
Leonor Beleza: Problemas na Saúde “têm muito mais a ver com organização do sistema do que com outros fatores”
De que se trata?
Temos um laboratório que tenta caminhar no sentido de terapêuticas que nós chamamos “low cost” em áreas ainda caríssimas, em que a ciência já sabe alguma coisa, aquilo que se faz com terapia gênica em relação a doenças dos olhos. Aliás, já atribuímos um dos Prémios Champalimaud de Visão para a primeira aplicação de terapia desse tipo, mas ainda custam tanto que não é sequer imaginável estender esse tipo de terapias.
Mas em compensação faz sentido tentarmos perceber como é que essas terapias podem ser substituídas, usando a ciência que é conhecida por meios do ponto de vista técnico que não custem valores tão impossíveis. Temos um laboratório a fazer isto, portanto, investigação em “low cost” terapia gênica para doenças dos olhos, trabalhando em conjunto com parceiros nossos que estão na Índia.
Recebemos e precisamos muito de receber financiamento de outro tipo, puramente filantrópico, como aquele com que fizemos o centro do cancro do pâncreas
Falava da necessidade de explorar o desconhecido, mas há também uma aposta em colmatar uma falha no investimento público nestas áreas?
De certa maneira, todos os que trabalhamos em investir em ciência trabalhamos para um objetivo comum. Não é tanto porque o investimento público precisa de ser colmatado, mas porque acreditamos, e era nisso que o nosso fundador acreditou, que valia a pena também investir em termos privados, numa fundação privada com um objetivo que é comum a todo o sistema de investigação: descobrir maneiras novas, conhecimento que ainda não existe no sistema científico e ao mesmo tempo prevenir e tratar doenças melhor.
Há digamos uma tarefa comum, interesses comuns ou missões comuns, mas o objetivo quer do sistema público, quer das entidades privadas que investem em ciência é o mesmo ou é muito próximo um do outro. Temos maneiras diferentes de lá chegar e funcionamos com instrumentos que de alguma maneira são diferentes, mas diria que em áreas como esta, tudo o que seja investir para conseguir conhecer melhor e tratar melhor é bem-vindo.
Nós aqui funcionamos com o nosso património financeiro e com aquilo que obtivemos dele. Funcionamos com as nossas próprias atividades e recorremos a toda a espécie de financiamento exterior. Existem sistemas estabelecidos de financiamento da atividade científica quer em Portugal, quer na Europa, quer noutros países e nós temos, do ponto de vista da nossa organização, gente especializada em saber como é que se vai atrás de financiamento. Recebemos e precisamos muito de receber financiamento de outro tipo, puramente filantrópico, como aquele com que fizemos o centro do cancro do pâncreas – 50 milhões que nos foram doados por um casal espanhol – e a investigação que estamos a fazer no cancro do pâncreas, também, com mais 50 milhões de euros que nos estão a ser dados por um casal alemão. Portanto, tudo o que venha por este tipo de via é preciso.
Enfim, ouvimos falar dos investimentos extremamente importantes que têm vindo a ser canalizados para este tipo de fins em Portugal, com coisas que nós aqui conhecemos, mas também no mundo, nomeadamente muitas vezes estas coisas começam com as enormes fundações nos Estados Unidos e também no Reino Unido. Na Europa continental há menos tradição disto, há muito a ideia de que o Estado faz as coisas. Felizmente essa ideia está a ser alterada, mas quer no Reino Unido, quer nos Estados Unidos, há uma tradição forte de filantropia a que nós aqui, na fundação, também estamos completamente abertos a recorrer sempre que queiram aproximar-se de nós com esse objetivo.
Tenho a impressão que o nosso país está a revelar-se atrativo para pessoas que venham de outras latitudes, muitas delas muito qualificadas
De forma geral, Portugal tem dificuldade em atrair mão de obra qualificada, refiro-me sobretudo a cientistas. A fundação é uma exceção à regra?
Não sei se é uma exceção à regra. Tenho a impressão que o nosso país está a revelar-se atrativo para pessoas que venham de outras latitudes, muitas delas muito qualificadas. Nós sempre funcionamos, tanto na parte de investigação como na parte clínica, com pessoas que vêm de muitos outros sítios. Isso para nós, desde o princípio, um fator muito relevante. Trazem novos saberes, novas culturas, novas maneiras de olhar para as coisas, porque a própria interação entre gente proveniente de latitudes diferentes é, na minha convicção, mais fecunda, mais interessante e isso para nós é tão importante que temos na porta da fundação as bandeiras de toda a gente que trabalha connosco, porque gostamos de mostrar que somos uma casa onde convivem pessoas não apenas vindas de áreas científicas e de formação muito diferentes, mas também de geografias muito diferentes.
Quando queremos muito que alguém muito qualificado venha trabalhar connosco convidamos essa pessoa a vir aqui à fundação, para ver o que é que fazemos, como é que trabalhamos e tentamos convencê-la a trabalhar connosco. Muitas vezes temos tido bastante sucesso.
