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um retrato da violência obstétrica em Portugal

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“Gostava de ter tido três filhos, mas depois daquele parto não queria mais nenhum”, conta Maria João Barbosa, quando relembra o parto do seu primeiro filho em janeiro de 2017. Preparada e informada, curso de preparação para o parto feito, família e namorado no apoio, entrou para o Hospital Divino Espírito Santo, em São Miguel, de coração aberto. Ficou 12 horas deitada numa cama, sem se poder mover, obrigada a ficar deitada de lado, sozinha e sem lhe darem respostas. Nem a ela, nem ao namorado ou à mãe, que se encontravam na sala de espera também cheios de questões.

Durante o parto, acredita que lhe fizeram a manobra de Kristeller – prática não recomendada pela OMS e que consiste em alguém fazer pressão sobre a barriga para tentar que o bebé nasça. “Agora é que vou desta para melhor, morro aqui que me vão partir as costelas”, pensou Maria João durante o parto. Pediam-lhe para fazer força, fazer força, ela não sentia nada. Levou um ralhete. Depois, o filho nasceu e estavam os dois bem. Aparentemente. Maria João esteve “quatro anos traumatizada e com um bloqueio emocional”.

Maria João não tem dúvidas: foi vítima de violência obstétrica. Mas as coisas não são assim tão simples. Vejamos: o conceito de violência obstétrica entrou na lei no final de março de 2025 e desde então tornou-se obrigatório o registo e justificação de todas as intervenções feitas durante a gravidez e o parto; foram proibidas as episiotomias de rotina; ficou previsto o direito a uma indemnização em caso de violação de direitos e ainda destacou a importância de formação para profissionais e grávidas.

A Lei n.º 33/2025, baseada em propostas do BE e do PAN, foi aprovada com votos a favor destes partidos e do PS, Livre e PCP; a IL e o Chega abstiveram-se o PSD e CDS-PP votaram contra. A polémica instalou-se, sobretudo pela rejeição do termo por muitos profissionais de saúde, e com a Ordem dos Médicos a emitir um comunicado em que afirmava que “esta lei cria um estigma inaceitável sobre médicos e outros profissionais de saúde”.

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Por outro lado, havia alguma comemoração do lado das ativistas pelos direitos das mulheres no parto por o termo estar cunhado na lei, apesar de ressalvarem que “há muitos aspetos a melhorar”. Carla Pita Santos, da direção do Observatório da Violência Obstétrica (OVO), afirma em conversa com o SAPO: “Quando dizemos que a violência obstétrica existe, não estamos a insultar médicos. Estamos a dizer que é preciso quebrar ciclos de violência perpetuados na medicina.” O OVO nasceu em novembro de 2021, e logo no primeiro mês recebeu entre 500 e 600 testemunhos de mulheres. Desde então, já analisaram mais de mil relatos e ainda têm centenas em espera. “Não fomos nós que inventámos o problema, foram as mulheres que começaram a falar”, explica.

O tema não é novo: há registos de publicações inglesas do século XIX em que se registava maus-tratos durante o parto, mas o tema ganhou outra força no início dos anos 2000 com os movimentos feministas. Em 2004, foi aprovada na Argentina a Lei do Parto Humanizado, mas sem referir o termo violência obstétrica. O mesmo aconteceu no México em 2007. E, nesse mesmo ano, a Venezuela legislou sobre violência obstétrica, criminalizando-a. Este ano, Portugal tornou-se o primeiro país da União Europeia a legislar sobre violência obstétrica – reconhece oficialmente o termo na lei mas não o criminaliza.

“Saia, que isto não vai ser bonito”

Um ano antes de Maria João ter o bebé, Beatriz Azeredo Tomaz dava entrada no Hospital de Cascais para ir fazer o CTG (exame regular no final da gravidez no qual se monitoriza os batimentos cardíacos do bebé e as contrações do útero da mãe). Como a sua obstetra estava de banco e Beatriz já estava quase no tempo final da gravidez, decidiram induzir o parto: “Saiu o rolhão mucoso, foi horrível, umas dores insuportáveis, percebi que não estava preparada para aquilo”, conta Beatriz ao SAPO.

Segunda, terça, quarta-feira. Nada. Três dias em que Beatriz esteve em indução e pedia ajuda por mensagem à médica, mas já tinha saído de banco e dizia que nada podia fazer. “Levei sete epidurais, chorava copiosamente e já os enfermeiros me diziam para não tomar mais nada e que me iam levar para cesariana”. Na quinta-feira de manhã, disseram-lhe para relaxar que ia para cesariana. Finalmente, Beatriz ficou aliviada e foi para o bloco.

