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Pode a chegada da morte ser harmoniosa? José Eduardo diz ser um “homem de sorte” graças às “equipas da vida”

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Sabemos que os Cuidados Paliativos vivem à míngua das necessidades. Faltam equipas para que todos tenham acesso independentemente do código postal, falta investimento e conhecimento. Mas acesso a quê? Que cuidados são estes, que doentes podem ter este acompanhamento e em que se distinguem de qualquer outro cuidado médico? A SIC acompanhou uma destas equipas numa visita a casa do senhor José Eduardo que aos 70 anos se entusiasma a falar das cores de uma sonata e dos livros “ilegíveis” que lê.

Para muitos a inevitabilidade de um hospital é a única resposta, mas, para quem o deseje, é possível passar a última etapa da vida em casa, junto da família, no conforto da sua cama. E isso é possível com a ajuda de uma rede chamada Rede Nacional de Cuidados Paliativos em que se inserem equipas comunitárias de suporte de cuidados paliativos (ECSCP). No dia em que se comemora o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, a SIC foi conhecer a realidade destas equipas e acompanhámos uma delas, a ECSCP da Unidade de Saúde Local (ULS) de São José, no seu dia-a-dia.

Ana Bragança é coordenadora da ECSCP da ULS de São José, sediada atualmente no centro de saúde da Alameda, um espaço “mais central” ideal para conseguir chegar ao maior número possível de doentes, ainda que cheguem a menos do que gostariam: esta equipa ambiciona poder ajudar mais, mas ainda não é possível.

Na sala de reuniões, de manhã cedo, a equipa começa a preparar o dia. Ana, Filipa, Isabel, Vera, Patrícia, José Pedro e Mafalda reúnem-se à volta de uma mesa com os dados dos seus doentes – que são mais do que doentes (mas já lá vamos) – e discutem cada caso.

A quem é preciso ligar, quem precisa de uma visita da equipa, como estão os doentes e as famílias e/ou cuidadores? O diálogo, mas também o “bom ambiente” da equipa, são essenciais para uma equipa que ouve muitas vezes: “são a equipa da morte.”

Ana Bragança defende que não é isso que são. Rejeita essa designação, prefere “equipas da vida”, porque acredita que são muito mais isso do que qualquer outra coisa.

As “equipas da vida” cuidam de doentes que vão “dos 0 aos 100 anos” numa das fases mais sensíveis das suas vidas.

“Nós não delimitamos os nossos cuidados em função da idade das pessoas, portanto, os cuidados paliativos são aplicáveis desde o início da vida até ao final da vida”, sublinha Ana Bragança.

E esse é um dado importante a ter em conta, há doentes com 70 ou mais anos, mas também há crianças, adolescentes e jovens e os cuidados devem ser adaptados a cada doente, a cada contexto.

Mas voltamos à equipa coordenada por Ana. Neste dia, a visita foi feita ao senhor José Eduardo, um doente oncológico que tem na esposa a sua cuidadora informal.

A ajuda “valiosa”, o homem “de sorte” e Beethoven

Maria Filomena ainda trabalha e a ajuda “valiosa” desta equipa, afirma à SIC, mudou tudo nos cuidados ao marido.

José Eduardo, por sua vez, diz que agora não se sente sozinho e a presença desta equipa em sua casa tornou esta fase da sua vida mais fácil. Diz ser um “homem de sorte” por ter acesso a estes cuidados, afinal, se “vivesse a 400 metros” de onde vive já não teria acesso.

Em casa do senhor Eduardo, psicólogo, as paredes têm quadros pintados pelo próprio, há livros no sofá, junto de si, fotografias da família e o conforto de que precisa para viver de forma mais digna possível, mesmo que, por vezes, haja dias menos bons em que uma ou outra dor teime em não deixá-lo fazer aquilo que gostaria.

Ana e Vera já o conhecem. Os seus gostos, as suas vontades. A observação é feita ao som da sonata n.º 14 de Beethoven e a conversa vai muito além do seu quadro clínico, esse é apenas uma das componentes da visita, mas não a principal. Como se sente para o almoço semanal com os amigos? Como foi a sessão com a terapeuta ocupacional? O que vai ler a seguir? José Eduardo responde a cada uma das questões, mostra o livro “ilegível” que vai ler (pela sua complexidade) e questiona a origem dos cuidados paliativos. Ana explica-lhe “em dois minutos” que “chegaram a Portugal nos anos 80” e conta-lhe a história de Cicely Saunders que, em Inglaterra, revolucionou os tratamentos aos pacientes em fase final da vida, garantindo-lhes cuidados dignos.

