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4ª edição do programa mais valor em saúde: um novo raciocínio para o SNS

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A cerimónia que assinalou a quarta edição do Programa Mais Valor em Saúde – Vidas que Valem, não se limitou a um formato protocolar de entrega de distinções. O evento, realizado no auditório da Ordem dos Farmacêuticos, em Lisboa, converteu-se num ponto de reflexão coletiva sobre um dos debates mais prementes no setor: como medir, verdadeiramente, o sucesso de um sistema de saúde. Perante uma plateia que reuniu administradores hospitalares, representantes das ordens profissionais, dirigentes do INFARMED e da Direção-Geral da Saúde, e as equipas dos projetos contemplados, Ignacio Schoendorff, Diretor Executivo da Gilead Sciences, apresentou a questão de forma despojada de ambiguidades. A sua intervenção centrou-se na necessidade imperativa de uma transição de paradigma, sintetizada no deslocamento do foco “da atividade para o resultado, da quantidade para a qualidade, do custo para o valor”. Esta frase, que poderia ser interpretada como um slogan de gestão, ganhou contornos concretos à medida que se descreveu o percurso e os objetivos da iniciativa.

Na essência, esta visão proposta por Schoendorff desafia o status quo instalado nos sistemas e redefine radicalmente o conceito de “eficiência”. Tradicionalmente, um serviço eficiente é aquele que realiza mais atos com os mesmos recursos. No paradigma do Value-Based Healthcare (VBHC) que o programa promove, a eficiência mede-se exclusivamente pelos melhores resultados clínicos e pela experiência mais positiva alcançados para o doente com esses recursos. É uma mudança de finalidade: o sistema deixa de se otimizar a si próprio para passar a otimizar o seu benefício para o cidadão. Esta perceção funcionou como o eixo moral e operacional do debate, confrontando diretamente as métricas de volume que durante décadas calibraram objetivos, alocaram recursos e avaliaram profissionais.

Schoendorff relembrou os 29 anos de presença da Gilead em Portugal, enquadrando o programa não como uma ação de mecenato isolada, mas como uma extensão lógica de um compromisso corporativo com a melhoria sustentável dos cuidados de saúde no país. Esta ligação é estratégica. Ao afirmar que o foco no valor está alinhado com o objetivo de contribuir para “sistemas de saúde mais sustentáveis, centrados no doente e orientados por resultados”, vai-se além da filantropia corporativa. Identifica-se uma convergência de interesses: a sustentabilidade do SNS é um pré-requisito para o acesso duradouro a inovações terapêuticas. Investir na cultura de valor constitui, assim, um investimento na resiliência do próprio ecossistema onde a empresa opera.

O programa, uma colaboração estruturada entre a Gilead Sciences, a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e as consultoras Exigo e Vision for Value, demonstrou nesta edição um amadurecimento operacional claro. Os números apresentados contaram uma história de crescimento orgânico e de credibilidade crescente no seio do Serviço Nacional de Saúde. Desde a sua génese em 2021, a iniciativa acumulou um total de 77 candidaturas, tendo apoiado diretamente 16 projetos. A quarta edição, por si só, atraiu 20 propostas, um aumento significativo face ao ano anterior, provenientes de unidades de saúde de várias regiões do país. Este incremento na participação foi lido pelos organizadores como um indicador de que os conceitos de VBHC começam a ressoar de forma mais prática entre os profissionais no terreno, ansiosos por ferramentas que lhes permitam transformar a pressão diária em inovação eficaz. O mecanismo de apoio, fixado em quatro bolsas no valor individual de 50 mil euros em horas de consultoria especializada, foi desenhado precisamente para preencher essa lacuna, traduzindo conceitos teóricos em planos de ação executáveis.

A transição, como bem assinalou Schoendorff noutras reflexões, é fundamentalmente cultural. A exigência de “colaboração interdisciplinar e entre instituições do SNS, partilha de dados e uma liderança comprometida” toca nos pontos mais sensíveis da estrutura atual. A colaboração esbarra em silos departamentais e na histórica separação entre níveis de cuidados. A partilha de dados confronta-se com questões de interoperabilidade e receios de soberania profissional. A liderança necessária é aquela que consegue articular uma visão comum e mobilizar equipas em torno de um objetivo partilhado: criar valor para o doente. O Programa Mais Valor em Saúde é, na sua essência, a tentativa de criar um espaço protegido onde estas condições culturais possam ser cultivadas em contexto real. Ao capacitar equipas do SNS, o programa não se limita a transferir conhecimento técnico; procura fomentar microambientes onde a colaboração forçada pelo projeto leva à construção de novas rotinas, onde a necessidade de medir resultados obriga à partilha de informação. Cada projeto apoiado funciona como uma sonda lançada ao sistema, testando a sua capacidade de operar sob uma lógica diferente.