A médica, sem aviso nenhum, rebentou-lhe as águas. Eram 9h da manhã. A filha nasceu às 23h27. Durante o parto, a médica disse ao namorado: “Saia, que isto não vai ser bonito”. Saiu também uma médica que disse que não concordava com o que estava a ser feito ali. “Usaram fórceps, ventosas, metiam-se em cima de mim e empurravam a barriga, rasgaram-me até ao rabo”, conta Beatriz.

Depois de a bebé nascer, a recém-mãe teve de ser reanimada e a recuperação foi muito difícil. “Eu não tinha força para pegar na miúda, para a pôr no peito, fazia todas as necessidades na cama, eu sabia que não estava em condições para ir para casa”. Mas foi. Deram-lhe alta. Passados uns dias, as “costuras rebentaram”, foi direta para a urgência de um privado. Relata que levou “mais de 300 pontos”.

Depois, uma depressão pós-parto. Só passados oito meses é que começou a sentir-se “uma pessoa”. Só passados dois anos conseguiu voltar a ter relações sexuais.

Excessos e desconfiança na relação entre médicos e grávidas

Para muitos médicos, o termo violência obstétrica tornou-se um tema pesado, injusto e que não corresponde ao que é vivido por quem está na linha da frente. Para Filomena Nunes, diretora do serviço de obstetrícia do Hospital de Cascais, este termo “tem por base que se está a fazer algo que não é indicado ou necessário e só está a ser feito por ignorância ou para provocar sofrimento no outro”.  

Em conversa com o SAPO, a obstetra faz notar que “o conceito de violência obstétrica começou a ser usado nos países da América Latina e em países onde a taxa de episiotomias era de 100%, e que não são o melhor exemplo no que diz respeito a cuidados obstétricos mundiais”. “A própria OMS diz que não é a melhor definição”, avança e explica que “abuso, desrespeito, negligência são más práticas, tanto no parto como noutra especialidade e associamos erradamente a uma questão de género”.

Esta ideia é corroborada por Andrea Pereira, diretora do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, que afirma que a classe médica vê o termo violência obstétrica com preocupação, porque associa atos médicos a violência intencional e cria alarme e desconfiança nas grávidas”.

Cada vez são mais as mulheres que questionam os protocolos médicos. Se é verdade que um parto não é por si um acontecimento médico ou que tem de obedecer a critérios de emergência, também é verdade que os hospitais se regem por protocolos que têm por base fundamentos clínicos ou de organização. No hospital de Cascais, tal como em muitos outros do país, é recomendado que a grávida esteja monitorizada por um CTG e que tenha colocado um cateter endovenoso – “Não é excesso de medicalização ou desumanização, é segurança!”, garante a diretora do serviço, e adianta que muitas grávidas não aceitam os protocolos.

Há contexto: “Há cem anos, os partos aconteciam em casa e sem condições de segurança, era comum bebés morrerem e para combater isso houve talvez um excesso de medicalização no parto. Hoje, estamos a caminhar a passos largos para um caminho completamente diferente.” Filomena Nunes fala com emoção e conclui: “Quando as coisas se complicam, complicam-se rápido e temos duas vidas em jogo, a da mãe e a do bebé, e isso é muito difícil de gerir”.

“Não é incomum avisar-se a grávida que o CTG não está bom, que era melhor tomar outras opções, deixamos passar uma hora e voltamos a falar, passadas duas horas voltamos a tentar convencer ou pedir para fazer algo”, explica a obstetra de Cascais, visivelmente cansada deste clima de desconfiança. A médica garante que “muito do que está descrito, como toques vaginais, cesarianas, partos instrumentalizados e mesmo episiotomias são procedimentos que têm indicações médicas” e explica que “a maior parte das coisas que as pessoas põem num plano de parto já fazem parte da nossa prática normal”. 

Nos Açores, também Andrea Pereira afirma que aquele hospital “garante o direito ao plano de parto dentro da segurança da grávida e do feto” e que “a maioria das grávidas pretende evitar procedimentos como a episiotomia, a administração de ocitocina e o parto instrumentado, mas estas práticas só são efetuadas quando necessárias para minimizar os riscos para mãe e para o feto”.

Ambas as médicas realçam que é importante “a flexibilidade das utentes face a situações críticas em que a atuação médica não deva ser influenciada nem atrasada por colidir com as expectativas criadas e, por vezes, exageradas por quem não domina as questões envolvidas”, afirma ao SAPO Andrea Pereira. “Esta ideia de que não podemos confiar, como se fossemos inimigos, não é correta, temos é de fazer perceber às pessoas que há procedimentos médicos que são necessários”, conclui Filomena Nunes.

