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Para além da lei da burka

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Já muito se disse e escreveu sobre o projeto de lei de proibição de ocultação do rosto em locais públicos, que todos associam ao uso da burka por mulheres de religião muçulmana. Também gostaria de dar a minha opinião, não de todo original, começando por salientar o que está, verdadeiramente, em causa e o que pode, ou não, justificar a proibição.

Não me parece que se trate de uma questão que envolva a liberdade religiosa, Colocá-la nesses termos será, para a maioria dos muçulmanos, ofensivo. O uso da burka e a ocultação do rosto em público não são uma imposição do Corão (sê-lo-á apenas a modéstia no traje), mas uma tradição com raízes pré-islâmicas.

As exigências de segurança parecem-me um falso pretexto (até mal disfarçado, pois ela não é sequer abordada na exposição de motivos do projeto de lei). A ocultação do rosto com o uso da burka ou do nikab não é certamente mais perigoso do que essa ocultação em manifestações de extremistas de várias tendências políticas (e não é esse perigo que motiva o projeto, como também se deduz da sua exposição de motivos, ainda que também possa por ele ser abrangido).Mais perigosa pode ser, antes, a ocultação do rosto por supostos motivos de entretenimento (máscaras de Carnaval, por exemplo), o que o projeto considera exceção à proibição.

Não se justifica proibir uma determinada indumentária apenas porque ela não corresponde à tradição e cultura nacionais. O que caracteriza sociedades livres como pretendem ser a portuguesa e as europeias, não são tradições ou regras uniformes de vestuário (como na China nos tempos de Mao Tsé Tung), mas, precisamente, a liberdade e o pluralismo também nesse âmbito.

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Não colhe o argumento das razões de saúde individual que possam exigir a exposição do rosto ao sol e ao ar livre, pois nunca se chega a tal extremo de paternalismo proibicionista em relação a conselhos de saúde semelhantes a esse.

Se a ocultação do rosto em lugares públicos for imposta e não corresponder à vontade livre da mulher, não é necessária uma lei especial para a punir como crime de coação previsto no Código Penal.

E se for essa a opção da mulher? Não deverá ser respeitada essa sua vontade, por muito insólita que nos pareça?

Admito que o uso da burka possa ser considerado contrário à dignidade humana atingindo um núcleo essencial em que esta se torna indisponível. Reflete uma realidade e uma mensagem de coisificação da mulher, como propriedade de outrem e, por isso, privada da normal interação com outras pessoas para além do seu suposto proprietário. Será degradante como o é (salvaguardadas as devidas proporções) a mutilação genital feminina, que é inaceitável ainda que consentida (e que também não é uma imposição da religião islâmica).

Se em tese se poderá, por esse motivo, aceitar a proibição do uso da burka em lugares públicos, importa analisar a conveniência dessa proibição num determinado contexto social. Pode essa proibição ter um efeito contraproducente: o de privar ainda mais as mulheres que usam burka da interação social, pois poderão deixar de sair de casa para não serem multadas. Haverá, então, que agir de outra foram, pela educação de mentalidades, mais do que pela proibição.

Em Portugal, a questão que se coloca atualmente não é essa, é a contrária. Sendo raríssimo entre nós o uso da burka, a iniciativa deste projeto pode facilmente ser interpretada como simples instrumento de uma estratégia de hostilização do Islão: inútil em termos práticos, a lei servirá de bandeira para associar essa religião a este tipo de manifestações de extremismo e, por isso, necessariamente em choque com a nossa cultura nacional.

O passo seguinte dessa estratégia será o da proibição do véu que não cobre o rosto (o hidjab), esse sim de uso frequente por mulheres muçulmanas residentes em Portugal (não todas) e que pode ser considerado sinal de identificação religiosa. Mas já não se trata de algo de degradante ou contrário à dignidade humana. É um sinal de modéstia que, pelo contrário, procura preservar a dignidade da mulher, para que ela não seja redutoramente encarada pela sua aparência física.

Também entre nós, já tem sido advogada essa proibição, englobada numa lei geral de proibição de sinais de identificação religiosa em locais públicos, como sucede nas escolas públicas franceses. Uma lei dessas, motivada pela hostilidade ao Islão, necessariamente atinge sinais de identificação de outras religiões: uma cruz ao peito ou as vestes de um sacerdote, religioso ou religiosa católicos. Não é expressão da laicidade, mas do laicismo, da hostilidade á religião que a pretende confinada a espaços privados e a quer expulsar da esfera pública por, alegadamente, ser fonte de conflitos.

A convivência entre pessoas de religiões diferentes é hoje incontornável. Para que decorra em harmonia, não há que expulsar da esfera pública as religiões. A liberdade religiosa tem uma dimensão pública e comunitária.

A integração de imigrantes de religião muçulmana em Portugal decorre harmoniosamente desde há várias décadas. Para que assim continue, não podemos pretender que reneguem a sua fé ou que não a exprimam publicamente. Sabemos que não é respeitada a liberdade religiosa dos cristãos em vários países de tradição islâmica. Mas isso não nos dá o direito de desrespeitar no nosso país de tradição cristã a liberdade religiosa dos muçulmanos.


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