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A fundamentação ética, legal e deontológica na prática dos registos das Decisões de Não Reanimação (DNR)

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As decisões de não reanimação (DNR – Do Not Resuscitate) constituem um dos temas mais sensíveis e complexos da prática clínica, situando-se na confluência entre a ciência, a ética e o direito. Estas decisões implicam ponderar não apenas a eficácia terapêutica das manobras de reanimação, mas sobretudo o respeito pela dignidade humana, pela autonomia do doente e pelos limites éticos do ato médico e de enfermagem.

Em Portugal, o quadro legal e deontológico oferece bases sólidas para orientar estas decisões, embora a sua aplicação prática exija uma profunda reflexão ética, comunicação interprofissional e rigor no registo clínico. A DNR deve ser sempre o resultado de um processo deliberativo responsável e transparente e nunca uma omissão de cuidados ou uma substituição indevida de terminologias clínicas.

Do ponto de vista ético, as decisões de não reanimação devem apoiar-se nos princípios fundamentais da bioética: a Autonomia, que reconhece o direito do doente a decidir sobre os cuidados a receber ou a recusar; a Beneficência e não maleficência, que impõem o dever de atuar em benefício do doente, evitando intervenções fúteis ou geradoras de sofrimento; e, a Justiça, que assegura equidade no acesso e nas decisões clínicas. Contudo, o princípio da proporcionalidade terapêutica é central, porque reanimar não é sempre cuidar, e abster-se de reanimar, quando clinicamente justificado, pode ser a forma mais ética de preservar a dignidade.

A reflexão que aqui se apresenta não incide sobre o regime jurídico das diretivas antecipadas de vontade ou do testamento vital, mas sobre a decisão médica de não reanimação (DNR) enquanto ato clínico, ético e deontológico no contexto dos cuidados de saúde, que respeita o princípio da proporcionalidade terapêutica.

A prescrição de uma DNR é da competência médica, mas deve ser clara, fundamentada e formalmente registada. O médico tem o dever ético e legal de: avaliar a futilidade clínica da reanimação, com base em critérios científicos e prognósticos objetivos; deliberar em contexto de equipa multidisciplinar; comunicar de forma transparente e empática com o doente e/ou família, assegurando a compreensão e o consentimento informado; registar expressamente no processo clínico a decisão de DNR, identificando o fundamento clínico e o âmbito da decisão.

No Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho, o Artigo 40.º, refere que o médico deve registar no processo clínico, de forma clara e detalhada, os resultados relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo e para a comunicação entre profissionais. Ou seja, estabelece o dever ético-deontológico de registo obrigatório no processo clínico de todas as decisões clínicas relevantes, incluindo a decisão de não reanimação (DNR).

O mesmo Regulamento define as normas sobre decisões clínicas no fim de vida, determinando que estas devem ser fundamentadas clinicamente, documentadas no processo clínico e comunicadas à equipa e à família. A deontologia determina que a DNR não é sinónimo de abandono terapêutico, devendo manter-se todas as medidas de conforto, controlo sintomático e acompanhamento humanizado.

A Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro  refere na informação médica, que cada processo clínico deve conter toda a informação médica disponível que diga respeito à pessoa, que a informação médica é inscrita no processo clínico pelo médico que tenha assistido a pessoa, sendo este constituído por todos os dados relativos à sua situação de saúde e, por consequência, o dever do médico de registar de forma fidedigna todos os atos e decisões clínicas, incluindo a DNR.

Do ponto de vista ético e deontológico, o registo formal da decisão de não reanimação (DNR) assume uma relevância muito superior à de outras prescrições médicas, por várias razões fundamentais relacionadas com a natureza da decisão, o seu impacto moral e as implicações sobre os direitos fundamentais da pessoa.

Enquanto a maioria das prescrições médicas visa intervir para preservar, restaurar ou melhorar a vida e a saúde, a DNR constitui uma decisão de abstenção terapêutica no momento crítico da paragem cardiorrespiratória.
Trata-se, portanto, de uma decisão que toca diretamente o valor intrínseco da vida humana e o seu termo natural, situando-se no limiar entre a beneficência e a não maleficência.

A DNR tem uma implicação ética diferente, porque exige uma justificação moral e clínica explícita, para assegurar que não resulta de omissão, negligência ou discriminação, mas de uma avaliação ponderada e proporcional.
O registo escrito é, por isso, um dever de transparência ética e de proteção da dignidade do doente, porque o registo serve para preservar a memória ética e factual do processo de decisão. No caso da DNR, esse dever ganha especial relevância, porque sem registo não há prova de consentimento nem de proporcionalidade terapêutica.

São várias as razões para considerar que não é aceitável que o médico não registe uma decisão de não reanimação (DNR), porque tal omissão viola o dever legal e deontológico de assegurar a rastreabilidade das decisões clínicas, compromete a transparência, a continuidade dos cuidados e o direito do doente a uma informação clara e documentada sobre as opções terapêuticas que lhe dizem respeito. A DNR tem consequências irreversíveis, logo, exige rastreabilidade total.