Taxa de episiotomias desce, mas fica acima da média europeia

A episiotomia é um ponto central da conversa e os números ajudam a perceber a dimensão do problema: o Relatório Europeu da Saúde Perinatal mostrava que a taxa de episiotomias em partos vaginais era de 72,9% em 2010 em Portugal. Um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto divulgado esta semana revela que, entre 2013 e 2022, esta taxa caiu de 63% para 21%, nos hospitais públicos portugueses. Mesmo assim, a média europeia ronda os 20% e, em França, em 2021, os números rondavam os 8%.

Filomena Nunes explica que, “há uns anos, parto vaginal era sinónimo de fazer episiotomia”, mas hoje fazem-se muito menos intervenções, e realça que “ninguém deixou de fazer episiotomias por achar que estavam a fazer mal às pessoas e agora estão a fazer bem; deixou-se de fazer episiotomias porque se fizeram estudos comparativos”.

A médica ressalva que “é necessário que os profissionais de saúde se sintam à vontade para propor e para executar procedimentos sem sentirem que estão permanentemente a ser avaliados nas suas decisões”, e realça: “Não pode haver medo da violência obstétrica”.

Mia Negrão, advogada e fundadora do movimento Nascer com Direitos, em entrevista ao SAPO, afirma que “não foi uma manobra muito inteligente esta lei referir algumas questões da episiotomia”, mas não tem dúvidas de que “a maioria das episiotomias que são feitas são justificadas pelos profissionais de saúde como sendo de emergência”. “A formação médica já está feita para que o parto seja entendido como um evento que é emergente. É sempre um tudo ou nada, um ‘ou faz isto ou o bebé morre’.”

A impotência, o medo e o silêncio

Raquel Fernandes foi mãe pela primeira vez em 2010, no Hospital de Guimarães, e guarda dessa experiência uma memória tranquila: sentiu-se respeitada e bem acompanhada. O mesmo não aconteceu oito anos depois, em 2018, quando voltou a dar à luz, desta vez no Hospital de Cascais, num parto que descreve como traumático.

Obrigaram-me a ficar deitada, não me deixaram andar, nem beber água. Senti-me presa, sem controlo nenhum sobre o meu corpo”, conta Raquel ao SAPO. Durante horas pediu analgesia, mas a resposta era sempre a mesma: “Tem de aguentar.” O plano de parto que tinha preparado não foi tido em conta. A certa altura, entrou uma enfermeira parteira que lhe deu chapadas nas pernas para as abrir e atirou: “Para o fazer não berrou.” “Foi humilhante. Estava a gritar de dor e ninguém me ouvia”, recorda.

Só depois de mudar a equipa médica é que lhe deram epidural e afirma que foi tratada com cuidado. Na altura, ficou calada, com medo de represálias e de que algo pudesse acontecer ao bebé. Só quando chegou a casa começou a perceber a dimensão do que tinha vivido: chorava constantemente, sentia-se humilhada e em choque.  

Tal como Maria João e Beatriz, Raquel não fez queixa: “Não tinha forças, tinha acabado de passar por um trauma. Se tivesse mais tempo, tinha avançado. Tenho a certeza de que fui vítima de violência obstétrica, até hoje quando se fala no tema, fico ansiosa.” Maria João também relata que “não tinha força anímica” e Beatriz diz que “estava em modo sobrevivência”.

Parto, trauma e tribunais: os improvisos da Justiça

Atualmente, o prazo para se fazer queixa são seis meses. “Um prazo muito curto para quem acaba de passar por um trauma, para mais quando os primeiros seis meses são os meses de amamentação exclusiva e de adaptação à maternidade quando se trata de um primeiro filho. Seis meses passam num piscar de olhos”, afirma Mia Negrão.

A advogada explica que o tempo e o tipo de processo dependem do local onde o parto ocorreu. “Nos hospitais públicos, os processos correm nos tribunais administrativos, que têm um atraso enorme e podem arrastar-se 20 ou 30 anos. Nos privados, seguem para os tribunais comuns, onde a Justiça é menos morosa, demoram em média três a cinco anos, e muitas vezes há acordos para evitar custos acrescidos. Regra geral, só compensa avançar quando estamos perante situações muito graves, como morte de bebés ou violação de direitos humanos, casos em que as grávidas chegam a ser amarradas”, detalha Mia Negrão.