Vencedores e parceiros

Os projetos que emergiram como vencedores desta edição funcionam como um espelho dos principais desafios clínicos e organizacionais que o SNS enfrenta. A sua seleção, a cargo de um júri independente presidido por Maria de Belém Roseira e que integrou figuras de diversos quadrantes como o economista Pedro Pita Barros, o presidente da APAH Xavier Barreto ou a presidente da Associação EVITA Tamara Milagre, privilegiou a viabilidade e o potencial de demonstração prática. Cada um deles aborda uma condição de alto impacto, mas a resposta proposta não se circunscreve ao ato clínico isolado. Pelo contrário, estende-se à reengenharia do percurso do doente. Na Unidade Local de Saúde da Região de Aveiro, o projeto dedicado à insuficiência cardíaca parte de uma premissa simples, mas complexa de operacionalizar: a de que uma parte significativa dos reinternamentos é evitável. A estratégia desenhada focou-se na identificação precoce, ainda durante o internamento, dos doentes classificados como de alto risco, estabelecendo para eles um plano de transição e acompanhamento estruturado que tenta garantir continuidade de cuidados após a alta. O objetivo declarado vai além da redução de readmissões, ambicionando uma melhoria mensurável na qualidade de vida dos doentes e dos seus cuidadores.

Noutra frente, a Unidade Local de Saúde de Trás-os-Montes e Alto Douro encarou o problema da cronicidade e da adesão terapêutica através do projeto ReabDigital. Direcionado a doentes com Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), o projeto concebeu uma plataforma de mHealth que procura combater um fenómeno bem documentado: a erosão dos ganhos funcionais e de qualidade de vida obtidos com programas de reabilitação respiratória, que tendem a dissipar-se meses após a sua conclusão. Através de uma aplicação que integra telemonitorização, planos de exercício personalizados e componentes educativas, a equipa pretende capacitar o doente para uma autogestão mais eficaz da sua condição, mantendo-o estável no domicílio e reduzindo a necessidade de recurso a serviços de urgência.

Talvez o caso que mais diretamente articula eficiência económica com qualidade clínica tenha sido o projeto TAVI+, desenvolvido pela Unidade Local de Saúde de São José. Centrado nos doentes com estenose aórtica grave submetidos a implantação percutânea de válvula, o projeto implementou um protocolo integrado que combinou uma avaliação multidisciplinar minuciosa pré-procedimento com critérios rigorosos e partilhados para uma alta precoce e segura. Os resultados, ainda preliminares, mas quantificados, foram eloquentes: uma redução do tempo médio de internamento de 8,4 para 4,3 dias, com 73% dos doentes elegíveis a receberem alta em menos de 72 horas, sem que se registassem reinternamentos associados a esses casos num período de 30 dias. A poupança estimada rondou os 300 mil euros em apenas quatro meses de operação. Estes números, contundentes para qualquer administrador, foram para o júri a validação de um modelo organizativo – assente na colaboração entre cardiologia, enfermagem, serviço social e cuidados continuados – que se revelou mais eficaz do que a simples aceleração de um processo. A equipa pretende agora dar corpo a este primeiro ensaio através de um projeto mais amplo que possa alcançar um impacto ainda maior.

Reconhecendo que a mudança cultural é o obstáculo maior, a quarta edição do programa foi precedida por uma fase de formação intensiva. Em abril de 2025, realizaram-se três webinares com especialistas internacionais de renome, como Daniel Haber da Unimed Franca no Brasil, Sally Lewis do NHS Wales e Catherine MacLean do Hospital for Special Surgery de Nova Iorque. Estas sessões, destinadas a decisores e profissionais, visaram precisamente construir uma linguagem comum e apresentar casos de sucesso que desmistificassem a implementação do VBHC. O acesso a estas gravações permanece disponível no site do programa, funcionando como um recurso aberto.

O Programa Mais Valor em Saúde posiciona-se, assim, numa intersecção crítica entre o pensamento estratégico e a ação concreta. A visão de que a iniciativa é “um movimento para transformar a cultura da saúde em Portugal” revela uma ambição que transcende o ciclo de um projeto. Um movimento ganha energia própria, propaga-se através de exemplos e redes informais. Ao chamar-lhe movimento, reconhece-se que a transformação não será decretada por portaria, mas será o resultado acumulado de muitas pequenas revoluções práticas, como as que estes projetos protagonizam. É um investimento na geração de provas conceptuais sobre a viabilidade de um SNS mais orientado para o valor. Como rematou Ignacio Schoendorff, a motivação fundamental reside num princípio simples: “Porque todas as vidas valem!”. Honrar este princípio exige, hoje, a coragem de medir de forma diferente e de agir em conformidade, transformando a saúde de um custo a gerir no investimento mais inteligente e humano que uma sociedade pode fazer.

Mais informações sobre o programa e os projetos podem ser consultadas em www.maisvaloremsaude.pt.

Fonte: Lifestyle Sapo

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