
Quer na diabetes quer na obesidade, a prevenção é essencial
Quais são os objetivos desta edição das jornadas?
As Jornadas de Diabetes da Madeira são um legado com grande longevidade – existem desde 1987. Desde sempre foi muito importante manter o espírito científico, trazer inovação, reunir colegas de diferentes especialidades e convidar profissionais de fora da Madeira para falarem sobre os tópicos mais relevantes do último ano.
Nos tempos de hoje, em que temos tecnologia e inteligência artificial ao alcance do telemóvel, considero essencial fomentar este tipo de reuniões, para relembrarmos aquilo em que os humanos são bons: o diálogo, a discussão, a comunicação, a troca de ideias e a criação de estratégias. Não podemos esquecer que estar presencialmente com os profissionais de saúde é diferente de estar à frente dum ecrã numa videoconferência. Acho muito importante alimentar este tipo de eventos.
O simpósio satélite sobre obesidade é a novidade deste ano. Por que razão escolheram este tema e que impacto espera que tenha?
Todos os anos fazemos um simpósio que vai além das Jornadas de Diabetes. Somos endocrinologistas, e a nossa especialidade tem várias vertentes. Este ano escolhemos a obesidade porque, de facto, nos últimos dois anos, muito se tem falado sobre este tema, sobretudo sobre a terapêutica e os fármacos injetáveis.
Achei importante irmos além da terapêutica e discutirmos os motivos pelos quais as pessoas podem ser obesas, a componente neurológica da obesidade e também a fenotipagem, porque nem todos os obesos são iguais.
Com os novos fármacos parece que basta um injetável e o problema fica resolvido, mas esquecem-se os mecanismos fisiopatológicos e os diferentes tipos de obesidade. Como endocrinologistas, era fundamental valorizar este aspeto.
O programa inclui uma conferência do Dr. Silvestre Abreu. É uma homenagem?
Sim. As Jornadas de Diabetes da Madeira começaram em 1987 e o Dr. Silvestre Abreu foi sempre a figura central: “o pai das Jornadas”. Entretanto, reformou-se da atividade hospitalar mas as jornadas continuam.
Quando assumi esta organização era fundamental fazer uma homenagem. Criámos a “Conferência Dr. Silvestre Abreu”, uma forma de perpetuar o seu legado. O Dr. Silvestre foi homenageado há dois anos, quando se reformou, e desde então esta conferência tem o seu nome. Esta conferência tem sempre um convidado estrangeiro, este ano será o Prof. Michael Bergman e será presidida pelo Dr. Silvestre Abreu e pelo Dr. Gardete Correia, que também tem estado presente nas Jornadas desde o início.
Quais são os maiores desafios da Madeira no combate à diabetes?
A prevalência da diabetes na Madeira é semelhante à nacional, mas temos agora um peso acrescido devido à chegada de muitos estrangeiros e imigrantes que vieram viver para a região após a pandemia. É uma população flutuante, que também influencia os números.
No que respeita à diabetes, penso que o principal desafio é o diagnóstico precoce. Temos uma excelente rede de cuidados de saúde, mas faltam recursos humanos, sobretudo em Medicina Geral e Familiar. Há alguns anos, quando foi feito o estudo do Observatório da Diabetes, antes da covid-19, a Madeira tinha uma excelente percentagem de diagnóstico de novos casos. Neste momento, penso que essa situação está mais estagnada.
Ainda assim, sempre tivemos dados ligeiramente melhores do que o resto do país, devido à rede de centros de saúde. Mas, o essencial continua a ser a prevenção.
A alimentação é um pilar fundamental, mas é difícil resistir a um bom prato. Por outro lado, a nível do exercício físico, a geografia da Madeira não ajuda muito. Não é fácil encontrar locais planos para caminhar ou correr fora das zonas citadinas. As autarquias deviam ter um papel mais interveniente nesse sentido.
Além disso, temos uma população cada vez mais envelhecida (a emigração dos jovens é uma realidade), o que também contribui para uma maior prevalência da doença.
E quanto à obesidade?
No caso da obesidade, preocupa-me sobretudo as crianças e os adolescentes. Embora os estudos indiquem que o excesso de peso não aumentou a nível nacional, na nossa consulta de Endocrinologia Pediátrica temos visto mais casos de obesidade grave, inclusive em crianças de quatro ou cinco anos e há pouca sensibilidade por parte dos pais em relação a isso.
O problema é que se fala demasiado das novas terapêuticas “milagrosas”, o que faz esquecer o essencial: a prevenção. É preciso prevenir a obesidade na infância e na adolescência, fazer campanhas, agir junto das crianças com idades entre os 7 e os 9 anos, quando ainda são muito recetivas à informação.