Atualmente, situações como as que aconteceram a estas mulheres com que o SAPO falou podem ser enquadradas em crimes que já existem na lei. “Normalmente, são crimes de intervenção médico-cirúrgica arbitrária ou ofensa à integridade física. Em casos mais graves, como a morte de um bebé, pode ser enquadrado como homicídio por neglicência”, esclarece Mia Negrão. E há ainda os casos psicológicos, “frequentemente desvalorizados por não deixarem marcas visíveis, mas ainda assim o trauma de parto está descrito como uma doença psiquiátrica e tem consequências para a vida”.

A advogada explica que é possível ir buscar tipos legais de crime para enquadrar algumas intervenções “precisamente porque não existe o crime de violência obstétrica” – “e não sei se alguma vez o teremos”, acrescenta. E toca num dos pontos fulcrais deste tema e onde reside uma grande parte da polémica: se o termo fica na lei, onde deve ficar? No Código Penal? Isso significa que os médicos podem ser criminalizados e presos?

A lei criada este ano, e que se prepara para ir de novo ao Parlamento, vem enquadrar todas as práticas consideradas violência obstétrica, mas não as criminaliza. “Prevê contraordenações e reforça a responsabilidade civil: dá às vítimas direito a indemnização quando a lei não é cumprida. Não há pena de prisão, mas há sanções e, sobretudo, o reconhecimento de que estamos perante violência obstétrica”, detalha Mia Negrão.

Para a advogada e ativista, há vantagens e riscos em criminalizar: “A vantagem seria deixar de depender de outros tipos legais de crime e aumentar os prazos para apresentar queixa, de seis meses para um ou dois anos.” O senão: “É muito difícil criar o tipo legal de crime de violência obstétrica porque é algo sistémico. Teríamos de listar todos os atos que configuram violência obstétrica: íamos deixar imensos de fora e podíamos colocar outros, o que faria com que tivéssemos uma medicina muito mais defensiva, ao ponto de não se fazerem as intervenções necessárias. É perigoso.”

Violência: maldade ou sistema?

Maria João, que viveu na pele os maus-tratos de um sistema que não lhe deu respostas, afirma com convicção: O conceito de violência obstétrica faz todo o sentido. Sinto que não é uma coisa premeditada, é algo institucionalizado.”

Maus-tratos, falta de consentimento, e outras práticas não recomendadas, como as sofridas por estas mulheres que falaram com o SAPO, já podiam ter ido a tribunal enquadradas noutros tipos de crimes, como já vimos. “Quando é por maldade, percebe-se. Há um padrão, há queixas repetidas”, explica a representante do OVO. Carla Pita Santos afirma que violência obstétrica é muito mais do que os maus-tratos que garante existirem em muitas das salas de parto em Portugal.

Para a ativista, “a violência obstétrica é um movimento para as mulheres terem as decisões sobre o seu próprio corpo, não só no parto, mas também sobre o aborto, sobre a procriação medicamente assistida, sobre ter diagnósticos mais rápidos sobre doenças como a endometriose e a adenomiose”. Para ela, violência obstétrica também é “as mulheres chegarem ao fim de uma gravidez sem um único exame feito, a falta de educação sexual nas escolas, a ausência de consultas desde a adolescência ou a falta de acompanhamento no pós-parto”.

Para Mia Negrão, as formas mais comuns e visíveis de violência obstétrica são os atos sem consentimento: “as intervenções no corpo da mulher e a sua infantilização, como se não tivessem capacidade para decidir sobre si e sobre o bebé durante a gravidez e o parto”. Atualmente, Mia sente que as mulheres que recorrem aos seus serviços estão cada vez mais atualizadas e atentas e muitas vezes ligam a fazer denúncias “ainda nem o bebé nasceu”.

Autonomia e infantilização, cesarianas e lucro

A procura pelo “parto humanizado” tem gerado novas formas de negócio e promessas nem sempre cumpridas, com hospitais que se apresentam como “amigos do bebé”. Carla Pita Santos adverte: “A maior forma de violência obstétrica que existe é a capitalização do nosso corpo. Fazer cesarianas ou induzir partos porque dá lucro.”

Os números confirmam o alerta: dados da Entidade Reguladora da Saúde, relativos a 2024, mostram que quase dois terços (63,4%) dos partos realizados em hospitais privados foram cesarianas, enquanto no SNS a taxa foi de 32,7%. Mesmo esta percentagem no setor público é mais do dobro do limite recomendado pela OMS, que considera que as cesarianas não devem ultrapassar 10% a 15% dos partos. Há, inclusive, maternidades privadas em Portugal com taxas de 100% de cesarianas.

