
ULS Matosinhos. “Articulação tem sido melhorada”
Qual foi o seu percurso profissional até assumir o cargo de diretora clínica dos cuidados de saúde primários na ULS Matosinhos?
Entrei para a ULS Matosinhos em abril de 2000, inicialmente no Centro de Saúde da Senhora da Hora. Mais tarde, fui coordenadora da USF Lagoa, função que desempenhei durante sete anos. Em maio de 2023 fui nomeada diretora clínica dos cuidados de saúde primários, integrando o Conselho de Administração da ULS. Ao longo destes anos, assisti e participei na evolução dos cuidados de saúde primários, desde a constituição das USF modelo A e B até à atual organização das equipas, sempre com o objetivo de melhorar a prestação de cuidados à população.
Quais são as responsabilidades e limitações de ser diretora clínica e como lida com o equilíbrio entre funções administrativas e clínicas?
A principal limitação deste cargo é não poder ter uma lista de utentes própria, o que exige abandonar parte da atividade clínica. No entanto, pedi autorização à tutela e faço um período de consulta de cerca de 4 a 5h/semana, para manter o contacto com a prática clínica, pois acho importante não perder esse vínculo com os utentes. Em relação às responsabilidades deste cargo, a que encaro como mais importante é a promoção de uma adequada integração da atividade clínica entre os vários níveis de cuidados, de maneira que haja uma melhoria da prestação de cuidados de saúde aos utentes, a todos os níveis.
Em termos administrativos, participo nas decisões estratégicas do Conselho de Administração, nomeadamente no Plano de Desenvolvimento Organizacional, e em tudo o que é necessário para ter em funcionamento uma estrutura tão complexa como é uma ULS. Apesar de esta ser a mais pequena ULS do país, tem sido um desafio lidar com a quantidade de obstáculos que surgem e perceber como é difícil e dispendioso proporcionar bons cuidados de saúde à população de Matosinhos. A minha função, a nível do Conselho de Administração, é garantir que as necessidades dos cuidados primários estão representadas e integradas nas decisões da ULS Matosinhos.
“Persiste alguma resistência perante a mudança, sobretudo entre profissionais habituados ao antigo paradigma de cada especialidade «no seu canto»”
Quais considera serem os maiores desafios na articulação entre cuidados primários e hospitalares?
A articulação tem sido melhorada ao longo dos anos, mas ainda há muito a fazer. Temos vindo a criar manuais de referenciação conjuntos, documentos que ajudam os médicos e outros profissionais a perceber que informações e exames são essenciais no encaminhamento dos utentes para as especialidades hospitalares, no sentido de otimizar o percurso do utente e qual a informação de retorno que é necessária após uma alta de consulta hospitalar. A discussão tem sido proveitosa para ambos os lados, mas leva tempo. Depende também das pessoas que estão à frente do processo.
A resistência à colaboração ainda existe muito? Nota diferenças entre gerações ou é uma questão estrutural?
Persiste alguma resistência perante a mudança, sobretudo entre profissionais habituados ao antigo paradigma de cada especialidade “no seu canto”. No entanto, vejo cada vez mais abertura, sobretudo quando os profissionais percebem que a colaboração resulta em melhores cuidados aos utentes. Não sinto que seja uma questão de idade, mas mais de mentalidade e vontade de trabalhar em conjunto.
“Em relação ao material que necessita de reparação ou substituição, seja mobiliário ou equipamento técnico, há procedimentos burocráticos muito demorados, que necessitam de aprovação em Conselho de Administração”
Que exemplo pode dar de uma iniciativa bem-sucedida de integração?
Destaco o acompanhamento ao Doente Crónico Complexo em parceria com Medicina Interna, onde existe assistência domiciliária por médicos internistas e enfermeiro gestor de doentes complexos e com multimorbilidade, para além do acompanhamento pela equipa de saúde familiar. O envolvimento de um enfermeiro gestor permite uma vigilância domiciliária diária, numa fase inicial de acompanhamento, facilitando a deteção precoce de descompensações, o que permite uma rápida intervenção para corrigir a descompensação, e a redução de idas ao serviço de urgência e internamentos. Existe um plano individual de cuidados que é partilhado e editado pelos diferentes níveis de cuidados. Otimiza a relação entre o profissional de saúde, a família e o utente… Acaba por se ter um seguimento mais próximo e humano, algo que só é possível pela articulação real entre equipas.
E ao nível da gestão interna, onde surgem os principais obstáculos?
