
Filme de António Ferreira homenageia pai ex-combatente da Guerra Colonial

“Precisamos de sair da trincheira”, diz o realizador António Ferreira, que revisita os traumas da Guerra Colonial no seu novo filme “A Memória do Cheiro das Coisas”. O filme, que chegou às salas de cinema esta semana, partiu das suas memórias pessoais, de um pai que foi combatente em África.
“Estamos num momento particularmente crítico da nossa sociedade, com muita convulsão, muita violência verbal”, lembra o realizador em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença e o cinema pode “ajudar a ver a sociedade de uma forma um bocadinho diferente”, explica.
No grande ecrã está a história de Arménio – um octogenário, ex-combatente da Guerra Colonial portuguesa que se vê obrigado a ser internado num lar de terceira idade. António Ferreira mergulha assim num universo que afetou milhares de portugueses.
“Nos anos 60, 80 por cento dos nossos jovens foram mobilizados para a guerra, portanto, praticamente todos os homens dessa época. Foi uma guerra bastante violenta, onde se morreu e matou. O país passou pela Revolução e esses homens foram enviados de volta para casa, sem qualquer explicação, sem qualquer apoio”, sublinha.
“50 anos depois, o país mudou radicalmente, mas nunca ninguém explicou a estas pessoas, agora idosas com 80 anos, o que é que aconteceu”, lamenta António Ferreira. “Foi toda uma geração que cresceu a olhar para o negro como inimigo, porque foi assim que se mobilizou homens para a guerra”, afirma.
“Tem que se identificar o inimigo e desumanizá-lo”. Hoje o mundo mudou lembra o cineasta. “Hoje a nossa sociedade está completamente diferente. O negro pode ser o nosso médico de família, o professor da escola ou o marido da nossa filha e estes homens não conseguiram mudar o olhar em relação às pessoas negras”, aponta António Ferreira
É o caso de Arménio, a personagem central do filme que de repente se vê num lar a ser tratado por Hermínia, uma auxiliar negra que o levará a enfrentar fantasmas do passado.
“Um dos meus objetivos era pôr estes dois personagens que normalmente estão em campos opostos de batalha, a conviver e a conversar. Este processo de desumanização só pode ser desmontado através da convivência com o outro lado”, diz.
“Ambos vão ter que escutar o outro lado. Quando escutamos, nós percebemos que se calhar eles não são assim tão diferentes de nós. Temos mais ou menos os mesmos anseios de ser amados, de ter saúde, e esse é o exercício do filme, gerar empatia” explica o realizador que fez centenas de entrevistas com antigos combatentes.
Questionamos António Ferreira sobre este tempo atual e o papel que uma arte, como o cinema pode ter. Na sua opinião, “não é um filme que pode mudar a sociedade, mas é mais uma ferramenta”.
“Lembro-me de o Paulo Rocha numa aula dizer que um bom filme é como um bom par de óculos. Acho que o cinema pode ter esse papel”, refere. Mas António Ferreira vai mais longe e fala da importância da produção nacional.
“Não são os americanos que vão falar dos nossos problemas específicos de Portugal. Serão os nossos artistas. Eu tento provocar a reflexão nas pessoas com o meu cinema”, remata.
O filme “A Memória do Cheiro das Coisas”, é uma coprodução com o Brasil e já foi distinguido com vários prémios, entre eles o prémio de melhor ator para José Martins, no Festival Internacional de Cinema de Xangai.
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