O debate volta ao Parlamento

O tema vai voltar de novo ao debate e baixar à especialidade, com propostas do PSD e CDS-PP, que querem revogar a lei. No final de setembro, a Ordem dos Médicos enviou aos grupos parlamentares uma proposta de alteração à lei em vigor e na qual reitera a rejeição do termo violência obstétrica por o considerar “injusto e estigmatizante para os profissionais”. Sugere substituí-lo por “experiências negativas no parto” e propõe medidas como apoio psicológico às mulheres, formação dos profissionais e a criação de um Conselho Nacional pela Proteção da Gravidez e dos Cuidados Perinatais.

Por sua vez, o OVO, no documento enviado na semana passada aos grupos parlamentares e ao qual o SAPO teve acesso, defende manter o termo na lei, sublinhando que se trata de uma “violência de género e estrutural” e que o problema não é o médico individual, mas o sistema que falha. Para Carla Pita Santos, “não se trata de castigar profissionais, mas de responsabilizar instituições e políticas públicas”.

Partos em ambulâncias, urgências fechadas e as expectativas das grávidas

Apesar de ativistas e médicos discordarem no nome e em outras questões da nova lei, há algo que é comum no discurso de todos: as críticas às políticas públicas e aos desafios que existem nas maternidades do país. E o OVO lembra que o problema não se resolve apenas com leis.

Entre janeiro e setembro deste ano, 57 bebés nasceram em ambulâncias. A violência obstétrica também nasce da falta de meios, da sobrecarga das equipas e da precariedade dos profissionais”, defende o OVO.

Isto é corroborado por ambas as diretoras dos serviços com quem o SAPO falou.  “Os profissionais estão exaustos, há equipas reduzidas, pessoas a fazer turnos consecutivos e com medo de errar. É preciso perceber que este sistema fragilizado também nos fragiliza a todos. Não podemos continuar a funcionar no limite. O sistema está em rutura e isso inevitavelmente tem reflexo na forma como se trabalha”, explica Filomena Nunes referindo-se ao contexto nacional e a um sistema “sob pressão constante”. 

“Muitas vezes fecham serviços e nós nem sabemos, as grávidas acabam por ser encaminhadas para unidades como a de Cascais, que rapidamente ficam sobrelotadas. Não temos dimensão física nem equipas para receber todas as grávidas se fecharem as três urgências da Margem Sul”, remata a médica de Cascais.

No Hospital de São Miguel, a maternidade funciona em “instalações provisórias, com redução significativa do seu espaço físico e número de vagas”. Andrea Pereira admite que “recursos humanos insuficientes, maternidades com capacidade reduzida ou falta de meios, podem interferir com as expectativas da grávida”.

As mulheres entre os protocolos e as queixas

No caso de Maria João, a mulher que em 2017 se sentiu abusada durante o seu parto nos Açores, o Hospital Divino Espírito Santo esclarece que “a manobra de Kristeller foi desaconselhada pela OMS em 2015, mas a pressão do fundo uterino, controlada e de forma a não provocar danos na mãe ou no feto, pode, em casos excecionais, ser necessária”.

Confrontado com o caso de Beatriz, o Hospital de Cascais garante que “os protocolos foram cumpridos” e que o rebentar das águas após dias de indução faz parte do procedimento clínico. Mas em casos de falta de consentimento, também explícito na história de Beatriz, ou maus-tratos tanto físicos como verbais, como no caso de Raquel, a médica lamenta que “as pessoas não reclamem, porque isso dificulta a investigação”, e reforça: “Se alguém sentiu que foi maltratada, tem de o dizer. É a única forma de agir.”

As queixas podem ser apresentadas ao hospital, à Direção-Geral da Saúde, à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, à Ordem dos Médicos ou dos Enfermeiros e, nos casos mais graves, ao Ministério Público. Mas, na prática, poucos processos avançam. A maioria destas situações não chega ao tribunal criminal e são tratadas como responsabilidade civil ou disciplinar”, resume a advogada Mia Negrão, que deixa o alerta: “Temos uma lei, mas não temos mecanismos claros de execução. Sem responsabilização efetiva, as mulheres continuam sem saber a que porta bater.”

Para muitas mulheres, o caminho é demasiado longo e difícil: faltam provas, tempo e energia para enfrentar o sistema. Do lado dos médicos, o clima atual “instituiu um ambiente de desconfiança e medo de praticar obstetrícia”, sublinha Andrea Pereira. Também Filomena Nunes admite esse desgaste: “A obstetrícia vive sob medo permanente de erro e julgamento público.”

O Observatório da Violência Obstétrica reafirma que o problema é estrutural e não semântico e que “o termo não vai cair”. “Vamos continuar a chamar-lhe violência obstétrica, porque é disso que se trata”, garante Carla Pita Santos


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