
A morte explicada aos mais novos: “As crianças entendem as coisas, precisam que lhes falemos a verdade”
“– O que é a morte? – questionou o Macaco.
– Bem… – a Dona Coruja fez uma pequena pausa.
– Isso é um ‘elefante na sala’!”
O excerto retirado do livro infantil Mel, a elefanta na sala (edição Pactor), de Paulo Marques, coloca o leitor perante um cenário recorrente e incómodo: a dificuldade em falar da morte com os mais novos. Nestas palavras dirigidas às crianças cabe uma realidade reconhecível por muitas famílias, educadores e profissionais de saúde. Como explicar o que dói? Como nomear o que assusta? E porque é que, perante certas perguntas, os adultos omitem as respostas?
É desta abordagem que nasce uma história doce e luminosa que procura dar às crianças palavras para pensar, sentir e perguntar. O autor, professor na Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Porto, diretor do Mestrado em Cuidados Paliativos e avô dedicado, tece um livro com sensibilidade, em parceria com a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e apoio científico da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde e da InLuto. As ilustrações de Mariana Raimundo acrescentam ternura e proximidade, ajudando a abrir espaço para conversas que raramente começam com facilidade.
Mel, a elefanta protagonista, é curiosa, inquieta e cheia de porquês. Quando descobre que a morte é um tema que deixa os outros em silêncio, procura o avô — “o melhor contador de histórias que conhecia” — e é nesse encontro intergeracional que se abre o caminho para compreender que a morte faz parte da vida, e que o amor e as memórias nos ajudam a continuar ligados a quem já partiu.
Ponto de partida para uma conversa com o autor sobre coragem, verdade, infância e a importância de dar às crianças um vocabulário que as ampare.
É docente, enfermeiro, investigador, autor de livros nas suas áreas de intervenção e agora também assina um livro infantil. Como nasceu este impulso para escrever para crianças — e, em particular, sobre um tema tão delicado como a morte?
A vontade e o desejo de escrever para outros públicos e géneros literários não é nova. Porém, a partir do momento em que, por motivos profissionais, fiquei mais ligado aos cuidados paliativos, fui percebendo a importância específica do tema para o próprio desenvolvimento desta área do conhecimento, tomando consciência da necessidade de fazer mudanças mais profundas, mais estruturais e, nessa medida, deveria começar pelos mais novos. As crianças entendem as coisas, precisam que lhes falemos a verdade e é possível escrever sobre temáticas mais delicadas, como disse, de uma forma leve e até divertida.
“Mel, a elefanta na sala” é uma metáfora, representa um tema incómodo. Porque escolheu uma elefanta como protagonista e de que forma essa imagem reflete a mensagem que transmite neste seu novo livro?
O livro foi muito pensado: na escolha das personagens, nos diálogos, nos jogos de palavras e também nos conceitos, sendo que pretende ser educativo em várias dimensões. E começa logo por um elemento de género, porque muitas pessoas não sabem que ‘elefanta’ é o feminino de elefante. A razão está relacionada com o animal que me inspirou e, por outro lado, os elefantes têm proximidade com os humanos no processo de luto; expressam tristeza profunda, laços sociais fortes e comportamentos ritualistas perante a morte, como enterrar os mortos, evitar esse local, fazer silêncio ou emitir sons de lamento. Eles têm uma consciência da morte e da perda. E é um animal que gera simpatia.
Enquanto avô, que conversas ou momentos inspiraram esta história? O que é que as crianças nos ensinam quando lhes damos espaço para perguntar sobre a vida e a morte?
As crianças são muito puras na sua abordagem, não têm ideias formadas e, por isso, fazem todas as perguntas, da forma mais desconcertante possível para os adultos, que muitas vezes preferem ignorar, contornar a questão ou florear, o que, em qualquer dos casos, não é a melhor solução. O correto será dizer a verdade, sem receios, ainda que de uma forma adaptável à capacidade de entendimento da criança. No caso da morte, as crianças vão tendo vários exemplos ao longo desta fase das suas vidas, quer seja de familiares, animais de estimação ou doutras formas. Daí que temos de procurar ajudá-las na compreensão da questão de uma forma positiva, e este livro contribui para isso, julgo eu. Os momentos que inspiram esta história têm a ver com as minhas vivências pessoais, mas também com a minha função de educador.
