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“Caminhamos para um liberalismo excessivo”, alerta o presidente da CNIS

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O presidente da Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade Social (CNIS), padre Lino Maia, deixa, num momento em que se discute o Orçamento do Estado (OE), um alerta de que “caminhamos para um liberalismo excessivo”.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Lino Maia pede para que não sejam esquecidos os princípios da Doutrina Social da Igreja e não se abandone o objetivo de “servir as pessoas”.

O padre Lino Maia deixa também críticas à proposta de reforma da legislação laboral. O sacerdote afirma que “mexer muito na atual lei” pode “atentar contra a dignidade dos trabalhadores”.

“Os trabalhadores não são um problema, são a solução”, afirma.

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Entre outros alertas, o presidente da CNIS chama ainda a atenção para os riscos de se converter as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) em empresas sociais. “Isso é complicado, é grave”, declara, argumentando que com esse caminho “ficará mais gente para trás e aumentará a pobreza”.

“É grave converter as IPSS em empresas sociais” dado que “ir-se-ia privilegiar os que podem pagar”.

“Os trabalhadores não são um problema, são a solução”

Numa altura em que Governo e CNIS retomam conversas sobre o Pacto de Cooperação, Lino Maia volta a insistir na defesa da comparticipação a 50 por cento das diversas valências asseguradas pelo sector social.

O sacerdote considera fundamental o aumento das comparticipações para fazer face ao aumento do custo das respostas e também para se compensar a subida prevista de 50 euros do salário mínimo, no próximo ano.

“Tem de haver um aumento significativo por parte do Estado nas comparticipações para que as instituições não se desviem da sua missão de privilegiar os mais carenciados”, declara Lino Maia.

“Mexer muito na lei laboral pode perigar os direitos dos trabalhadores, atentar contra a sua dignidade”

No seu editorial no jornal “Solidariedade”, alerta para a possibilidade de o Governo não cumprir o Pacto de Cooperação para a Solidariedade. Que indícios justificam este receio?

Já começaram as negociações para atualizações dos acordos de cooperação. A perspetiva, para já, é, de facto, má. Sabemos que há valências em que a comparticipação pública é muito baixa. Temos valências, como Centro de Dia ou ATL, em que estamos longe, muito longe dos 50%, estão abaixo de 40%, estão a 35%. Portanto, estão muito abaixo.

Parece-me que, para chegar aos 50%, aquilo que está consagrado no Pacto de Cooperação não dá uma perspetiva assim muito favorável. É evidente que vamos pressionar, insistir oportunamente e não oportunamente, porque “palavra dada, palavra honrada” e temos de dar passos no sentido da aproximação dos 50%, em muitas valências.

Mas está em risco um acordo, neste momento? Há uma data-limite?

Tem de ser negociado logo que possível. E, de facto, pode ser ou não concretizado. Pode não haver acordo, de facto. Tudo se conjuga para que, antes do fim do ano, cheguemos a uma conclusão, de modo a que, em janeiro de 2026, já estejam a ser atualizadas as comparticipações públicas.

“Tem de haver um aumento significativo por parte do Estado nas comparticipações”

Fica com a impressão de que o Estado está a privilegiar prestações sociais em vez do apoio à ação social?

É verdade, aliás, digo também nesse editorial que o Orçamento do Estado ignora estes setores. As pessoas podem pensar que, afinal, há atualizações de prestações sociais. Há atualizações, mas nós temos de pensar e de concretizar isto. É que o setor social solidário e as IPSS prestam muita ação social em favor dos mais carenciados. E quanto às atualizações para os acordos de cooperação, portanto, para que as instituições continuem a prestar o serviço que prestam, nesse aspeto, o Orçamento do Estado não se pronuncia.

Nessa perspetiva, pode estar em causa esta boa cooperação entre o Estado e o setor social?

