
Paula Freitas: “Obesidade não é uma escolha, é uma doença complexa”
Em entrevista ao HealthNews, a Prof.ª Paula Freitas, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), desmonta um dos maiores equívocos sobre a obesidade: a ideia de que se trata de uma simples escolha individual. A endocrinologista sublinha que a obesidade é uma doença crónica e multifatorial, com forte componente genética, e defende uma abordagem clínica transdisciplinar e acessível para o seu tratamento, alertando para os perigos do estigma social (SPEDM)
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HealthNews (HN) – A iniciativa “Impossible Gym” pretende desmistificar a obesidade junto da população. Do ponto de vista clínico, qual considera ser o maior equívoco que ainda persiste sobre esta doença e que esta ação ajuda a contrariar?
Professora Paula Freitas (PF) – O grande equívoco que ainda persiste, que gera desconhecimento e preconceito acerca da complexidade da doença obesidade, é que alguns profissionais de saúde e o público em geral acreditam que a obesidade é da responsabilidade individual e resulta de uma escolha da pessoa que vive com obesidade. Esta iniciativa ajuda a desmistificar e a esclarecer que a obesidade é uma doença complexa, multifatorial e crónica, com uma forte componente genética, envolvendo fatores biológicos e metabólicos que são independentes da responsabilidade individual. Em suma, é uma doença que deve ser tratada como todas as outras, sob pena de condenar a pessoa com obesidade a uma vida mais curta e marcada por inúmeras doenças associadas — metabólicas, cardiovasculares, mentais, mecânicas — e por vários tipos de cancro relacionados com a obesidade, com graves repercussões na qualidade de vida.
HN – A campanha salienta que “o corpo pode resistir ativamente à perda de peso”. Pode explicar, de forma simplificada, quais são os principais mecanismos biológicos e metabólicos que tornam a perda de peso um desafio tão complexo para muitas pessoas?
PF – De forma muito simples, quando estamos a perder peso, o nosso organismo interpreta essa perda como uma ameaça e tende a fazer-nos regressar ao peso anterior. Além disso, quando emagrecemos, aumentam as hormonas que estimulam a fome, como a grelina, e diminuem as hormonas da saciedade, como o GLP-1 e o GIP. A perda de peso provoca também uma redução do metabolismo, ou seja, uma diminuição do gasto energético, uma menor taxa metabólica em repouso e um aumento da resposta cerebral nas regiões de recompensa e homeostase perante estímulos alimentares — em suma, um maior interesse por alimentos. Assim, a perda de peso ativa poderosos mecanismos biológicos de compensação que favorecem o reganho de peso. Em outras palavras, o nosso corpo resiste ativamente à perda de peso.
HN – Como é que o estigma social em torno do peso, frequentemente associado a uma falta de força de vontade, impacta a saúde e o bem-estar das pessoas que vivem com obesidade e a sua jornada de tratamento?
PF – A ideia estigmatizante do público em geral, e até o autoestigma da pessoa com obesidade, é que ela é a responsável pela sua condição, por ser “preguiçosa” ou por não ter autocontrolo. Esta perceção retira o profissional de saúde da equação da eficácia do tratamento, responsabiliza unicamente a pessoa pelo sucesso do mesmo. Isto contribui para o aumento da prevalência da obesidade e para o aparecimento de mais de 229 doenças e 13 tipos de cancro associados à condição, além de atrasar e dificultar o tratamento, reduzindo assim a qualidade e a esperança média de vida das pessoas com obesidade. Acresce ainda a elevada carga e os enormes custos diretos e indiretos associados à obesidade. Devemos tomar medidas urgentes para que todos os profissionais de saúde tenham acesso a formação especializada na abordagem da obesidade, que os doentes disponham de tratamentos eficazes, médicos e cirúrgicos, que todos adotem um discurso não estigmatizante e que as pessoas com obesidade ou pré-obesidade, com comorbilidades associadas, tenham acesso a um tratamento integral da doença a custos acessíveis.
HN – Qual é o papel da endocrinologia e de outras especialidades médicas na abordagem da obesidade enquanto doença crónica, e porque é que uma abordagem multidisciplinar é considerada crucial?
PF – O endocrinologista tem um papel central na abordagem da obesidade. No entanto, outras especialidades também desempenham um papel relevante, desde que possuam formação específica em obesidade. De facto, a equipa ideal deveria ser uma equipa transdisciplinar, mais do que apenas multidisciplinar — composta por médico, nutricionista, fisiologista do exercício físico, psicólogo e/ou psiquiatra e cirurgião metabólico — todos a falar a mesma linguagem. Pode ainda ser necessário o apoio de outros especialistas, como, por exemplo, cardiologistas, pneumologistas, entre outros. O mais importante é que a abordagem seja centrada no doente, com todos a comunicar de forma integrada, permitindo que este participe e tome decisões informadas sobre o seu tratamento.
HN – 7Para além de iniciativas de sensibilização como o “Impossible Gym”, que outras medidas considera fundamentais, a nível nacional, para melhorar o apoio e o tratamento das pessoas que vivem com obesidade em Portugal?
PF – Na minha opinião, são necessárias mais ações de formação dirigidas ao público em geral sobre literacia em saúde, e não apenas nos aspetos relacionados com a obesidade; mais formação de qualidade para os profissionais de saúde, não só para médicos de várias especialidades, mas também para enfermeiros, entre outros; a criação de centros de tratamento de obesidade acreditados nos cuidados primários e consultas transdisciplinares hospitalares de obesidade; a comparticipação dos fármacos para o tratamento da obesidade, proporcionando equidade na acessibilidade ao tratamento desta doença; e, por último, aumentar a acessibilidade e a celeridade ao tratamento cirúrgico da obesidade, nos casos em que está indicado.
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