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“A Comunicação em Saúde é a componente mais importante”

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Como surgiu o interesse pela área da Medicina e, em particular, pela Medicina Geral e Familiar (MGF) – à época, ainda denominada Clínica Geral?

Confesso que, quando terminei o curso de Medicina, não pensei de imediato na Clínica Geral. Aliás, optei inicialmente pela carreira docente, funções que exerci durante um ano na Faculdade de Medicina de Lisboa, Universidade da Lisboa, como Assistente Estagiário, onde lecionava e investigava Bioquímica. Comecei por estudar a alma da molécula e acabei por ensinar e me dedicar a algo mais macro, como o universo humano. No entanto, o diretor do departamento de Bioquímica e regente da cadeira exigia que estivéssemos a tempo inteiro na investigação e ensino, sem possibilidade de exercer atividade clínica. Esse foi o problema: ao fim de um ano de docência e investigação em Hemorreologia, tinha uma enorme saudade do contacto com os doentes!

Foi uma experiência importante. Tornou-se muito claro que o que realmente gostava era da clínica, de estar com as pessoas. Quando chegou o momento de escolher a especialidade, optei pela Clínica Geral – não tanto por ter a noção exata do que era esta área, mas porque me agradava a ideia de cuidar de uma população. Posteriormente, percebi que essa ideia era fantasiosa, mas, mesmo assim, desde então que tinha a consciência que a MGF era mesmo onde queria estar.

Na altura, como podia escolher o que queria, optei por Sintra, porque adoro a vila. Logo de início comecei a perceber que muitos doentes estavam em sofrimento sem apresentarem uma patologia concreta e sentia-me incompetente, porque não encontrava uma patologia que explicasse o seu sofrimento. Na Faculdade ensinaram-me que todo e qualquer sintoma é sinal de doença, mas isso nem sempre era verdade. Percebi que havia algo mais, para o qual não tinha sido preparado. A partir daí, comecei a interessar-me pela Comunicação em Saúde: como os ajudar a compreender que embora tivessem sofrimento não era uma doença que estava em causa. Fiz cursos de curta duração em Espanha e em Inglaterra. Mais tarde, foi criado o Mestrado em Comunicação em Saúde na Universidade Aberta, em Portugal, ao qual me candidatei, e terminei com a dissertação “A Saúde nos Mass Media”.

 

E nunca mais deixou de estudar essa área…

Sim. Fui desafiado para participar no ensino de Clínica Geral na Faculdade de Ciências Biomédicas (hoje NOVA Medical School) da Universidade Nova de Lisboa.  Acabei por publicar o livro “Comunicação em Contexto Clínico”. Na sequência desta publicação, o Professor Mário Bernardo (regente da cadeira de Clínica Geral) criticou-me fortemente, não por o ter escrito, mas sobretudo por o ter feito em vez de uma tese. Ele entedia que não o deveria ter feito ante do doutoramento, coisa em que nem sequer pensava. Senti-me tão mal por o ter desiludido que me comprometi com esse objetivo académico.  Depois com o forte impulso e apoio da Professora Isabel Santos, minha orientadora, a quem muito agradeço, lá o conclui.

A tese incidiu sobre doentes que sofrem sem apresentarem doença – na verdade, é uma boa parte dos utentes que recorrem à MGF. Os estudos vão do ‘8 ao 80’, mas acredita-se sejam 50% dos utentes que recorrem à consulta de MGF. Mesmo quem tem uma doença diagnosticada, muitas vezes apresenta sintomas não atribuíveis à patologia de base. Estes doentes têm um elevado risco de serem iatrogenizados e medicalizados.

Aliás, por mais doente que alguém esteja, há sempre muito de saudável na pessoa. O papel do médico de família deve ser o de proteger a parte saudável, por isso digo que somos “saudologistas”. A doença tem um comportamento altamente invasivo: se alguém tem diabetes, passa a ser todo “diabético” e fica limitado a essa condição. Mesmo os serviços de saúde funcionam com um foco excessivo na doença, e não tanto na pessoa. No entanto, apenas cerca de 10% da saúde depende dos cuidados de saúde — 40% está relacionada com o ambiente e os estilos de vida. Como profissionais, devíamos dar mais atenção a esses 40%, promovendo o autocuidado, estilos de vida e qualidade do ambiente. Não existem bisturis para fazer “ignorancietomias”, nem comprimidos para mudar comportamentos ou acabar com o isolamento social.

É nesse âmbito que a comunicação se torna crucial?