Surgem, principalmente, na gestão dos recursos humanos e das infraestruturas. O aumento das licenças de maternidade, paternidade, o horário de amamentação e as reduções de carga horária trazem benefícios, mas também instabilidade nas equipas pela necessidade de substituir profissionais. E os últimos anos tem sido muito desafiantes nesse sentido por haver equipas jovens. Tudo isto obriga a grande flexibilidade e coordenação em equipa, sendo particularmente difícil em contextos em que as equipas são pequenas. O mesmo se passa com a enfermagem e os administrativos.
Quanto às infraestruturas, temos neste momento uma enorme falta de espaço a nível da ULS, o que nos limita na realização de maior quantidade e diversidade de atividade e implica uma maior organização. Em relação ao material que necessita de reparação ou substituição, seja mobiliário ou equipamento técnico, há procedimentos burocráticos muito demorados, que necessitam de aprovação em Conselho de Administração, definição de requisitos, lançamento de concurso público, avaliação de propostas e, muitas vezes, relançamento do concurso por falta de resposta. Esta morosidade é frustrante para quem precisa de soluções imediatas para garantir atendimento de qualidade.
“Também a mudança de programas informáticos – por exemplo a mudança do programa de referenciação, do CTH para o SIGA – tornou mais difícil o acompanhamento do estado das referenciações”
Os sistemas informáticos são uma componente facilitadora ou constituem mais um obstáculo na rotina?
Infelizmente, são uma mistura dos dois, mas ultimamente têm sido mais fonte de problemas. A integração nacional dos sistemas trouxe desafios, nomeadamente a perda de alguma autonomia que existia localmente, e instabilidades após atualizações. Este ano já estivemos, penso que duas vezes, sem sistema informático durante cerca de 24h, sem previsão de quando o problema ficaria resolvido. Também a mudança de programas informáticos – por exemplo a mudança do programa de referenciação, do CTH para o SIGA – tornou mais difícil o acompanhamento do estado das referenciações (aceite, recusada, pendente de mais informação).
Há tempo e condições para investigação, auditorias e melhoria da qualidade?
Sinceramente, não. A falta de tempo protegido para outras atividades é uma das grandes carências, pois além da atividade diária de um médico de família, há outro tipo de trabalho que também é importante para a melhoria contínua dos cuidados aos utentes. A investigação que tem sido feita é realizada sobretudo fora do horário de trabalho, as equipas têm vindo a realizar as auditorias que estão no seu plano de ação e da ULSM, por vezes também no seu tempo pessoal.
Existem ainda grupos de trabalho multiprofissionais, constituídos por elementos de ambos os níveis de cuidados, como por exemplo, o Núcleo de Apoio a Crianças e Jovens em Risco, o grupo de Cuidados Paliativos, e outros, que precisam de tempo protegido para reuniões de discussão de casos, que não está contemplado nos horários de trabalho dos profissionais dos cuidados de saúde primários, mas que tem de ser feito.
“A ULS Matosinhos tem uma história pioneira nos cuidados primários, uma cultura de inovação que deve ser reforçada”
Que mudanças considera fundamentais para melhorar o serviço à população?
Precisamos de continuar a investir em recursos humanos, reduzir listas de utentes por profissional, tempo protegido para as várias atividades necessárias e sistemas informáticos com menos falhas e que cruzem a informação necessária para evitar duplicação de registos. É crucial consolidar a articulação entre cuidados primários e hospitalares para garantir respostas rápidas e completas e alimentar uma cultura colaborativa em todos os níveis. Só assim se garante que o utente é verdadeiramente o foco do sistema.
Para terminar, qual a sua visão para os próximos anos da ULS Matosinhos?
Vejo grandes desafios e oportunidades. A ULS Matosinhos tem uma história pioneira nos cuidados primários, uma cultura de inovação que deve ser reforçada. De acordo com os dados recentemente revelados, a ULS Matosinhos encontra-se, desde janeiro até agosto deste ano, em primeiro lugar, no que se refere ao valor do Índice de Desempenho Global (IDG) – no que se refere às unidades de cuidados primários. A articulação entre os níveis de cuidados, a aposta contínua na formação, a valorização dos profissionais e a renovação tecnológica são essenciais para garantir a sustentabilidade e excelência dos cuidados no futuro. O mais importante será nunca perder o foco no utente, acompanhando as evoluções sociais, tecnológicas e científicas, e apostar no diálogo e colaboração em prol de um serviço de saúde mais eficiente e equitativo.
Maria João Garcia
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