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“Eram cinco, bateram-me com muita força… até levaram a minha roupa interior onde tinha algum dinheiro”

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É um número alarmante: em Salamabila, na província de Maniema, no centro-Leste da República Democrática do Congo (RD Congo), pelo menos sete pessoas em média são violadas todos os dias, de acordo com os dados recolhidos pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) desde o início de atividades nesta região em 2018. A violação é um flagelo persistente nesta província. Homens armados – que continuam a ser os principais responsáveis por estes ataques – permanecem na área.

A organização médica e humanitária providenciou tratamento a 16.436 sobreviventes de violação desde 2019, e, nos anos seguintes, até 2024, 11 vezes mais mulheres do que aquele número procuraram cuidados de saúde na sequência de violência sexual.

Houve avanços em chegar a sobreviventes de violação e regista-se também um histórico muito positivo na prestação de serviços neste âmbito, especialmente nos cuidados providenciados a nível comunitário. Mas o o destino destas mulheres é agora muito incerto. No final deste mês de outubro, as equipas da MSF põem fim às atividades desenvolvidas em Salamabila. Os trabalhadores de saúde estão a fazer soar o alarme para garantir que estes cuidados continuam a ser prestados.

SIC Notícias

“A dor é profunda, aqui mesmo no meu coração”

Numa ala reservada do Hospital de Salamabila, num pequeno quarto escuro onde uma cortina grossa a protege de olhares indiscretos, Fabienne conta a história dela a Alice, uma assistente social da MSF: “Eram cinco [homens]. Primeiro, bateram-me com muita força no estômago. Rasgaram-me as roupas e abusaram de mim. Quando partiram, até levaram a minha roupa interior, onde eu tinha escondido algum dinheiro.”

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Fabienne estava a regressar do mercado quando foi violada por membros de um grupo armado. Um mês depois do ataque, o trauma está-lhe ainda à flor da pele e ela tenta segurar as lágrimas com o avental. “Quando penso naquilo tudo, a dor é profunda, aqui mesmo no meu coração”, confidencia.

É uma das mais de 16.400 mulheres violadas que foram tratadas pelas equipas da MSF em Salamabila desde 2018. Como Fabienne, todas receberam tratamento de urgência para doenças sexualmente transmissíveis e gravidez. As mulheres sobreviventes de violação têm acesso também a apoio psicológico, se o desejarem. A MSF distribuiu ainda centenas de kits de emergência àquelas que foram expulsas de casa pelos maridos. Entre 2019 e 2024, em apenas seis anos, o número de mulheres assistidas pela MSF aumentou 11 vezes.

Justine Sagot

Sobreviventes tornam-se pilares de cuidados comunitários

O sucesso do programa de assistência da MSF a sobreviventes assenta na instauração, desde 2019, de um modelo descentralizado de cuidados para quem sofre violência sexual. Uma estratégia baseada nas comunidades permite prestar os cuidados a nível periférico, providenciando às sobreviventes acesso rápido a serviços de saúde, dentro de 72h desde os ataques sofridos, e com confidencialidade.

A organização médica-humanitária efetuou a formação de agentes de saúde reprodutiva dentro das comunidades. A trabalhar de forma próxima com a população, estas 13 “mães”, frequentemente sendo elas mesmas sobreviventes de violação, acolhem as mulheres nas próprias casas, ouvem-nas e providenciam-lhes tratamento. No total, ao longo de seis anos, cuidaram de dois terços das sobreviventes.

“Esta é a nossa maior vitória aqui, é que elas se tornaram indispensáveis”, conta a coordenadora médica da MSF Elodie Françoise. “Ir até estas agentes [comunitárias de saúde reprodutiva] é muito mais discreto do que ir a um hospital, onde elas ficariam expostas a perguntas feitas por residentes e arriscar-se-iam a gerar suspeitas de um marido que as poderia expulsar de casa a qualquer momento.”

Baati é uma dessas agentes de saúde reprodutiva em Salamabila. Acolheu seis outras vítimas de violência sexual só numa semana de setembro. “Para mim é doloroso às vezes ouvir as histórias que me contam, porque sinto que estou a reviver o trauma delas com elas. Sinto uma enorme empatia. Mas também considero que o meu trabalho é muito importante. Baseio-me na minha história pessoal para que se possam identificar comigo e confiar em mim. Sem os medicamentos que eu recebi, provavelmente não estaria viva hoje.”

