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A ética da verdade em tempos de desinformação

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Introdução

Vivemos numa era paradoxal, nunca tivemos tanto acesso à informação e, simultaneamente, nunca estivemos tão expostos à mentira. O que antes se transmitia em conversas de café ou boatos de bairro, hoje alastra em segundos pelas redes sociais, alcançando milhões de pessoas sem filtros nem verificação. No campo da saúde pública, este fenómeno assume uma gravidade acrescida, a desinformação não só fragiliza a confiança social, como coloca vidas em risco.

As chamadas fake news sobre vacinas, pandemias, terapêuticas milagrosas ou conspirações médicas não são apenas erros inocentes; constituem verdadeiras ameaças à dignidade humana, pois interferem diretamente na capacidade de as pessoas tomarem decisões livres e informadas. O personalismo ético, ao colocar a pessoa humana no centro, convida-nos a refletir sobre a verdade não apenas como categoria abstrata, mas como condição essencial da autonomia e da vida em sociedade.

A verdade como condição da autonomia

A autonomia, entendida em bioética como a capacidade de decidir por si mesmo, exige sempre informação adequada, compreensível e fidedigna, uma decisão tomada com base em falsidades não é uma escolha livre, mas uma manipulação disfarçada de liberdade.

Quando alguém recusa uma vacina por ter lido numa rede social que ela “provoca infertilidade”, ou quando um doente oncológico interrompe a quimioterapia para seguir uma “cura natural” promovida por influenciadores digitais, o que está em causa não é apenas a opção individual, é a violação do seu direito à verdade. Neste sentido, a desinformação em saúde deve ser entendida como uma forma de violência simbólica, impede a pessoa de exercer a sua autonomia em plenitude, reduzindo-a a objeto de manipulação.

Desinformação como violência simbólica

Mentir ou difundir inverdades em saúde não é apenas um erro ético menor: é uma agressão à dignidade da pessoa. Ao privar alguém da verdade, roubamos-lhe também a possibilidade de discernir, de escolher e de confiar.

O personalismo sublinha que a pessoa é um fim em si mesma, nunca um meio para interesses ideológicos, políticos ou económicos., assim, quando determinados grupos ou indivíduos disseminam fake news com o objetivo de ganhar seguidores, vender produtos ou fragilizar políticas públicas, estão a instrumentalizar a vida e a vulnerabilidade humana. A mentira em saúde torna-se, assim, uma forma de exploração que mina a confiança não só entre médico e doente, mas entre cidadãos e instituições.

Redes sociais e o efeito viral

A dimensão das redes sociais acrescenta um novo desafio ético, não se trata apenas de quem cria a mentira, mas também de quem a partilha, comenta ou mantém silêncio cúmplice, cada gesto digital contribui para a propagação da desinformação ou para a sua contenção.

O fenómeno viral funciona como um espelho da nossa responsabilidade cívica, partilhar sem verificar equivale a atirar mais lenha para a fogueira. Por outro lado, ignorar totalmente a mentira pode permitir que ela ganhe terreno. É neste equilíbrio delicado que emerge a necessidade de uma ética digital da verdade, cada cidadão é chamado a um discernimento crítico antes de carregar no botão de “partilhar”.

O personalismo como critério

No debate atual, muitas vezes caímos em dois extremos, de um lado, a tecnocracia fria que pretende impor “a verdade científica” de forma autoritária, sem diálogo; do outro, o relativismo informativo que coloca a mentira e a evidência no mesmo plano, em nome de uma “liberdade de opinião” absoluta.

A perspetiva personalista oferece uma via alternativa, colocar a pessoa no centro. Isso significa respeitar a sua capacidade de discernimento, promover uma comunicação clara e dialogante, e ao mesmo tempo rejeitar a banalização da mentira. A verdade, em bioética, não é apenas um dado objetivo, mas uma relação, é o compromisso de comunicar com honestidade, reconhecendo a vulnerabilidade e a dignidade do outro.

Responsabilidade cívica

A luta contra a desinformação não é tarefa exclusiva de médicos, jornalistas ou autoridades de saúde, é um dever cívico que interpela cada um de nós. Assim como respeitamos regras de trânsito para proteger a vida, também devemos assumir regras éticas na comunicação para proteger a verdade.

Proteger a verdade em saúde é, em última instância, proteger a própria vida. Cada vez que corrigimos um boato, que explicamos pacientemente a um familiar porque determinada informação não tem base científica, ou que recusamos partilhar uma publicação suspeita, estamos a praticar cidadania ética.

Propostas concretas

Do ponto de vista bioético, algumas medidas podem fortalecer este compromisso com a verdade:

  1. Promoção da literacia em saúde: integrar desde cedo na escola o discernimento crítico sobre informação digital.
  2. Fact-checking responsável: iniciativas jornalísticas e académicas que ajudem a validar e explicar dados de forma clara.
  3. Formação ética em comunicação: incluir nos curricula de medicina, enfermagem, jornalismo e ciências sociais módulos sobre ética da informação e responsabilidade cívica.
  4. Planos comunitários de comunicação em crises: criar estruturas locais que articulem profissionais de saúde, líderes comunitários e cidadãos para responder rapidamente a boatos nocivos.

Conclusão

A desinformação em saúde não é apenas um problema de comunicação, é um desafio ético profundo. A mentira, quando se infiltra na vida das pessoas, fragiliza a autonomia, mina a confiança social e coloca em risco a própria vida. O personalismo recorda-nos que cada pessoa tem direito à verdade como condição da sua dignidade e liberdade.

Numa sociedade saturada de informação, proteger a verdade torna-se um ato de cuidado. É um exercício de cidadania ética que ultrapassa a esfera individual e se inscreve na responsabilidade comum de preservar a saúde e a confiança. A verdade, em bioética, não é apenas uma questão científica: é um dever de humanidade.

“A mentira em saúde não é apenas erro, é uma agressão à dignidade da pessoa, porque a priva da liberdade de decidir com verdade.”

Abel García Abejas

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