
Os Cuidados Paliativos não tratam o fim da vida
No Dia Mundial dos Cuidados Paliativos Pediátricos, a APCP e várias sociedades médicas lançaram um manifesto que denuncia a situação dos Cuidados Paliativos Pediátricos em Portugal, baseado num inquérito. Que conclusões mais a alarmaram?
Este inquérito começou em maio de 2025, junto das equipas sinalizadas como existentes em Portugal, incluindo equipas especializadas, generalistas ou em constituição. Obtivemos 23 respostas, estimando que representem mais de 80% das equipas existentes em Portugal continental e nas Ilhas.
As principais conclusões que motivaram o manifesto são preocupantes: nenhuma equipa funciona com os recursos humanos mínimos exigidos no Plano Estratégico de Desenvolvimento para Cuidados Paliativos 2023-2024. Ou seja, nenhuma equipa possui todos os médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos necessários.
Além disso, há uma forte desigualdade regional: Algarve e Alentejo estão praticamente desprovidos de equipas, enquanto o interior do país continua com escassez acentuada. Nos Açores já existe uma equipa generalista a funcionar e, na Madeira, uma em constituição.
Mesmo nas equipas com recursos, muitos profissionais têm dificuldade em cumprir os critérios de formação prática, especialmente assistentes sociais e psicólogos, porque a maioria não se dedica exclusivamente aos Cuidados Paliativos. Acresce a escassez de apoio domiciliário, fundamental para crianças com mobilidade limitada ou em situações de vulnerabilidade.
O apoio peri e neonatal também é incipiente. É uma área em desenvolvimento que exige sensibilização e formação contínua.
Por que é tão difícil apostar nesta área logo desde o nascimento?
Nos últimos meses, temos assistido a notícias sobre o encerramento de serviços de Obstetrícia ou Pediatria, mas quase ninguém fala sobre crianças que não têm acesso a Cuidados Paliativos, ou sobre grávidas e puérperas em situações de risco sem apoio especializado nesta área.
A saúde ainda é tratada como um bem essencial, mas não se olha para a qualidade de vida. Apenas cerca de 10% das crianças em Portugal têm acesso a estes cuidados, e a situação praticamente não mudou nos últimos cinco anos. É urgente alterar este cenário, e é por isso que a APCP lançou este manifesto.
Mesmo com o Orçamento do Estado de 2026, embora os Cuidados Paliativos estejam nas grandes opções, não há medidas concretas, e a área continua diluída nos Cuidados Continuados – o que é um erro que nos custa caro.
“As principais conclusões que motivaram o manifesto são preocupantes: nenhuma equipa funciona com os recursos humanos mínimos exigidos no Plano Estratégico de Desenvolvimento para Cuidados Paliativos 2023-2024”
Qual o verdadeiro impacto para as famílias, tanto das equipas de Cuidados Pediátricos peri e neonatais como infantis?
Podemos falar de diferentes tipos de crianças com necessidades paliativas: muitas têm doença oncológica, mas, apesar de essa ser a primeira patologia que associamos a Cuidados Paliativos Pediátricos, a maioria das crianças tem doenças neurológicas, metabólicas ou síndromes genéticas, muitas vezes desde o período neonatal, devido a complicações no parto ou malformações durante a gravidez.
Normalmente, estas situações começam logo num período de grande vulnerabilidade para as famílias, que têm de lidar com dependências múltiplas, polimedicação e dispositivos médicos complexos, como ventiladores, gastrostomias e oxigénio. Precisam de treino para cuidar dos filhos e muitas chegam às equipas de Cuidados Paliativos já com elevados níveis de exaustão.
As equipas podem reduzir idas às urgências, internamentos e mortes em ambiente hospitalar, oferecendo acompanhamento domiciliário e melhorando a qualidade de vida das crianças – otimizando o controlo de sintomas e reduzindo a sobrecarga das famílias – e, igualmente importante, a sustentabilidade do SNS.
De acordo com um estudo publicado na Acta Médica Portuguesa, em Portugal, estas crianças representam 40% das despesas hospitalares e 85% das mortes em contexto hospitalar.
Este manifesto apresenta 20 reivindicações e envolve várias sociedades médicas. Sente que há finalmente uma frente unida para exigir mudanças concretas?
Sim. Os Cuidados Paliativos Pediátricos em Portugal têm pouco mais de 10 anos, mas as especialidades reconhecem cada vez mais a sua importância.
Falando da experiência da equipa a que pertenço, temos muitas especialidades que, há cerca de cinco anos, não referenciavam, mas que, depois de compararem o antes e o depois, perceberam e passaram a encaminhar mais precocemente e mais vezes as crianças com necessidades mais complexas.
O manifesto surgiu de um encontro promovido em Leiria, a 10 de outubro, no Dia Mundial de Sensibilização para os Cuidados Paliativos Pediátricos. Apresentámos os resultados do inquérito, manifestámos preocupação e foram seis sociedades que quiseram subscrever o manifesto. Isso demonstra que não estamos sozinhos nesta luta.
Precisamos de profissionais com formação e tempo para acompanhar as crianças e famílias. Muitos querem dar o melhor, mas é à custa de horários extra.
A escassez de profissionais desta área, tal como a falta de formação, pode estar também relacionada com essa falta de referenciação que mencionou, por parte dos próprios profissionais de saúde? Se não há referenciação…
Sim, mas é sobretudo uma questão de sensibilização das equipas de outras especialidades e de comunicação institucional, que deve ser feita através de um trabalho de muita proximidade. Naturalmente, há profissionais mais sensíveis à área e outros menos.
