
A reforma da Saúde Pública em 2026
Sérgio Sousa
Mestre em Enfermagem de Saúde Pública; Enfermeiro Especialista de Enfermagem Comunitária e de Saúde Pública na ULSM; Enfermeiro Responsável do Serviço de Saúde Pública da ULSM; Coordenador Local da Equipa de Saúde Escolar da ULSM
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Chegar a 2026 sem uma reforma efetiva da Saúde Pública será mais do que um erro político: será uma falha ética do Estado para com os seus cidadãos. O Relatório da Comissão para a Reforma da Saúde Pública e sua Implementação, resultante do Despacho n.º 2288/2020, de 18 de fevereiro do Secretário de Estado da Saúde, foi concluído em 2021 com um diagnóstico rigoroso, propostas concretas e uma visão estruturada para o futuro. Quatro anos depois, permanece uma questão incontornável: que reforma foi, de facto, concretizada?
A pandemia por COVID-19 revelou fragilidades antigas e estruturais do sistema de Saúde Pública, muitas delas amplamente conhecidas pelos profissionais, mas durante demasiado tempo ignoradas no plano político. Apesar da evidência produzida, a Saúde Pública continua a ser tratada como um setor acessório do sistema de saúde, acionado em contexto de emergência e rapidamente remetido para segundo plano quando a pressão diminui. Esta lógica compromete a capacidade de prevenção, fragiliza a resposta a riscos emergentes e coloca em causa a proteção da saúde das populações.
Um primeiro desejo para 2026 é que a Saúde Pública seja finalmente assumida como uma função estratégica do Estado, com autonomia organizativa, capacidade operacional e autoridade técnica efetiva. Sem serviços de Saúde Pública robustos, hierarquizados e devidamente financiados, não há prevenção eficaz, não há equidade em saúde e não há verdadeiro cumprimento do direito constitucional à proteção da saúde.
Neste contexto, torna-se imprescindível reforçar de forma clara e inequívoca o papel dos profissionais nucleares da Saúde Pública. Médicos de saúde pública, Enfermeiros especialistas em enfermagem comunitária e de saúde pública e Técnicos de saúde ambiental constituem o núcleo essencial das equipas que asseguram a vigilância epidemiológica, a promoção da saúde, a prevenção da doença, a proteção ambiental e a resposta a emergências em saúde pública. Estes profissionais não podem continuar a sustentar o sistema apenas com base no seu compromisso ético e sentido de missão, sem reconhecimento institucional, sem valorização das carreiras e sem condições adequadas para o exercício das suas funções.
Um domínio particularmente crítico, e ainda insuficientemente valorizado, é o da defesa sanitária das fronteiras, consagrada no Artigo 25.º da proposta de Lei da Saúde Pública e enquadrada na Lei de Bases da Saúde e no Regulamento Sanitário Internacional. Num contexto de intensa mobilidade global, os portos e aeroportos internacionais constituem pontos estratégicos de vigilância e controlo sanitário que devem ser assegurados por equipas multiprofissionais de Saúde Pública, integrando obrigatoriamente médicos de saúde pública, enfermeiros especialistas em enfermagem comunitária e de saúde pública e técnicos de saúde ambiental, com formação específica nesta área. Apenas com equipas devidamente dimensionadas, dotadas de meios técnicos adequados e capazes de assegurar escalas de funcionamento permanente será possível garantir uma vigilância eficaz, contínua e tecnicamente competente.
A inexistência de programas estruturados e permanentes de vigilância sanitária nos portos e aeroportos, bem como a fragilidade dos sistemas de informação associados, constitui uma vulnerabilidade grave. A criação de sistemas próprios de monitorização, vigilância e rastreabilidade, interoperáveis com os sistemas internacionais, é uma condição mínima para o cumprimento das obrigações do Estado em matéria de segurança sanitária. Do mesmo modo, a implementação de um Programa Nacional de Vistoria a Embarcações, com especial enfoque na indústria de cruzeiros, não é uma opção técnica acessória, mas uma exigência de saúde pública num país com forte exposição marítima.
Outro desejo central para 2026 prende-se com a existência de incentivos claros, justos e transparentes para as equipas de Saúde Pública, conforme previsto no Artigo 27.º da proposta legislativa. A melhoria da produtividade, da eficiência, da efetividade e da qualidade do trabalho em Saúde Pública exige mecanismos de incentivo institucionais e financeiros, negociados e associados ao desempenho coletivo. Acresce que o destino das coimas aplicadas em processos de autoridade de saúde, com afetação parcial à Direção-Geral da Saúde e às instituições onde se encontram as autoridades de saúde territorialmente competentes, constitui um instrumento racional de reforço da capacidade operacional dos serviços. Sem incentivos e sem financiamento adequado, nenhuma reforma produzirá resultados concretos.
A fragilidade dos sistemas de informação em saúde pública continua a ser um dos principais obstáculos a uma governação eficaz. É particularmente preocupante que, ainda hoje, o setor da saúde não disponha de dados consolidados e fiáveis sobre o número de alunos e números de utentes destes estudantes nas escolas públicas e privadas, por exemplo. A inexistência de bases de dados integradas compromete a vigilância da saúde escolar, dificulta a identificação precoce de riscos e inviabiliza um planeamento adequado das intervenções. A unificação e interoperabilidade destas bases de dados é urgente e absolutamente indispensável para uma Saúde Pública moderna, orientada pela evidência.
Importa sublinhar que muitas destas propostas não são novas nem resultam de reflexão recente. Elas constam de forma clara e fundamentada no Relatório da Comissão para a Reforma da Saúde Pública e sua Implementação, concluído em 2021. O que tem faltado não é conhecimento técnico, nem enquadramento legal, mas decisão política e capacidade de concretização. A ausência de uma reforma efetiva representa um desperdício de aprendizagem coletiva e uma desvalorização do trabalho desenvolvido pelos profissionais ao longo dos últimos anos.
Se uma nova pandemia surgir, a questão não será apenas se estaremos preparados, mas se soubemos, entretanto, transformar diagnóstico em ação e recomendações em políticas públicas. A preparação não se constrói em contexto de emergência, constrói-se com planeamento, investimento e valorização da Saúde Pública no quotidiano.
Os desejos para 2026 são, na verdade, exigências mínimas de responsabilidade pública. Reformar a Saúde Pública é uma obrigação do Estado e um compromisso com o futuro coletivo. Adiar novamente essa decisão seria aceitar a fragilidade como norma e o improviso como método. E isso não pode, nem deve, ser uma opção.
Por transparência, declaro que participei em quatro grupos de trabalho nacionais dedicados à reforma da Saúde Pública. As propostas produzidas nesses grupos não foram aplicadas. Apenas uma chegou à Assembleia da República sob a forma de proposta de lei; os restantes relatórios permanecem nos gabinetes de secretários de Estado ou ministros, aguardando decisão política. Este artigo não resulta de qualquer conflito de interesses pessoais, mas da responsabilidade cívica e profissional de quem participou na produção de conhecimento técnico, reconhece o seu valor e constata que, apesar disso, ele continua a não ser transformado em políticas públicas. A proposta de lei, por exemplo, que foi submetida ao Parlamento encontra-se publicamente disponível para consulta.