Exatamente! A questão está na relação médico-doente. A Comunicação em Saúde não é um conjunto de truques. Existem técnicas, claro, mas estas só fazem sentido quando há conhecimento do outro e autoconhecimento. É interacionismo simbólico puro.

“A tecnologia deveria ajudar-nos a ter mais tempo, mas acaba por o consumir e nos consumir – e isso afeta a comunicação”

Inicialmente, teve de fazer cursos em Comunicação fora de Portugal. Qual era a realidade de Espanha e Inglaterra em relação à importância da comunicação na prática clínica?

Falava-se mais sobre o tema nesses países, mas mesmo assim foi necessário desbravar caminho, porque é uma área muito vasta. Atualmente, a investigação em Comunicação em Saúde é vertiginosa a nível mundial! É, de facto, uma componente muito importante na clínica. Infelizmente, estamos tão assoberbados e fascinados com técnicas, análises e produtos que acabamos por nos afastar do que é mais rentável e essencial: comunicar para promover mudanças de comportamento e aumentar a literacia em saúde.

No fundo, as pessoas precisam de ser libertadas da Medicina. Digo isto de forma caricatural, mas a verdade é que, hoje, as pessoas já não conseguem fazer nada sem o apoio de um profissional de saúde. Infantilizamos as pessoas que se sentem incapazes de fazer seja o que for por sua iniciativa.

Que impacto tem a tecnologia na comunicação em saúde?

Hoje estamos escravizados pela tecnologia! Há uma utilização paradoxal: a tecnologia surgiu para nos libertar, mas o efeito tem sido o contrário. Há uns anos, trabalhava-se oito horas por dia; agora estamos ligados 24 horas. Não há limites! A tecnologia deveria ajudar-nos a ter mais tempo, mas acaba por o consumir e nos consumir – e isso afeta a comunicação.

Além disso, a tecnologia não resolve tudo. O que mais gera sofrimento é o medo, a pobreza, a solidão e as dependências – seja de álcool, digitais, de jogo, de drogas. Estes problemas exigem o envolvimento de vários setores, não apenas o da saúde que, muito provavelmente, é o que menos pode fazer.

E antes da tecnologia, como era a relação médico-doente?

Tudo mudou com o tempo, como é natural. Penso que a maior diferença é que as pessoas não corriam tanto. Havia mais espaço e tempo para conversar e conviver.

“Atualmente, graças aos avanços da Medicina, e não só, vive-se mais anos – inclusive com doença. Isso obriga a que cada pessoa saiba viver com a sua patologia e a se autocuidar”

Nos dias de hoje, face às mudanças, deve mudar-se a perspetiva do que é ser-se médico de família?

Sim, sem dúvida. Precisamos de trabalhar cada vez mais em equipa. Quando comecei a exercer Medicina, além de não existir ainda a especialidade de MGF, as poucas enfermeiras em cuidados de saúde primários não tinham as competências que têm hoje. Atualmente, o médico trabalha com enfermeiros altamente qualificados e existem muitos outros profissionais de saúde, muito bem preparados e que não são aproveitados.

Mesmo assim, ainda existe um foco excessivo no médico. A população precisa, essencialmente, de cuidados de saúde  e estes são assegurados por médicos, enfermeiros, psicólogos, optometristas, audiologistas, ação social, entre outros.

Se a pobreza é uma das principais causas de doença, por que não envolver também assistentes sociais? Até as autarquias têm um papel importante a desempenhar na criação de ambientes sociais saudáveis. Por exemplo, por que razão as bibliotecas municipais não estão abertas ao fim de semana? São medidas simples que promovem a socialização e bem-estar. Ou mesmo  promover o diálogo entre todas as instituições locais que se ocupam do bem-estar da população. Isto é a integração horizontal.

O ser humano é, por natureza, um ser social. Infelizmente, comunicamos pouco uns com os outros. Muitas vezes, no consultório, lidamos com casos sociais sem sabermos que respostas existem na comunidade.

 

Ao longo destes anos, o sistema de saúde ainda não se adaptou a essa visão mais holística?

O problema é que estas questões não são suficientemente debatidas. As coisas mudaram: há mais tecnologia, mais doenças crónicas do que agudas, vive-se muito mais anos com doença, dispomos de muito mais tratamentos crónicos, mas continuamos a pensar no paradigma da doença aguda, cujo indicador máximo desta realidade é a “urgentalização” dos cuidados de saúde.