Se não dermos passos no sentido da aproximação dos 50 por cento, está em causa. E estão em causa outras questões que são importantes. Há um discurso que vai reinando no sentido destas instituições poderem converter-se em empresas sociais. Isto é complicado, é grave, porque, convertendo-se em empresas sociais, estaremos a abandonar aqueles que mais precisam de apoios. Começarão a ter, certamente, acesso às várias respostas sociais aqueles que poderem contribuir, aqueles que poderem pagar. Isso é complicado e, portanto, ficará mais gente para trás, aumentará a pobreza e, sobretudo, serão muitas as pessoas o excluídas de serviços que são necessários e que só estas instituições podem prestar aos mais necessitados.

“É grave converter as IPSS em empresas sociais”

Vai privilegiar-se, de alguma forma, o lucro com a criação de uma empresa social em detrimento da pobreza?

Ainda que não se privilegie o lucro de imediato. Esse é o segundo passo. Desde logo, ir-se-ia privilegiar, de facto, os que podem pagar.

Há uma perversão da natureza destas instituições nessa proposta?

Na proposta, sim. Agora, é evidente que isto é acabar ou pôr de facto em perigo estas instituições que poderão ser remetidas apenas para instituições de caridade. A caridade é importante, é muito importante, mas só presta caridade, só dá quem tem e, por isso, muitas das pessoas que precisam de serviços deixarão de ter acesso a esses serviços de que precisam.

O Orçamento do Estado prevê um aumento do salário mínino de 50 euros no próximo ano, para os 920 euros. Defende a ideia de salários dignos e justos, mas também alerta para a fragilidade financeira das instituições de solidariedade. Este aumento é aceitável? Para as instituições, é incomportável? Existe risco de novas falências? Como compatibilizar a justiça do aumento com a saúde financeira das IPSS?

Primeiro, sou absolutamente a favor de um aumento do salário mínimo porque, de facto, é muito baixo. Nas instituições, sente-se que é mesmo muito baixo porque, com um trabalho menos duro e, talvez, até a ganhar mais, os trabalhadores partem para outros serviços e abandonam as instituições. Já está a haver dificuldade em recrutar trabalhadores nas instituições de solidariedade. Agora, qualquer aumento de salário mínimo tem um impacto muito grande nas instituições porque, enquanto na economia em geral, a massa salarial representa cerca de 17%, 18% dos custos na economia em geral, nas instituições de solidariedade a massa salarial representa 70% dos custos dos serviços. Portanto, qualquer aumento tem um impacto grande.

E reparamos que isto não está a ser tido em atenção, não está a ser tido suficientemente em atenção e temos também de pugnar para que haja aumento significativo das comparticipações públicas para as instituições, exatamente também para elas poderem pagar melhores salários. E até para não perderem trabalhadores.

“Há muitas instituições que se estão a endividar sistematicamente (…) e isso não pode acontecer indefinidamente”

Existe então esse risco de novas falências no setor… Como se compatibiliza o aumento dos salários com a saúde financeira das instituições?

É evidente que só há duas hipóteses: ou as instituições começam a desviar-se da sua matriz e da sua missão, passando a aceitar como utentes aqueles que podem pagar melhor, ou, então o Estado passa a comparticipar melhor.

Por exemplo, numa ERPI [Estrutura Residência para Pessoas Idosas] ou num lar, o custo médio previsto para 2025 anda nos 1.630 por utente e o custo em 2026 ainda será superior. Se o Estado só comparticipa em cerca de 700 euros por utente, significa que o utente, com a respetiva família, terá de comparticipar em cerca de 900 euros. Quais são os utentes que podem, de facto, comparticipar com esses 900 euros, quando as reformas são ainda muito baixas? O país não é todo igual, em muitas zonas do país a maior parte dos utentes, ou muitos utentes, nunca descontaram ou eram trabalhadores rurais com pequenos descontos e, portanto, têm reformas muito baixas. Tem de haver um aumento significativo por parte do Estado nas comparticipações, repito, para que as instituições não se desviem da sua missão que é privilegiar os mais carenciados.

Ou que vão à falência por causa do aumento do salário mínimo?