A equipa termina a visita com o ajuste da medicação, conselhos para que passe melhor os dias e as noites e deixa-o. A mulher será contactada depois pela equipa que explicará como se encontrava José Eduardo, afinal, Maria Filomena, enquanto cuidadora, é parte desta equipa.

Ana Bragança explica à SIC que “não importa o número de dias por viver, mas que sejam bons últimos dias”.

O que faz uma equipa de cuidados paliativos?

As ECSCP são equipas que dão cuidados paliativos a “pessoas que já não conseguem deslocar-se” e, quando assim é, o apoio é dado no domicílio. Além do apoio ao domicílio, uma equipa comunitária garante ainda apoio aos profissionais que trabalham na comunidade, ou seja, aos médicos e enfermeiros de família, e é dado apoio a outras instituições, como lares ou outras instituições que trabalham na comunidade, e formação em cuidados paliativos.

Antes dos cuidados em casa, existe a consulta de medicina paliativa – um projeto iniciado há cerca de dois meses – para todos os doentes da ULS de São José que ainda se conseguem deslocar. Desta forma, garantem chegar a mais doentes nesta situação. Depois de uma primeira avaliação, pode haver video consultas, mas a ideia é dar qualidade de vida aos doentes desde o diagnóstico para que, chegados ao fim de vida, estejam mais preparados e este processo seja “mais fácil, mais harmonioso”.

Ana Bragança detalha que estes “são cuidados muito específicos, baseados na evidência, que exigem formação específica, e cujo principal objetivo é o alívio e a prevenção do sofrimento de pessoas com doenças incuráveis ou que ameaçam a vida”.

Da referenciação à intervenção “ágil” e cuidado do doente

Os casos chegam às equipas comunitárias através da referenciação de doentes das unidades funcionais da ULS, dos centros de saúde, dos hospitais, ou seja, da ULS também, de hospitais privados e de outras equipas que trabalham na comunidade.

“Já nos foi referenciado um doente através do padre que visitava os doentes, portanto que liga para nós. E esta foi uma das nossas primeiras missões enquanto equipa, que está formada há cinco anos”, relata a coordenadora da ECSCP da ULS de São José.

Depois da referenciação é preciso agir rapidamente, a “intervenção tem de ser ágil”.

“Temos um telemóvel para o qual nos podem ligar a qualquer altura do dia, portanto só isso facilita muito o contato. Portanto, recebemos a referenciação desses doentes, normalmente falamos com a pessoa que nos referencia, porque é sempre uma pessoa que conhece melhor o doente, e avaliamos as necessidades do doente e daquela família”, descreve.

O caso é depois discutido e começa-se o acompanhamento “consoante a necessidade desse doente e da família”.

“Às vezes há situações que têm que ser logo, têm que ser no dia, há outras que, se calhar, ligamos e a pessoa não precisa no imediato”, explica.

O casamento que se cumpriu, a visita de um ídolo e o fado

Cumprir desejos é, por vezes, parte do trabalho. Quando se chega a um diagnóstico de doença incurável com uma espécie de ‘aviso prévio’ da morte é comum pensar-se no sentido da vida e no que fica por fazer.

Ana Bragança afirma que “cuidar das pessoas com estas doenças de uma forma digna, ou seja, que respeite a sua dignidade, é ter atenção a esse pormenor” e isso implica conhecer bem a pessoa para além do quadro clínico. Implica “saber o clube de futebol, o que é que gostavam de fazer, se há algum desejo por cumprir, qual é o gosto da música”.

“Às vezes conseguimos arranjar coisas muito engraçadas, como treinadores de futebol, um autógrafo dedicado àquela pessoa, um fadista a cantar um fado com uma pessoa que gosta de fado, já tivemos também experiência com os óculos de realidade virtual emprestados pela equipa intra hospitalar que fazem com que os doentes possam ir até ao sítio que gostavam”, conta a médica.

Alguns desses casos, inevitavelmente, acabam por marcar. Como o doente, com cerca de 40 anos, que tinha acabado de morrer, mas que, antes, viu o seu desejo de casar concretizado.