Tem de haver mais campanhas e um maior controlo do que se vende nas escolas e supermercados, porque hoje o acesso a produtos açucarados é demasiado fácil.
Vejo muitos adolescentes que chegam à consulta com excesso de peso aos 12 ou 13 anos e já é muito difícil reverter nessa fase. A prevenção tem de começar cedo, nas escolas e com envolvimento das famílias. O nosso serviço faz regularmente ações de sensibilização em escolas, e é impressionante como as crianças se lembram do que ouviram anos depois.
Quer na diabetes quer na obesidade, a prevenção é essencial. E se for feita dá resultados.
O programa destaca a inovação tecnológica, a monitorização contínua, a inteligência artificial e a medicina personalizada. De que forma esta tecnologia é uma mais-valia na Madeira?
Era impossível fazermos estas jornadas sem falar de inteligência artificial. É uma área muito importante, embora precise de fronteiras. Na diabetes, especialmente na diabetes tipo 1, tem sido fundamental.
Temos uma consulta de bombas infusoras de insulina e a inteligência artificial tem melhorado muito o acompanhamento e a qualidade de vida das crianças e adolescentes. Além disso, aqui na Madeira conseguimos reunir muita informação sobre os nossos doentes, e a IA permite analisar esses dados e tirar conclusões sobre estratégias mais eficazes.
É uma ferramenta poderosa, desde que bem utilizada. Gostava muito de a explorar aplicada aos dados dos nossos utentes, para melhorar atitudes e avaliar quais são as melhores abordagens. Apesar de a inteligência artificial poder ser assustadora, quando bem usada é uma arma fundamental – e, na diabetes tipo 1, tem melhorado imenso a vida das nossas crianças, adolescentes e jovens adultos através das bombas infusoras.
Ainda há desigualdade no acesso a estas tecnologias?
Neste momento, não. Na Madeira, todos os utentes pediátricos e adolescentes que pretendem bomba de insulina têm acesso. O nosso serviço cresceu bastante nos últimos quatro anos, em várias áreas, como as consultas diferenciadas de obesidade, disforia de género e bombas infusoras. Para quem quer ter bomba, nós disponibilizamos.
As bombas atuais, com sistemas híbridos, melhoraram imenso a qualidade de vida das crianças e deram grande tranquilidade às famílias.
O programa inclui também temas como saúde mental, neuropatia e bem-estar. Podemos dizer que hoje há uma visão mais holística do doente com diabetes?
Sem dúvida. Gosto muito dessa perspetiva da visão holística. A escolha do tema “bem-estar” também se deve ao facto de a Federação Internacional de Diabetes o ter escolhido. Considero que o boom das terapêuticas médicas na diabetes acaba por fazer esquecer tudo o resto. E ter diabetes não é fácil: são desafios diários, exige autocuidado, disciplina e afeta também a família. É muito importante aumentar o conhecimento e agir para criar ambientes mais favoráveis a pessoas com diabetes. Por isso, quis começar a reunião relembrando esses aspetos, curiosamente, pouco relacionados com a inteligência artificial.
Há cada vez mais estudos sobre a relação entre diabetes e saúde mental, e sabemos que estas pessoas têm maior risco de patologia depressiva ou ansiosa, demência. Muitas vezes, não se dá a devida importância a isso.
Como as jornadas são dirigidas a médicos de família, internistas, enfermeiros, quisemos sublinhar essa dimensão. O bem-estar inclui também a qualidade de vida nas cidades, os espaços verdes – a possibilidade de andar, conviver, descontrair. Isso requer envolvimento das autarquias e dos governos locais.
Nos últimos anos, temos contado com a presença regular do Prof. Júlio Machado Vaz, que tem um dom da palavra incrível, e achámos que seria a pessoa ideal para falar de bem-estar e saúde mental na diabetes
À medida que envelhecemos, é essencial garantir um envelhecimento saudável e com qualidade de vida, exercício físico – o que, na Madeira, nem sempre é fácil, por exemplo a nossa geografia dificulta a mobilidade dos idosos que não vivem nas cidades.
Qual é a mensagem que deixa aos participantes?
Usufruam deste diálogo de ciência. Gostava que aproveitassem as nossas jornadas quase como uma conversa numa sala de estar, agradável, entre colegas de diferentes especialidades. Que levem novas ideias, nem que seja uma mensagem, que saiam com um sorriso nos lábios e que, depois da reunião, aproveitem um pouco da nossa ilha. Mas, acima de tudo, que sintam que estas jornadas fizeram alguma diferença no vosso dia a dia, porque é isso que fica no peito e na lembrança: perceber que este encontro foi uma mais-valia, tanto a nível profissional como pessoal.
Sílvia Malheiro
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