Num tempo em que se evita falar sobre a morte, sobretudo com os mais novos, como é que este livro pode ajudar famílias, educadores e profissionais de saúde a abrir esse diálogo com ternura e verdade?
É mesmo isso. A história foi escrita e ilustrada de forma a criar um ambiente mágico, belo e atrativo, como deve ser este género literário, precisamente para ajudar a abordar esta problemática intensa, mas que é assim para os adultos, que já têm inúmeros preconceitos, não para as crianças. E, em alguns casos, os adultos não sabem como o fazer, daí que recorram a subterfúgios, mais ou menos criativos, mas muitas vezes menos próprios. Desta forma, qualquer pessoa, num contacto pessoal ou profissional, tem disponível uma ferramenta pensada e construída com o propósito de a auxiliar nessa tarefa para construirmos uma sociedade melhor, mais preparada e informada.
A sua formação em cuidados paliativos confere-lhe uma sensibilidade única. De que forma verteu para o presente livro?
Um elemento central foi, claramente, esse. Não só para começar a escrita de um livro infantil por esse tema, talvez o mais problemático, e, depois, procurar utilizar as palavras com cuidado, as frases com sentido e as expressões com intencionalidade. Nada foi por acaso, nem as ilustrações, antes pelo contrário. E nesse sentido, o diálogo que tivemos com a Mariana foi muito produtivo, porque ela apropriou-se de uma forma magnífica de tudo o que pretendíamos passar para quem lê, vê e ouve a história. Acho que isso ajudou muito ao resultado, essa sintonia de ideias. O girassol tem um sentido, a figura de um cão outro e por aí adiante. Quem trabalha nesta área tem de ter essa sensibilidade.
O livro conta com o apoio científico de várias entidades ligadas à literacia em saúde e ao luto. Como foi o processo de articulação entre o conteúdo emocional da narrativa e o rigor técnico de quem trabalha com estas realidades todos os dias?
O trabalho inicial foi meu, que tenho expertise na área, mas numa fase subsequente ele foi analisado e discutido com profissionais de diferentes áreas da APCP, sobretudo, e refletiu-se sobre a sua adequação, do conteúdo e forma, tendo-se concluído que não havia necessidade de proceder a alterações significativas. Discutiu-se a idade a partir da qual ele estaria indicado, etc. Tivemos até o cuidado, com a editora, de clarificar conceitos que são expostos ao longo do livro e que podem ajudar à compreensão e, também, de disponibilizar um documento de apoio que é acessível através de um QR Code para ajudar neste processo educativo.
Há uma frase marcante no final do livro, na mensagem de Cândida Cancelinha, especialista em pediatria e cuidados paliativos: “o amor se expressa também nas palavras que ajudam as crianças a compreender e aliviar o medo.” Foi complexo o processo de escolha das palavras certas na construção deste livro?
Antes de lhe responder, quero dizer que foi um gosto colaborar com a Dr.ª Cândida Cancelinha, que foi uma entusiasta desde o primeiro momento. O processo de escolha das palavras certas faz parte do processo criativo e como eu gosto muito de escrever e tenho sempre várias ideias a fervilhar, não posso dizer que tenha sido complexo. A minha filha mais nova também me ajudou com a sua crítica pertinente. Foi um processo exigente, porque é sempre mais difícil escrever para crianças, mas gratificante, sobretudo agora que começo a receber o feedback sobre o livro.
Que reações espera ou deseja que este livro desperte em quem o lê? E o que gostaria que ficasse no coração das crianças depois de conhecerem a Mel e o seu avô?
Espero que as crianças e os adultos que vão ler esta história, porque deve ser uma leitura acompanhada, imaginem coisas boas e ternurentas, como a proximidade entre os avós e os netos, que é algo muito importante no desenvolvimento infantil e fundamental para o crescimento saudável de qualquer pessoa. E que possam retirar coisas positivas de algo que causa, naturalmente, tristeza e sofrimento. E gostava que desejassem ler outras histórias igualmente significativas para validarem a minha intenção de prosseguir a saga.
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