanhamento pela equipa médica.
A dieta é muito importante para manter o doente bem nutrido e para diminuir os sintomas de inflamação. Existem alimentos considerados mais pró-inflamatórios e também alguns que condicionam intolerância; há que saber escolher e dosear, sobretudo em fases de agudização da doença. Ter o suporte de um nutricionista é desejável e, felizmente, é cada vez mais frequente.
A dieta é muito importante para manter o doente bem nutrido e para diminuir os sintomas de inflamação. Existem alimentos considerados mais pró-inflamatórios e também alguns que condicionam intolerância.
Num jantar tradicional de Natal, com bacalhau, peru, doces, que decisões práticas podem ajudar um doente a participar sem receio de agravar sintomas, mantendo o equilíbrio entre tradição e tolerância individual?
Como já anteriormente referi, se a doença estiver controlada, com poucos ou nenhuns sintomas e com os marcadores inflamatórios e endoscópicos controlados, a probabilidade de se passar um Natal sem sobressaltos é maior. É importante evitar ingerir grandes quantidades de doces (que eventualmente contêm lactose, açúcar e glúten), gorduras e bebidas alcoólicas e não sair muito daquela que é a dieta habitual de cada um.
É aconselhável que as refeições sejam “frescas”, confecionadas com produtos naturais, evitando os alimentos processados e aditivados e, preferencialmente, confecionadas em casa, onde o controlo é maior, diminuindo a probabilidade de intoxicações alimentares, que poderão agravar a doença.
Mas, como sabemos, na nossa sociedade, cada vez mais faz parte da época de Natal a presença em jantares de amigos, familiares e colegas de trabalho e, aí, há que ter bom senso e verificar ou pedir especificamente um prato menos agressivo, com alimentos cozidos ou grelhados, sem muitos molhos ou aditivos que desconhecemos.
Dependendo do tipo de doença e dos sintomas habituais, pode ser útil conversar previamente com o médico e com o nutricionista e ter um plano de ajuste alimentar e até da medicação em épocas especiais, como o Natal ou as férias, por exemplo. Também as viagens e os restaurantes devem ser pensados de acordo com a doença e o seu grau de atividade.
Quando a doença está em fase ativa ou, pelo contrário, em remissão, que diferenças essenciais devem orientar as escolhas alimentares nesta época do ano?
Se a doença estiver em remissão, a probabilidade de assim se manter é elevada e não há necessidade de grandes alterações à prática alimentar habitual. Na doença ativa, a situação é diferente e, primeiro, deve ser ajustada a medicação, de acordo com as indicações clínicas.
Se o doente tem diarreia ou dor abdominal, é natural que estas se agravem com a ingestão de grandes quantidades de açúcar, lacticínios ou fibras, pelo que devem ser evitados. O controlo do tipo e da qualidade dos alimentos é um cuidado que os doentes se devem habituar a ter, de forma a evitar o agravamento dos sintomas ou da própria doença.
O controlo do tipo e da qualidade dos alimentos é um cuidado que os doentes se devem habituar a ter.
O mito do “não podes comer nada” ainda pesa sobre muitos doentes. Que impacto tem este medo no bem-estar social e emocional dos indivíduos?
A alimentação é uma necessidade básica do ser humano e, na nossa civilização, a vida familiar e social passa muito pelas refeições, e os convívios passam frequentemente por mesas fartas de comida e de conversas. Daí a enorme relevância do tema e o seu caráter essencial no bem-estar.
Ter uma doença crónica pode dominar as nossas vidas e, sobretudo numa doença que afeta o tubo digestivo, o tipo de alimentos ingeridos pode ser fator de agravamento ou de alívio dos sintomas, sendo muitas vezes francamente hipervalorizados ou demonizados pelos doentes.
A contextualização e desmistificação do papel da dieta na DII é um aspeto central a trabalhar entre a equipa clínica e o doente. As alterações preconizadas na alimentação de um doente com Doença de Crohn ou Colite Ulcerosa vão muito na linha das dietas saudáveis para qualquer pessoa, com algumas particularidades de ajustes mais específicos em situação de crise. Não devemos descurar o tema e deixar que o doente degrade o seu estado geral e o seu bem-estar físico, psicológico e social com receio de comer.