Mesmo que não seja possível referenciar ainda em todos os serviços de Pediatria, dada a escassez de equipas em alguns deles, existem equipas especializadas nos cinco grandes centros hospitalares e universitários e já várias equipas generalistas. Porém, a falta de conhecimento e sensibilização impede uma referenciação mais ampla.
Por outro lado, ainda existe algum estigma entre os profissionais de saúde: os Cuidados Paliativos não são apenas para o fim da vida. O nosso trabalho é melhorar a vida das crianças, descentralizando cuidados do hospital e permitindo que estejam em casa, no seu ambiente normal, com impacto positivo na sua vida e na das famílias.
“Mesmo com o Orçamento do Estado de 2026, embora os Cuidados Paliativos estejam nas grandes opções, não há medidas concretas, e a área continua diluída nos Cuidados Continuados”
Talvez seja então necessário fazer uma campanha junto dos profissionais de saúde sobre Cuidados Paliativos, para que haja maior sensibilidade e referenciação?
Exatamente. O manifesto envolve diferentes sociedades científicas no sentido de as comprometer, internamente, a trabalhar a formação pré e pós-graduada, a garantir referenciação adequada e a reforçar a sensibilização. Desta forma, estaremos a dar um passo importante. Apesar de tudo, nos últimos 10 anos houve progresso significativo, e os Cuidados Paliativos já começam a ser abordados na formação pré-graduada em diversas áreas profissionais.
Esta foi a vontade da APCP: ao subscreverem um manifesto, estas instituições passam também a ter a responsabilidade de pensar em quem referenciar, quando e como, e quais os centros adequados. É um caminho de muita sensibilização e de muita formação.
Sente que há vontade política em colocar os Cuidados Paliativos Pediátricos na agenda das prioridades de saúde?
Há vontade, mas ainda faltam medidas concretas para a Pediatria. Apesar de os Cuidados Paliativos em geral estarem nas grandes opções de 2025-2029, Portugal investe cerca de 0,2% do PIB nesta área, enquanto a média da OCDE é de 1 a 2%. Este investimento libertaria recursos para outras áreas, reduziria internamentos e melhoraria a vida das crianças e da sociedade.
Recorrentemente, a APCP tem mostrado a sua preocupação junto do Ministério da Saúde e da Sra. Ministra da Saúde, e temos sentido abertura, até para os pedidos de audiência que fazemos. No entanto, muitas outras áreas continuam a passar à frente em termos de prioridade – talvez porque ainda não se percebeu a importância desta aposta, tanto para as crianças e suas famílias como para a sustentabilidade do próprio SNS. A ausência de nomeação de nova Comissão Nacional de Cuidados Paliativos fala por si…
A APCP celebra 30 anos este mês. Que balanço faz da evolução destes cuidados em Portugal nas últimas três décadas?
Há muitos progressos, mas enquanto houver pessoas sem acesso a equipas de Cuidados Paliativos, o trabalho não está concluído. Hoje, cerca de 70% da população ainda não tem cobertura comunitária adequada. O modelo continua hospitalocêntrico, e é urgente expandir o apoio comunitário.
Mas, focando-me no caminho que já percorremos, temos equipas em todos os serviços hospitalares. Esta foi uma grande vitória, que resultou do intenso trabalho de formação, integração na formação pré e pós-graduada e sensibilização contínua. É o fruto do esforço da APCP e de todos os profissionais envolvidos, que ao longo destes 30 anos batalharam por mais e melhores cuidados.
Para os próximos 30 anos, a grande mudança terá de ser ao nível das equipas comunitárias, em todo o país, para que nessa altura possamos dizer que temos uma cobertura de 100%, tal como já temos nos hospitais.
“Portugal investe cerca de 0,2% do PIB nesta área, enquanto a média da OCDE é de 1 a 2%. Este investimento libertaria recursos para outras áreas, reduziria internamentos e melhoraria a vida das crianças e da sociedade”
Trabalhar em Cuidados Paliativos Pediátricos deve ser emocionalmente intenso. O que a move a continuar este trabalho e que mensagem deixa às famílias e equipas de profissionais?
É emocionalmente desafiante, mas muito recompensador. Acompanhamos a forma mais intensa e injusta de sofrimento que qualquer ser humano pode vivenciar e aprendemos diariamente com a capacidade de adaptação e superação das famílias. Acompanhar um filho com uma doença crónica, para a maioria de nós, é, à primeira vista, um processo contranatura. Mas existe e tem de ser trabalhado.
É um caminho de constante aprendizagem com as crianças, mas também com as famílias, que, mesmo neste processo, conseguem ter uma capacidade de adaptação, superação e transformação.
A estas famílias deixo uma palavra de gratidão: é através delas que aprendemos como o sofrimento pode transformar o ser humano pela positiva, levando à dedicação, amor, entrega, superação diária e resiliência. São elas que todos os dias nos fazem crescer um bocadinho na forma como olhamos e acompanhamos o outro neste processo. Esse “outro” são as crianças, os adolescentes e as famílias.
Mesmo depois de todo o caminho que percorreram, algumas famílias, nas últimas horas ou minutos de vida dos seus filhos, agradecem-nos. Fazem-nos sentir que, provavelmente, fizemos a diferença.
Aos profissionais, a mensagem é clara: quando uma família solicita referenciação para Cuidados Paliativos é porque precisa verdadeiramente. É para referenciar. E isso não significa perder o acompanhamento pela equipa de referência. Podem fazer-se em simultâneo, e todos ganham: crianças, famílias e profissionais.
Os Cuidados Paliativos não tratam o fim da vida. Tratam a vida como ela é: com a certeza de que deve ser vivida o mais intensamente e da melhor forma possível, garantindo acompanhamento personalizado, qualidade de vida e apoio constante, independentemente da sua duração.
Sílvia Malheiro
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