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Cegos que Veem, Cegos que, Vendo, Não Vêem: O Silêncio de Quem Cuida no SNS

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Catarina Chaves. Psicóloga Clínica; ULS Gaia e Espinho e Hospital Trofa Saúde Gaia

No SNS, há quem chegue antes do sol nascer e saia depois de ele se pôr. Médicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos carregam vidas nas mãos. Decidem o impossível, enfrentam rostos desesperados, enxugam lágrimas silenciosas. E quando olham para si, descobrem que também sangram — não no corpo, mas por dentro. O cansaço é físico, emocional, psicológico, existencial.

O que não aparece nas estatísticas nem nos relatórios é o peso da desumanização. Chefias que esmagam autonomia, humilham em público, ignoram a exaustão e promovem mediocridade. Pessoas que deveriam proteger equipas tornam-se barreiras invisíveis entre quem cuida e o cuidado que merece. Denúncias? Muitas vezes inúteis. Apoio psicológico? Ineficaz se o ambiente continua tóxico. É como apagar incêndios com água salgada.

O sistema insiste: mais formação, mais protocolos, mais estratégias. Mas como ensinar empatia a quem não a tem? Como transformar um psicopata em mentor inspirador? O que falta é coragem real: afastar quem destrói equipas, proteger quem denuncia, criar canais independentes que funcionem e investir no que sustenta o SNS — pessoas humanas, cansadas mas resilientes.

O problema estrutural é outro: falta de prestação de contas. Feedbacks negativos, decisões ruinosas, impactos claros na motivação e na qualidade do serviço — e nada acontece. Gestores permanecem, chefias ficam, políticas mudam, governos mudam, mas estas pessoas continuam, protegidas por estruturas políticas e burocráticas. Não é incompetência acidental: é impunidade institucional.

Nem todas as chefias são iguais. Há líderes excelentes que lutam para proteger equipas, promovem transparência, resultados concretos, igualdade, motivação e aprendizagem contínua. Estes líderes puxam os mais fracos para cima, inspiram, comunicam de forma saudável. Sob esta liderança, as equipas transpiram alegria, confiança e colaboração. Os resultados melhoram e são genuínos. Cada sorriso reflete a força de uma liderança humana e eficaz.

Mas também há os tóxicos. Os que promovem apenas quem alimenta o ego, favorecem amigos, anulam os bons, sufocam talento. Espantam equipas. Muitos profissionais saíram — por mobilidade, licença sem vencimento ou porque o sistema não lhes deu condições para ficar. Estes movimentos repetidos deveriam acender alarmes. Os RH conhecem-nos, mas raramente analisam causas profundas ou agem. Resultado: um quadro esvaziado de experiência, perda de memória institucional e competência. Ficam os conformados e os protegidos. O silêncio instala-se. E os gestores de topo sabem quem são estas lideranças e reconduzem-nas, sustentando-as com a falácia da autoridade — confundindo poder doente com prestígio legítimo.

A sobrecarga continua brutal: turnos intermináveis, urgências lotadas, maternidades ao limite, decisões de vida ou morte a cada instante. Stress, ansiedade, burnout, tristeza silenciosa. Cada erro evitável, cada lágrima não enxugada, cada desmotivação é reflexo de um sistema que não cuida de quem cuida.

Precisamos diagnosticar estas saídas, entender motivos, criar estratégias e agir com coragem — sem óculos cor-de-rosa. Fingir que tudo está bem só perpetua problemas. Não há gestores, partidos ou governos que nos satisfaçam se não houver coragem para enfrentar a raiz: corrigir chefias tóxicas, processos injustos e práticas opacas. Cuidar de quem cuida exige ação verdadeira, sem medo, sem favores, sem atalhos.

O SNS é humano porque é feito de humanos. Ignorar esta verdade é perder os melhores, adoecer quem fica e roubar humanidade de um serviço que deveria ser a nossa rede de segurança coletiva. Só com líderes que inspiram, que nos façam querer ficar, que nos incentivem a trabalhar com gosto, com sorriso, com energia para fazer mais e melhor, podemos salvar vidas sem nos destruirmos por dentro.

Cuidar de quem cuida não é luxo, não é protocolo: é urgência, coragem e responsabilidade”.

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