Eu não gosto do termo e, sobretudo, de acenar com esse risco, porque, senão, pode mesmo acontecer. Da parte dos dirigentes, vai havendo sempre um esforço pessoal, há uma tentativa também de envolvimento da comunidade, há milagres que vão sendo feitos por instituições, mas há, e para mim esse é o grande problema, há muitas instituições que se estão a endividar sistematicamente. Nos estudos que temos feito periodicamente, um estudo com a chancela da Católica, vê-se que, de facto, sistematicamente, 50% ou até mais de metade das instituições chegam com resultados negativos ao fim do ano. E são sempre as mesmas instituições, não há assim uma grande variação, o que significa que, se eu falar da possibilidade de falência, isso pode abrir mesmo uma “caixa de Pandora” e pode acontecer isso mesmo. Mas as instituições vão-se endividando e isso não pode acontecer indefinidamente. Isto tem de ter um fim.

“Sou absolutamente a favor de um aumento do salário mínimo”

Falou da dificuldade de recrutamento de trabalhadores por parte das IPSS e sabemos que muitos destes trabalhadores já são imigrantes. A nova lei da imigração – ou até a lei da nacionalidade – vão dificultar ainda mais o recrutamento?

Vai dificultar. Eu sou um bocado reticente ao discurso vigente, ao discurso que está agora a imperar. Nós, portugueses, temos um histórico, somos um povo que emigra, não podemos ser um povo que fecha sistematicamente as portas aos imigrantes. Precisamos de mais trabalhadores vindos de fora, até porque a população portuguesa, diria de origem portuguesa, vai envelhecendo. Se não fossem os imigrantes, há muitos serviços que deixavam de ser prestados porque, de facto, o que vale são os imigrantes.

Nas instituições de solidariedade, já temos muitos imigrantes de várias nacionalidades e que são uma mais-valia. O problema é que, muitas vezes, estão uns meses nas instituições para fazerem uma espécie de formação e, depois, demandam para onde pagam mais ou para onde terão menos trabalho ou um trabalho menos duro. Portanto, há de facto dificuldade, mas, repito, eles são uma mais-valia, de um modo geral, e até temos trabalhadores com habilitações elevadas que se sujeitam a trabalhos, diria que para pessoas que poderiam ter menos habilitações.

Não vou agora aqui dizer nacionalidades, mas reparamos que há em várias um aspeto muito importante: em muitos destes imigrantes trabalhadores encontramos, de facto, a criação de laços de afeto com os utentes, um tratamento bom, bonito, de afeto e nestas instituições isso é extremamente importante.

“Se não fossem os imigrantes, há muitos serviços que deixavam de ser prestados”

Temos falado, sobretudo, de dificuldades, mas vamos falar agora de um projeto novo porque as instituições estão no terreno e continuam a trabalhar. Em outubro, entrou em vigor o projeto que junta saúde ao apoio domiciliário, é o SAD+Saúde. Qual tem sido a recetividade?

Já há bastantes anos que lutávamos por isto. O projeto-piloto está previsto para cinco regiões de país e haverá instituições que o vão implementar, que estão agora a candidatar-se, aguardando por uma decisão. É muito importante encetarmos este caminho. Aliás, cuidados de saúde já vamos prestando no apoio domiciliário, apesar de tal não estar previsto e não ser apoiado, mas os utentes de SAD – de serviço de apoio domiciliário – são, muitas vezes, pessoas que precisam mesmo de cuidados de saúde e de um apoio domiciliário não restringido a oito horas por dia, mas ao longo de 24 horas por dia.

Isso é, de facto, mesmo muito importante, particularmente nas zonas de baixa densidade populacional. É muito importante que haja alguém que, à meia-noite, vá apagar a luz, vá dar os medicamentos, vá dar um chá, que acompanhe na medicação as pessoas e mesmo que as transportem, as levem para cuidados externos de saúde.

