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O Matuto, o Chá e os Morcegos

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O Matuto gosta de chá. À moda inglesa que é como quem diz: chá preto com um farrapinho de leite. Numa cena intrigante, o (hoje) pouco lido Emilio Salgari coloca Eanes, o Português amigo aventureiro do indómito Sandokan, a pedir ao seu criado Malaio que prepare uma chávena (chícara, no Brasil, por favor) de chá preto acompanhado por um “fio de leite”. O Matuto para variar, por vezes toma ‘Earl Grey’, que contém aroma de bergamota, ou tangerina, ou mexerica no Brasil, por favor.

Vem esta arenga, a propósito do livro “The Splendid and the Vile” de Erik Larson. O livro é um relato épico de como Churchill e o povo Inglês resistiram aos anos de contínuos bombardeamentos alemães, durante a II Guerra Mundial. No capítulo 36, Erik Larson conta como “o chá era um bálsamo para o trauma da guerra”. Era o que permitia à população em geral “lidar” com o fôlego hesitante da vida. O chá era o elemento vital que motivava enfermeiros a tratar corpos mutilados pelas bombas. O chá dava forças aos observadores que espiavam os aviões Alemães nos céus Ingleses. O chá aquecia as crianças e mulheres que procuravam protecção nos abrigos antibomba da capital Londrina. “Em anúncios de propaganda” – escreve Erik Larson – “o chá virou metáfora de resistência”. E, na realidade, um bom chá revigorava e animava as gentes sofridas de Inglaterra. Reinava a noção de que “enquanto houvesse chá, haveria Inglaterra. E o ignóbil Hitler seria derrotado”. Todavia, a guerra obriga a sacrifícios e tornou-se imperativo racionar o consumo de chá. A contragosto o governo de Churchill reduziu para 30 gramas semanais, a ração de chá. Milhões de Ingleses passaram a secar as suas folhas de chá, depois de usadas, para poderem preparar mais uma infusão de chá preto com leite (os sachês de chá só seriam popularizados em Inglaterra nos anos de 1960).

No Brasil, país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, o hábito do chá limita-se ao sul gaúcho, onde se consome à vontade o chá mate. O Matuto gosta de chá mate a que foi apresentado pelo amigo Gilson que um dia apareceu na branca luz de Lisboa com a sua cuia ao ombro. Para o Matuto foi amor à primeira sorvedela. Sempre que pode o Matuto gosta de libar um chá mate. Um chimarrão pede um mate cevado, sem açúcar, regado a água quente. Tereré é fresco, bem gelado. De acordo com o clima, no sul do Brasil, passa-se do chimarrão ao tereré. Para tomar um bom mate é necessário ter uma cuia, uma bomba e a erva moída, fina ou grossa, nativa ou pura folha defumada. Tudo acaba a parecer “um coração verde com uma artéria de prata”, de acordo com um poeta gaúcho. O ideal é tomá-lo numa grande roda de familiares e amigos. É primordial respeitar a vez de cada um. A água precisa estar sempre quente para não azedar a erva. O Matuto prefere que haja no céu um sol bem vermelho e uma poeira cor-de-tijolo envolvendo tudo. Se for na hora do sereno, do acalanto nocturno, do quiriri e algumas estrelas perfurarem o crepúsculo com as suas pontas de lata, a conversa será mais amena. Essencial mesmo é aquele clima de comunhão, de cachimbo da paz, tudo muito morno e tranquilo. Como se um manso regato escorregasse a nossos pés. Com muita constância no coração.

E, nos entre tantos, o Matuto volta ao chá Inglês. O Matuto sabe de fonte segura que foi a Infanta Portuguesa Catarina de Bragança que apresentou os súbditos Ingleses ao hábito do chá das cinco. Seria porventura uma forma de suavizar o desencanto com as tropelias extra conjugais de Charles II, seu esposo. A relação entre os dois nunca foi grande coisa. Parece que a Catarina levou dotes substanciais como os portos geo-estratégicos de Tânger e Bombaim, mas os seus dotes de beleza eram inexistentes. Dizem as más línguas que após o primeiro encontro, Charles II, terá comentado para um amigo: “em vez duma mulher, trouxeram-me um morcego”.

O Matuto, está novamente a bebericar um chá. O sol quer retirar-se. É a hora do lusco-fusco. A hora dos morcegos. Ágeis, eles saem do buraco junto às telhas e disparam, como bombardeiros, em direção às árvores de fruto, para lá do muro da “Casa das Pontes”. “Lá vai a Catarina!” – matuta o Matuto. O chá fumega e não resiste à noite caindo. Afinal, Catarina resistiu, Inglaterra resistiu, e os morcegos também resistem. Será do chá?

Fonte: Lifestyle Sapo

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