
O cancro do cérebro ficou “vincado” em David Pires. Fundou uma associação que quer apoiar outros doentes — Polígrafo
David Pires estava no segundo ano da licenciatura em Ciências Farmacêuticas, na Universidade de Coimbra. Não sabe exatamente em que mês começou a sentir o dedo indicador da mão direita a tremer, mas lembra-se que foi no final do ano de 2018 porque estava a estudar para mais uma época de exames. Pensou que provavelmente seria por estar sempre com a mão no rato do computador na mesma posição.
A época de exames passou e as aulas começaram. Em fevereiro, estar tonto passou a ser uma constante, parecia que estava “sempre com uma garrafa de whisky em cima”, conta, entre risos. Era difícil manter o equilíbrio — aquilo começou a parecer estranho e decidiu ir ao médico de família.
Ninguém parecia conseguir identificar o que se passava, até que consultou um psiquiatra que o aconselhou a ser visto por um neurologista “só por descargo de consciência”.
“Fez-me vários testes, nomeadamente um para ver o reflexo do pé. Aí eu senti que alguma coisa estava alterada — o reflexo foi muito ténue”, conta. O neurologista sugeriu (mais uma vez por “descargo de consciência”) que David fizesse uma tomografia computadorizada (TAC) ao cérebro.
Esse exame revelou uma massa, mas não se sabia exatamente o que era, se era maligno ou benigno. Após “biópsias, mais TACs” e outros exames, o diagnóstico chegou: cancro do cérebro, um meduloblastoma.
Um meduloblastoma é um cancro do cérebro que afeta principalmente crianças, menos frequente em adultos jovens, como David Pires. “É uma lesão que afeta o cerebelo, o tronco cerebral”, diz Paulo Linhares, coordenador da unidade de Neuro-oncologia do serviço de Neurocirurgia do Hospital de São João, no Porto.
“A parte mais abaixo do cérebro é muito responsável, por exemplo, pela nossa coordenação, pelo equilíbrio”, o que explica porque é que David se sentia constantemente tonto. Alguns dos sintomas que podem surgir na sequência deste tipo de cancro são “dificuldade em mobilizar os membros, dificuldades na linguagem, dificuldades no equilíbrio e dificuldades na visão”.
“Acho que não percebia bem o que estava a acontecer”, diz David, já com alguma distância do momento. “Era muito novo, tinha 19 anos, foi assustador”. Foi no carro que recebeu a chamada a dar conta de que a massa no cérebro era um tumor maligno. Estava com os pais e lembra-se da frase que o pai disse: “Vamos ter de ser muito fortes”.
Os pais ficaram “mesmo afetados” e David, talvez como forma de tentar tirar algum peso de uma situação que sabia ser “delicada”, optou por “tentar relativizar”.
Começou por ser acompanhado no Hospital de Coimbra, foi operado no final de abril, mas “não correu tão bem como esperava”, conta, não foi possível retirar o tumor na totalidade. O cérebro é uma zona sensível e há vários motivos que podem tornar impossível remover o tumor inteiro.
Em crianças mais pequenas, “se for um tumor muito sangrativo, essa perda de sangue é muito pouco tolerada”, o que pode obrigar a uma paragem da remoção, afirma Paulo Linhares. Outro motivo é “a infiltração no tronco cerebral”: “Temos que ter muito cuidado porque é onde estão os centros respiratórios, é onde estão os núcleos dos nervos que vão para a face e para a cabeça e onde passam as vias que depois vão para o resto do corpo”, “é uma zona fundamental” e a invasão dessa área pode limitar a cirurgia.
Uma segunda opinião
De Coimbra, David partiu para o Hospital de São João para ter “uma segunda opinião”. “Fui sujeito novamente a uma nova cirurgia e felizmente correu tudo bem, foi remoção total”. Depois, foi necessário fazer radioterapia e quimioterapia “para ter a certeza que não restava nada”.
“Em termos de terapêutica, a mais eficaz é, sem dúvida, a cirurgia, que depois necessita de ser complementada com a radio e quimioterapia, [essa escolha] depende de vários fatores”, explica Paulo Linhares, que operou David no Hospital de São João.
A rotina teve de se adaptar às 36 sessões diárias de radioterapia, que só paravam ao fim de semana. As sessões de quimioterapia eram mais espaçadas: numa altura, só às sextas-feiras, depois da sessão de radioterapia da manhã, e continuaram ainda depois de terminar a radioterapia.
Durante esse tempo, David ficou com os pais num apartamento que arrendavam no Porto. “Fazia o tratamento, chegava a casa, dormia a tarde toda e à noite íamos comer a Matosinhos”. No dia seguinte, acordava e repetia tudo.