Eu penso que esta medida, este SAD+Saúde é, de facto, muito importante e que, se for convenientemente apoiada pelo Estado, a breve trecho alargar-se-á a todo o país. Não digo que todas as instituições vão aderir, nós vamos continuar a precisar do outro tipo de apoio domiciliário, mas, de facto, tenderá a ser o verdadeiro SAD, será o SAD+Saúde.

“Somos um povo que emigra, não podemos ser um povo que fecha sistematicamente as portas aos imigrantes”

Está em curso, na Concertação Social, a discussão de uma nova reforma da legislação laboral. Era uma questão premente? Os sindicatos já vieram a público contestar esta proposta de reforma…

Atualizações poderão acontecer, mas eu tenho algum receio. Os trabalhadores não são um problema, são a solução. Não pode haver um discurso, nem uma legislação que olhe só para os empregadores, é preciso uma legislação que tenha em atenção, de facto, os direitos dos trabalhadores, a dignidade dos trabalhadores que são pessoas.

Eu temo que o mexer muito na atual lei laboral possa, de facto, perigar os direitos dos trabalhadores atentar contra a sua dignidade. Começou mal esta discussão, mesmo muito mal, e espero que, de facto – ela vai ser transferida para o Parlamento – espero que, de facto, não nos desviemos muito do essencial. Não nos devemos desviar nada dos direitos dos trabalhadores. Repito: os trabalhadores não são o problema, são a solução. Quando há incumprimento, evidentemente, há lei, mas não os devemos ver como problema.

“Não está a haver em Portugal uma política de coesão territorial, de coesão social”

Voltamos ao início da entrevista: é costume dizer que o setor social chega onde o Estado deixou de ir ou onde deixou de estar. Para que possa continuar a cumprir essa missão, é necessário aprofundar a cooperação?

Sem dúvida. Claro que temos dificuldade, até porque, muitas vezes, é para as zonas de maior densidade populacional que o Estado, normalmente, está voltado porque é onde há votos. As de baixa densidade populacional são as zonas normalmente mais abandonadas. Não está a haver em Portugal uma política de coesão territorial, de coesão social, como era importante que houvesse.

Eu temo que, de facto, estas zonas fiquem para trás, fiquem cada vez mais para trás e é importante que as instituições aí continuem. No estudo que vamos apresentar brevemente, prova-se aquilo que já sabíamos: em muitas das aldeias deste país, o único serviço às pessoas que existe é prestado por estas instituições. Em 23% – 23 ou 27, agora não tenho bem presente o número – de aldeias, o único serviço prestado às pessoas é por estas instituições. Ora, se não fossem estas instituições, então não havia qualquer serviço de qualquer ordem…

“É para as zonas de maior densidade populacional que o Estado, normalmente, está voltado porque é onde há votos”

Leão XIV retoma as críticas de Francisco à “economia que mata”, na sua primeira exortação apostólica do pontificado, na “Dilexi Te”, publicada a 9 de outubro. Qual é a importância desta exortação para o atual contexto social em Portugal?

Em primeiro lugar, era preciso que nós, de facto, estudássemos bem estas alertas. Temo que em Portugal caminhemos um bocado para um liberalismo excessivo. Eu sou a favor da liberdade, mas é importante que o lucro não seja, de facto, o objetivo, mas que o objetivo seja o servir as pessoas. Portanto, tenho algum receio de que estejamos a caminhar mal. Eu defendo intransigentemente dois direitos da Doutrina Social da Igreja. Defendo todos, os princípios, mas há dois que, para mim, são fundamentais: a vida, a preservação da vida, desde a conceção até à morte natural, e a dignidade da pessoa.

Eu penso que estamos nesta economia que mata. Estamos a esquecer, a abandonar a dignidade de toda a pessoa, de cada um e de todos, e temo que estejamos também a não respeitar convenientemente a vida de cada um e de todos.

E essa é uma mensagem central também para as instituições e para o setor social no combate à pobreza?

É, sem dúvida. Direi que as instituições são, de facto, uma luz, um alerta permanente para contrariar esta economia que mata.


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