Trabalhar com os homens para limitar a dupla violentação e o estigma

Quando Fabienne regressou a casa, o marido, em pânico, informou toda a aldeia sobre o ataque que ela sofrera. Expulsou-a de casa e, depois, pediu a um vizinho que a acolhera para também a mandar embora. “Naquela altura, nem conseguia dormir à noite”, recorda Fabienne. “Tinha medo de ficar sem nada. O meu marido já tinha retido todos os nossos pertences e eu estava em risco de ficar na rua.”

Esta dupla violentação está ligada a noções preconcebidas e a outros estigmas sobre a violação. A MSF trabalha para mudar estas atitudes, tendo criado uma “escola de maridos”. Nessa estrutura, destinada a “todos os homens da casa”, equipas de promoção de saúde sensibilizaram e aumentaram a consciencialização de pelo menos 1520 homens para uma mensagem crucial: a violação não é infidelidade nem vergonhosa; é uma violência que nenhuma mulher provocou.

Este esforço a longo prazo deu frutos. “Aos poucos, vimos os maridos a mudar, a encorajarem as mulheres a procurarem tratamento e até a acompanhá-las, o que antes era inimaginável”, explica o supervisor de promoção de saúde Kalume Kalumwendo.

Justine Sagot

Escassez de medicamentos é uma preocupação crescente

Ao fim de sete anos de funcionamento deste projeto, a MSF encerra as atividades em Salamabila no final de outubro de 2025. Este término foi planeado, mas também teve de ser ligeiramente acelerado de forma a permitir à MSF concentrar os recursos disponíveis em emergências médicas e humanitárias, num contexto mais alargado de necessidades cada vez maiores, um declínio acentuado do financiamento e uma crise em curso no Leste da República Democrática do Congo.

A província de Maniema é uma das zonas mais isoladas do país. A insegurança, a distância até às instalações de saúde e os elevados custos dos transportes limitam gravemente o acesso a cuidados médicos. Desde que o conflito armado se agravou e o aeroporto de Bukavu foi encerrado, transportar medicamentos e trabalhadores humanitários até Salamabila tornou-se mais demorado, mais complexo e mais dispendioso, apesar de ainda ser possível fazê-lo por via aérea.

Nos cinco centros de saúde onde a MSF presta apoio e entre as diversas agentes comunitárias de saúde reprodutiva, há uma imensa preocupação de que a disponibilidade de medicamentos, providenciados pela organização médica-humanitária, se esgote após terem sido usados todos os que já foram doados.

Emmanuel, enfermeiro no centro de saúde da aldeia de Sous-Marin, faz uma observação amarga: “Quando vejo chegar uma sobrevivente de violação, sinto as lágrimas a encherem-me os olhos, porque sei que não tenho mais medicamentos para a proteger. Sinto que não há nada que eu possa fazer.” Esta dor e preocupação são partilhadas por Jean Claude Alfani Selemani, médico no Centro de Saúde Kayembe. “Se não há mais medicamentos, as sobreviventes dificilmente voltarão aqui, o atendimento vai baixar, e estou muito preocupado”, sublinha.

Jospin Mwisha

É precisa ação do Ministério da Saúde e entidades internacionais

Perante esta situação e as deficiências persistentes no sistema de saúde em Maniema, a MSF e as autoridades de saúde de Salamabila instaram o Ministério da Saúde do país, doadores e parceiros humanitários a mobilizarem todos os recursos necessários para ser possível retomar as atividades que estão prestes a ser terminadas.

O responsável médico desta área de saúde, Charles Bamavu, teme que tudo volte à estaca zero. “Tenho medo que os homens armados que cometeram estas violações venham de novo intimidar as vítimas e que o código de silêncio volte a existir. Por isso, apelo ao Ministério da Saúde e a todos os parceiros que nos possam ajudar a assumir as atividades desenvolvidas pela MSF. Isto é vital para todas estas mulheres.”

A eficácia da abordagem comunitária que é levada a cabo pelas mulheres dentro das comunidades, e as quais foram formadas como agentes de saúde reprodutiva, já está comprovada. Mais: o modelo instaurado em Salamabila é replicável e extremamente importante numa perspetiva humanitária.

Mesmo com os progressos feitos nos últimos anos, está longe de existir uma resposta adequada e estável, porque um problema de saúde pública como a violência sexual com esta escala requer uma abordagem abrangente, que inclua cuidados médicos, apoio psicológico, assistência socioeconómica, proteção e serviços legais.


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