Estava cansado, debilitado, tinha muitas náuseas, consequências comuns dos tratamentos, mas nem assim a faculdade ficou para trás. Nos dias que passava no hospital, fazia-se acompanhar das sebentas e estudava. Faltou a alguns exames, foi a recurso ou repetiu-os em época especial e conseguiu deixar apenas duas cadeiras para trás, que concluiu no ano seguinte.
“Tentava manter a vida normal”
“Tentava estar o mais presente possível” na vida dos amigos, ia sair com eles quando era possível. “Alguns dos meus colegas que eram mais distantes nem sequer sabiam que estava doente”, facto que David encara “quase como uma vitória”. “Tentava manter a vida normal apesar de estar a passar um momento difícil”.
E os amigos ajudaram: “Estavam sempre lá, visitaram-me várias vezes e isso dava-me imensa força”. Os pais, as irmãs, os avós “foram fundamentais para continuar, foram mesmo fundamentais”, diz David. E também a equipa médica foi “excelente”, até porque para além de fazerem o trabalho, ainda “aturaram” o jovem.
É que um jovem não deixa de ser jovem quando tem cancro. “Eu tinha 20 anos, era praticamente um adolescente e ainda tinha aquelas vontades súbitas da adolescência de tentar ser um bocadinho rebelde”, conta David.
Foi operado pela segunda vez no Hospital de São João, numa altura em que o hospital ainda estava em obras. Quando viu aqueles contentores disse: “Não quero ficar aqui, não consigo estar aqui”. Este tipo de recusa (David chama-lhe “parvoeira”) era comum, “aconteceu várias vezes”, mas os médicos sempre lhe deram a volta.
A frustração também surgia quando se sentia a ficar para trás na faculdade e não conseguia estudar. “Os enfermeiros e médicos diziam-me várias vezes ‘Agora a tua prioridade é outra, é muito bom o que estás a fazer, mas [a prioridade] é outra’”.
Pouco tempo depois de ter terminado todas as sessões de tratamento começou o primeiro confinamento por causa da pandemia de Covid-19. “Costumo dizer na brincadeira que tive seis anos de pandemia”, conta David. E naquele início de 2020, com o pouco que se sabia sobre a doença contagiosa que estava a provocar mortes em todo o mundo, os cuidados foram redobrados: “Resguardei-me muito porque a minha família e eu tínhamos receio pelo meu sistema imunitário”.
Adaptações e a criação da APCCEREBRO
Depois de regressar a casa, David tinha de ir ao Hospital de São João uma vez por mês “para fazer o controlo”, ver se estava tudo bem, como estava a evoluir. Entrar num hospital naquela altura era uma experiência atípica, havia muitas máscaras a pôr e “às vezes até tinha de usar luvas”. Passou de ir ao São João de mês a mês para passar a ir de três em três meses e, nos últimos tempos, de seis em seis. “Agora vou ter uma sessão em Outubro e depois vai passar a ser anual”, conta.
O cancro ficou-lhe “vincado na personalidade”, não que tenha sido uma experiência profundamente transformadora mas, diz, é “muito mais ponderado e muito mais calmo agora”. Por causa do tumor perdeu alguma motricidade fina na mão direita, “que no início era muito significativa, mas está praticamente resolvida”. “Dantes era destro, fazia tudo com a mão direita e agora pego no telemóvel e escrevo com a mão esquerda porque me dá mais jeito”.
Hoje, David vive em Lisboa, trabalha na Ordem dos Farmacêuticos e é vice-presidente da Associação Portuguesa de Cancro do Cérebro (APCCEREBRO), criada em janeiro, por iniciativa de Renato Daniel, ex-presidente da Associação Académica de Coimbra e colega de faculdade de David, que também teve um cancro do cérebro.
Quando Renato descobriu que tinha cancro, David já tinha terminado os tratamentos. Conheciam-se de Coimbra e falaram, David partilhou a sua experiência e conversaram sobre o tema. “Nós queremos que as pessoas todas que tenham este diagnóstico se sintam exatamente como o Renato se sentiu, que tenham uma plataforma, que consigam comunicar com alguém”.
Para além de dar apoio a pessoas diagnosticadas com cancro do cérebro, a APCCEREBRO quer “sensibilizar a população em geral e eliminar algumas pré-conceções”, como a de que o cancro do cérebro é muito raro. “Não é assim tão raro, a nível pediátrico é o segundo mais prevalente”. “Outro eixo que queremos trabalhar é o da investigação científica nesta área porque sentimos que existe pouca informação disponível”, conclui.
Este artigo foi desenvolvido no âmbito do “Vital”, um projeto editorial do Viral Check e do Polígrafo que conta com o apoio da Fundação Champalimaud.
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