Atualmente, graças aos avanços da Medicina, e não só, vive-se mais anos – inclusive com doença. Isso obriga a que cada pessoa saiba viver com a sua patologia e a autocuidar-se. É a literacia na doença – a capacidade de gerir a própria condição. Não deve ser confundida com a literacia em saúde, que está relacionada com a promoção da saúde e bem-estar. Ambas devem estar incutidas no espírito das equipas de saúde e das instituições de saúde.

É preciso promover autorresponsabilização e autoconsciência para que a população cuide da sua saúde. Resolver os problemas do setor da saúde é complexo – não há soluções mágicas. A resposta não está em mudar ministros – já triturámos tantos! -, mas em mudar mentalidades. O problema é muito complexo, mas estão sempre a tentar resolvê-lo com medidas únicas e simples. Os médicos têm de permitir a colaboração de outros profissionais e aprender a trabalhar em equipa, algo para o qual não fomos devidamente formados.

Cada instituição de saúde deve assumir como capital próprio e fulcral o centrar-se nos pacientes. Isto deve fazer parte da cultura das instituições, valor assumido por todos os profissionais, desde o gestor/diretor até ao segurança. Dar a todos os pacientes o que precisam e nada mais do que precisam, sempre com humanismo, procurando dar soluções que sejam o menos possível disruptivas para a vida deles.

“O grande problema é a forma como se fazem as coisas – atualmente, não é tanto o sentimento, mas o que se obtém em troca”

Mas a reforma dos cuidados de saúde primários, com o surgimento das USF, não favoreceu esse trabalho em equipa?

As USF estimularam o espírito de equipa, mas é lamentável que, aquando da criação da lei, estas se tenham limitado à equipa médico–enfermeiro–secretário clínico, como digo, à ‘Santíssima Trindade das USF’. E os restantes profissionais: psicólogos, nutricionistas, entre outros? Existe ainda algum corporativismo e muito desconhecimento dos conteúdos funcionais entre os diferentes profissionais de saúde.

Quando se fala em revisitar o conceito de centro de saúde, destaca-se a importância de alargar as equipas…

Sim, mas nunca mais se concretiza. O médico pode e deve ser o responsável pelo acompanhamento dos seus doentes, mas não tem de fazer tudo. Nem convém! O médico de família não está lá para quando tudo o mais falha, ele deve estar para que tudo o mais não falhe, mas para isso deve ter autonomia e poder para fazer ou garantir que seja feito o indicado.

Existe resistência por parte dos médicos em se trabalhar em equipa?

Não sei se é correto dizer isso… Em todas as mudanças há quem não esteja tão aberto à mudança. A mudança gera sempre crises, porque estas são quebras de hábitos, o que não é fácil para ninguém; implica querer e ser capaz.

“… a tecnologia trouxe muitas vantagens, mas alterou profundamente a forma como pensamos e nos relacionamos. Hoje existem mais dificuldades em expressar emoções”

Os médicos mais jovens defendem maior flexibilidade de horários e o regime de trabalho a meio termo. Isso poderá pôr em causa o trabalho em equipa e a comunicação?

Não! O grande problema é a forma como se fazem as coisas – atualmente, não é tanto o sentimento, mas o que se obtém em troca. O amor, o afeto, o reconhecimento… tudo isso é essencial, embora não seja mensurável.

Estar menos horas na USF não significa comunicar menos. O que conta é o espírito de equipa. Ou se está integrado ou não. A Saúde depende do trabalho em colaboração. O problema é que o sistema educativo incentiva a competição, quando na Saúde é a colaboração que importa. Os indicadores são úteis, mas não podemos ser escravos deles, porque nem tudo o que é mensurável é importante e o que é importante nem sempre é mensurável. Não é por um pai estar muito tempo com um filho que é bom pai. O que importa é a qualidade do tempo em que se está.

Essa competição pode pôr em risco o humanismo?

Exatamente! A tecnologia trouxe muitas vantagens, mas alterou profundamente a forma como pensamos e nos relacionamos. Hoje existem mais dificuldades em expressar emoções e substituímo-las por emojis. Ora se não somos capazes de ler as nossas emoções, como podemos ler as dos doentes? E se não somos capazes de ler as emoções dos doentes, como podemos estabelecer empatia? Não sei qual será o impacto disso no futuro, mas sei que comunicar é fundamental para criar bem-estar nos pacientes e fundamental para prevenir o burnout dos médicos (e  de todos os profissionais de saúde). A comunicação serve para transmitir informação mas, mais do que isso, fazer coisas com ela como, por exemplo, criar bem-estar e confiança em si e nos outros.

 

Maria João Garcia

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Fonte: Saúde Online

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