“Tinha o desejo de casar e casou-se durante o nosso acompanhamento”, conta Ana Bragança.

Mas há outros. “Havia uma senhora que gostava muito de fado e de um determinado fadista, e esse fadista cantou-lhe um fado e dedicou-lho”, relata a coordenadora.

“Ela todos os dias via aquele vídeo e passou à família e aquilo deu-lhe uma alegria muito grande nessa fase da vida”, afirma.

Ana Bragança recorda ainda “outra visita” de um jogador de voleibol a casa de um doente que acompanhavam “e que gostava muito desse desporto” ou ainda o doente que queria ir a Fátima e que conseguiram “com a família dar esse apoio, planear o ajuste da medicação para esse dia” de forma a que o pudesse viver “o melhor possível”

“Isto ajuda muito, porque cuidar de uma pessoa é cuidar assim, é um todo. Não pode ser só medicação, não podem ser só intervenções técnicas. Temos de as cuidar enquanto pessoas, aquela pessoa individual”, conclui a coordenadora.

Doentes que são mais do que doentes

Quem trabalha em cuidados paliativos reconhece que a relação com os doentes acaba por ser diferente da relação com doentes em contexto de doença aguda. Falamos da ligação emocional que, inevitavelmente, se cria.

O contacto com as famílias e doentes é feito de forma próxima, criando uma relação entre equipa e doente e um trabalho de equipa necessário entre as UCSCP e as famílias dos doentes.

“Temos que olhar para uma pessoa nas suas quatro dimensões, porque nós, cada um de nós, não é só físico, não é só social, não é só psicológico e não é só espiritual. Somos estas quatro dimensões e cada uma delas influi na outra”, afirma Ana Bragança explicando que tudo vai muito além do historial clínico daquela pessoa.

A coordenadora da equipa comunitária da ULS de São José explica que “interessa muito mais perceber se aquele doente teve um bom dia, se esteve animado ou se esteve mais desanimado, se teve falta de ar, se teve uma visita dos netos e esteve bem ou se gostava de fazer alguma coisa e a equipa, sendo muito criativa – que também é uma parte dos cuidados paliativos – consegue” e isso, nestes pacientes, interessa “muito mais do que propriamente o diagnóstico”.

Paulo Sousa Faria, coordenador da ECSCP da ULS de Amadora/Sintra, explica que o trabalho implica que os profissionais acabem por se ligar à história do doente e interessarem-se. “Implica termos uma reação emocional a isso”, aponta defendendo que “não há nada de errado nisso”.

“Faz parte do nosso trabalho e da forma como nós vivemos a nossa profissão. E ainda bem que assim é, porque isso significa que nos importamos com o que fazemos”, detalha.

“Vamos a casa de pessoas fantásticas, que nos acarinham imenso, que nos surpreendem. Temos ganhos enormes e isso enche-nos o coração e realmente permite-nos olhar para a vida com outro gosto até. Agora, também há situações que são difíceis e que nos tocam e nos deixam muito tristes e isso é normal, é um impacto que as coisas têm”, reflete.

Para os dois coordenadores, esta é a dimensão que se destaca ao tratar destes doentes. Paula Caetano e Joana Rodrigues, CEO e enfermeira na Humanize, respectivamente, uma empresa que presta cuidados paliativos fora do SNS, apontam que quem se dedica a esta área tem muito mais do que uma profissão: “É um estilo de vida.”

É por esse motivo que a ligação emocional é inevitável.

“Eu acho que em termos emocionais, aquilo que eu levo dos meus doentes são sempre os ensinamentos que eles nos dão, porque dão sempre ensinamentos em todas as fases da vida e no fim de vida também os fazem. Por isso é isso que eu acho que nós levamos quase todos os profissionais”, afirma Joana Rodrigues.

Um apoio que não termina com a morte

O apoio ao luto é uma outra componente do trabalho. Não há intervenção de uma nova equipa, rostos desconhecidos que não estivessem por dentro de cada uma das histórias, existe a continuidade do acompanhamento e ligação entre a equipa e os que sofreram a perda.

No final, esta é uma ajuda que vai além do cuidado do doente. Chega à pessoa, no seu todo, antes da partida e à família e cuidadores. Mesmo depois da morte, a família continua a ser seguida através das equipas que asseguram psicólogo, assistente social, e que se mantêm próximas daquelas pessoas.

Fonte: Lifestyle Sapo

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