É preciso um esforço aqui, como noutras áreas, para que os portugueses se sintam mais realizados no seu país
Por outro lado, há portugueses que querem trabalhar na área da ciência e que acabam por emigrar. Alguns fazem-no, como dizia neste mercado global, porque querem; outros por falta de investimento, falta de condições de trabalho em Portugal que os obriga a procurar outras oportunidades fora do país.
No mundo da ciência as fronteiras tendem a esbater-se, porque as pessoas que habitam esse mundo estão habituadas a ler as mesmas revistas científicas, a ir a encontros científicos, a um relacionamento muito intenso entre os laboratórios que fazem investigação em várias partes do mundo e é assim que as coisas progridem e tem de ser assim. É por isso que é tão importante, para nós, termos aqui dentro pessoas que vêm de outros sítios e que têm outras experiências.
É claro que Portugal é de certa maneira um país com meios relativamente limitados em termos de laboratórios e de sítios onde as pessoas podem trabalhar, mas também julgo que é extremamente importante para os nossos cientistas andarem por outras latitudes, durante as fases da sua carreira. No mundo da ciência, isso é normal. Não devemos, do meu ponto de vista, nem olhar para os portugueses que vão para outros sítios, nem para os estrangeiros que vêm para aqui, simplesmente como movimentos de emigração e de imigração.
As coisas são mais complexas. Mesmo quando estão aqui a trabalhar os portugueses e todos os outros mantêm uma intensa colaboração com os laboratórios de onde vieram, com os laboratórios onde o mesmo tipo de estudos é feito. Nas candidaturas a grandes financiamentos fazemos isso com investigadores de outros países. Isso são movimentos normais.
Não estou a tentar ignorar com isto que em Portugal temos problemas em relação a profissionais de certas áreas por eles, porventura, não encontrarem uma satisfação suficiente aqui e tenderem a emigrar. Agora não estou tanto a falar de cientistas, mas de profissionais de saúde – isso está a acontecer mais do que aquilo que nós precisaríamos. É preciso um esforço aqui, como noutras áreas, para que os portugueses se sintam mais realizados no seu país. Eu não ignoro que isso aconteça, mas no mundo científico, considero normal que venham dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Alemanha, ou de outro sítio qualquer trabalhar aqui, que estejam connosco uns tempos e que ao fim desse tempo queiram regressar, tal como outras pessoas estão a vir de outros sítios também para trabalhar connosco.
Faz parte.
São mundos onde o convívio entre pessoas de países diferentes e de origens diferentes é normal, é corrente, é desejável, acontece e nós, como lhe disse, de certa maneira exibimos essa componente do nosso trabalho com as bandeiras de toda a gente na nossa entrada. Isso está a acontecer não apenas no mundo científico, mas também na nossa parte clínica, com uma colaboração muito intensa com gente que vem de outros sítios. Espero que os tempos que correm não limitem a nossa capacidade de viajar para outros sítios neste tipo de atividades e de receber pessoas que vêm de outros sítios.
Julgo que as questões têm muito mais a ver com a organização do sistema de saúde português do que com outros fatores
Referiu a questão dos problemas dos profissionais de saúde. Falando de Portugal, por exemplo do caso dos médicos, parece-lhe tratar-se de uma questão de oportunidades a que têm acesso ou do número de médicos que formamos todos os anos?
Bom, haverá muitos fatores que interferem nestas coisas, mas é conhecido, e Deus me livre de estar aqui a não ser capaz de olhar para a realidade, é conhecido que estamos com dificuldade de profissionais em muitas áreas e nomeadamente em áreas médicas. Julgo que as questões têm muito mais a ver com a organização do sistema de saúde português do que com outros fatores. Julgo que, ao longo de décadas, o sistema de saúde foi evoluindo através da presença de novos atores, sem que tenhamos sabido antecipar essas mudanças e tenhamos sabido organizar essas mudanças de maneira a que elas se traduzam sempre naquilo que é mais importante: sermos capazes de tratar os nossos concidadãos da melhor maneira possível.
Julgo que há aí um problema da organização do sistema. Não é só um problema de se há profissionais a menos ou a mais. Se olharmos para os números globais nem sequer se consegue detetar propriamente que estejamos muito carecidos de profissionais, se os compararmos com outros países. Julgo que o problema tem muito mais a ver com a nossa organização interna, dos meios que temos.
Este mês vai receber o prémio Árvore da Vida, que destaca a “autenticidade e o compromisso que nortearam o seu projeto de vida no sentido do humanismo cristão”. É assim que olha para a sua vida?
Foi uma enorme surpresa e constitui uma grande honra que se pense em mim como merecedora de um prémio com esse tipo de objetivo. Julgo que tem tudo a ver com a minha vida e com a maneira como olho para a sociedade e para a maneira como nos devemos relacionar uns com os outros.
De certa maneira, quando lhe disse que o sistema de saúde o que devia era olhar para os cidadãos e para as necessidades deles, não estou a pensar só em questões de carácter técnico. Estou a pensar noutro tipo de questões que têm a ver com a solidariedade, com o modo como olhamos uns para os outros como sociedade, como é que nos tratamos e o que é que achamos que é mais importante. Acho que essas coisas terão a ver com aquilo que terão visto em mim. Para mim [este prémio] é uma honra e uma enorme surpresa.
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