A desnutrição continua a ser um risco real para muitos doentes com DII. Que sinais de alerta merecem maior atenção e como se pode proteger o estado nutricional mesmo num período marcado por excessos?
O receio de comer, associado ao efeito catabólico da inflamação, à falta de apetite, à dificuldade em absorver alguns nutrientes e às perdas através da diarreia, faz com que a desnutrição seja um problema real, ao qual devemos estar muito atentos, em todas as fases da vida dos doentes, mas sobretudo nas situações de crise.
Como já discutimos, o ponto fundamental para prevenir a desnutrição é o controlo eficaz e apertado da inflamação. Este é o nosso maior foco, aliado a outras medidas que ajudam a manter o doente nutrido e resistente.
O receio de comer, associado ao efeito catabólico da inflamação, à falta de apetite, à dificuldade em absorver alguns nutrientes e às perdas através da diarreia, faz com que a desnutrição seja um problema real.
A educação para a saúde é muito importante para destruir mitos relacionados com a alimentação. Para isso, contamos com a ajuda preciosa dos nutricionistas e também dos enfermeiros, que muitas vezes estão mais próximos dos doentes. Os próprios gastrenterologistas estão cada vez mais sensibilizados para este tema, no sentido de avaliar objetivamente o grau de (des)nutrição e implementar medidas compensatórias, se necessário.
Existem dietas próprias para fases diferentes da doença e também suplementos alimentares, vitaminas e ferro, entre outros, que podem ajudar a manter um bom estado nutricional e a prevenir défices específicos.
Do doente espera-se que cumpra a medicação, que se alimente adequadamente e que se mantenha informado e sem dúvidas sobre o que pode ou não pode comer. Deve estar atento a sinais e sintomas como emagrecimento, palidez, queda de cabelo, unhas quebradiças, cansaço permanente, entre outros. Também é importante realizar análises periódicas que monitorizam valores relacionados com carências nutricionais, permitindo a sua correção atempada.
Do ponto de vista da literacia em saúde, sente que há hoje maior compreensão pública sobre o que é viver com DII?
Atualmente, o nível de conhecimento sobre a DII é muito maior e a curiosidade sobre o tema é também crescente, por parte dos doentes, familiares e da população em geral. Destaco o papel fundamental das sociedades científicas, sobretudo o GEDII, e das associações de doentes, APDI e Crohn & Colite, neste esforço de aumento da literacia em saúde digestiva e, em particular, na DII.
Para quem não conhece, o que é o Grupo de Estudo da Doença Inflamatória Intestinal (GEDII) e de que forma o seu trabalho contribui para melhorar o diagnóstico, o acompanhamento e a qualidade de vida dos doentes em Portugal?
O GEDII é um grupo de estudo dedicado à DII, com 20 anos de história e um percurso de trabalho muito consistente. É a única sociedade científica portuguesa inteiramente dedicada à DII. Para além da Gastrenterologia, que constitui o núcleo do grupo, existem várias comissões agregadas, nomeadamente de Cirurgia, Pediatria, Nutrição, Psicologia e Enfermagem, bem como a comissão mais jovem, o Young GEDII, que trabalha de forma sistemática na difusão de conhecimento através do site e das redes sociais e representa uma aposta clara no futuro.
Entre os principais objetivos destacam-se a investigação científica e clínica, a formação de médicos e de outros profissionais de saúde e a colaboração com grupos e associações de doentes com DII.
O GEDII promove congressos, cursos e outras formas de divulgação de conhecimento de elevado valor científico e tem contribuído de forma decisiva para a evolução no diagnóstico e tratamento dos doentes. Os estudos realizados traduzem-se em numerosas publicações nacionais e internacionais, doutoramentos, colaborações com grupos internacionais e, como grande mais-valia, na formação e manutenção de uma rede nacional de profissionais dedicados à DII.
Existe uma enorme responsabilidade no legado de trabalho desenvolvido e nos resultados alcançados, visíveis no impulso significativo da qualidade dos cuidados prestados aos doentes, resultante de uma maior sensibilização, divulgação e implementação de conhecimento e de práticas de qualidade na DII ao longo dos últimos 20 anos.
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