O registo claro e fundamentado, protege o médico e a equipa de acusações de omissão de socorro, negligência ou abandono, demonstra que a decisão foi tomada em consciência ética, com base em critérios clínicos e deontológicos legítimos, reforça a responsabilidade profissional partilhada e o respeito mútuo entre equipas.

Ao contrário de uma prescrição farmacológica ou terapêutica, uma decisão de DNR é irreversível no momento em que ocorre a paragem cardiorrespiratória. Não há segunda oportunidade para corrigir uma omissão, nem tempo para reinterpretações. Por este motivo, o registo assume uma dimensão ética preventiva, porque garante que, perante uma emergência, a decisão seja conhecida, respeitada e executada de forma coerente por toda a equipa.

O registo formal demonstra que a decisão, foi clinicamente fundamentada, foi partilhada e comunicada e respeitou os princípios bioéticos e legais vigentes. Assim, o registo não é apenas um ato burocrático, mas uma expressão documental da ética da transparência, da responsabilidade e da compaixão profissional.

A precisão terminológica do registo é um requisito ético e jurídico essencial, porque a DNR deve ser explicitamente designada como tal.
É incorreto, e juridicamente perigoso, substituir esta designação por expressões ambíguas como “não iniciar manobras invasivas” ou “manter apenas medidas de conforto”, pois estas não traduzem a natureza da decisão e podem induzir interpretações erradas na prática clínica.

Do ponto de vista ético e deontológico, a utilização de expressões ambíguas em substituição da prescrição formal de Decisão de Não Reanimação (DNR), é uma violação do dever de clareza ética, de transparência profissional e de respeito pela autonomia do doente. Estas expressões, frequentemente empregues para suavizar o impacto emocional da decisão, não têm valor jurídico nem precisão clínica, e a sua utilização pode gerar confusão, interpretações divergentes e comportamentos incoerentes entre profissionais de saúde. A ética profissional exige precisamente o oposto, linguagem clara, inequívoca e verificável.

As medidas de conforto fazem parte dos cuidados de enfermagem, sendo intervenções autónomas, que visam aliviar o sofrimento e promover a dignidade. Usá-las como sinónimo, eufemismo ou nome de código de DNR constitui uma apropriação indevida de atos autónomos de enfermagem e um erro conceptual e ético, que compromete a clareza clínica e o respeito interprofissional. Assim, a prescrição médica deve mencionar expressamente DNR, acompanhada da fundamentação clínica e ética, assegurando a rastreabilidade e a segurança jurídica da decisão. A DNR deve ser uma deliberação multiprofissional, é uma prescrição médica e as medidas de conforto são cuidados de enfermagem continuados que devem ser mantidos independentemente da DNR. A terminologia precisa é um mecanismo de segurança clínica, pois reduz o risco de dano decorrente de uma ação ou omissão indevida e reforça o princípio bioético da não maleficência.

Deontologicamente, essa apropriação viola o princípio da integridade profissional e o respeito pela autonomia técnica das profissões de saúde, ferindo a ética da colaboração interprofissional. A linguagem ambígua ameaça a segurança ética e clínica, porque a transparência semântica é uma exigência deontológica.

A decisão de não reanimar exige coragem ética e rigor terminológico.
Suavizar a linguagem não suaviza a responsabilidade moral.
Em ética clínica, a clareza é uma forma de compaixão, e nomear corretamente a DNR é um dever de verdade, transparência e respeito pela dignidade da pessoa humana e pela integridade das profissões de saúde.

A execução de uma DNR sem registo clínico formal é eticamente inaceitável e juridicamente arriscada, podendo comprometer a responsabilidade profissional dos enfermeiros. Da mesma forma, uma prescrição ambígua, por exemplo, “manter apenas medidas de conforto”, coloca o enfermeiro numa situação de vulnerabilidade ética e legal, uma vez que não clarifica de forma expressa o limite da intervenção em caso de paragem cardiorrespiratória.

O registo explícito da DNR no processo clínico é o elemento que confere legitimidade, transparência e segurança à decisão. A ausência deste registo pode originar conflitos éticos, incoerência entre intervenções e, em última instância, lesão de direitos fundamentais do doente.

Para além de proteger o doente, o registo protege igualmente os profissionais, assegurando que cada membro da equipa conhece o plano terapêutico e atua em conformidade. No plano da ética organizacional, ela constitui um pilar da cultura de segurança, ao garantir que a informação crítica está acessível, compreensível e fiável para toda a equipa.

Uma cultura de ética partilhada e colaboração interprofissional é essencial para garantir que a DNR é compreendida como parte integrante de um plano de cuidados centrado na pessoa, e não como um limite arbitrário da intervenção terapêutica.

Em síntese, a decisão de não reanimar é uma deliberação ética e clínica de elevada complexidade, que exige clareza, rigor e humanidade. A sua legitimidade resulta da articulação entre princípios bioéticos, legislação nacional e deveres deontológicos profissionais.

O desafio ético que se impõe não é decidir entre reanimar ou não reanimar, mas garantir que qualquer decisão reflita o respeito pela dignidade humana, pela autonomia do doente e pela integridade moral dos profissionais.
Em última instância, não reanimar pode ser o mais profundo ato de respeito pela vida.

 

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