
Coesão social depende do bem-estar de todos. Dos imigrantes também
Portugal continua a ser um país acolhedor para os imigrantes, mas houve uma degradação no atendimento público a quem chega de fora e precisa de ajuda. A denúncia é feita na Renascença por Inês Espada Vieira.
Dias depois de ter sido aprovada uma nova versão da lei dos estrangeiros, a docente universitária, que coordena o Apoio a Estudantes e Investigadores Refugiados na Universidade Católica Portuguesa (UCP), não esconde a preocupação com as mudanças a que tem assistido.
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“Preocupa-me a diferença que tenho sentido – e isto não é ciência, é só a minha experiência acompanhar muita gente desde 2017 – na forma de tratamento das pessoas imigrantes nos serviços públicos. Numa ida à segurança social, na renovação do passe, num centro de saúde ou na AIMA, há uma experiência de agressividade e de humilhação para o utente, o requerente de asilo, de proteção internacional ou de título de residência, estudante de ensino superior ou imigrante com visto de trabalho. Até podem resolver as suas questões, mas saem menorizados do atendimento, e isso preocupa-me muitíssimo”, afirma.
“É normal que a imigração gere conflitos. Mas a coesão da sociedade portuguesa faz-se do bem-estar de todos, incluindo dos imigrantes”
A acompanhar de perto refugiados desde 2017, na sua paróquia e na UCP, garante, no entanto, que continua a haver muitas pessoas e instituições mobilizadas na ajuda. “Portugal não perdeu a capacidade de acolher. As organizações da Igreja, por exemplo, e outras organizações da sociedade civil, são testemunho disso. Ao dia de hoje podemos ver como há pessoas que estão, neste momento, a cuidar de quem chega”.
A autora do ensaio “Estoutro – Refugiados e imigrantes pobres numa democracia compassiva”, publicado em abril de 2025, admite que as dificuldades dos portugueses – por exemplo com a habitação – podem estar a fazer crescer sentimentos negativos em relação aos imigrantes, mas lembra que a coesão do país depende do bem-estar de todos os que nele habitam.
“É normal que a imigração gere conflitos e que visualmente até haja um choque no encontro com pessoas que podem vestir de maneira diferente. Pode haver conflitos pontuais, como em qualquer sociedade, mas temos de evitar que a imigração seja, ela própria, um fator de conflito na sociedade. A coesão da sociedade portuguesa faz-se do bem-estar de todos, incluindo das pessoas imigrantes, e de todos termos uma situação de paz”.
A crispação e a polarização é visível, mas muito superficial. No terreno, sobretudo a Igreja Católica está a ser agente de paz
Apesar da perceção generalizada de que os imigrantes vieram agravar a situação dos portugueses , acredita que isso não corresponde à realidade, e que a obrigação dos cristãos é ajudar, até porque a “amabilidade” é um “valor bíblico” que não se pode perder. “Está Carta aos Filipenses, 4. É uma passagem da Bíblia que eu gosto muito”, sublinha.
“Eu acho que a crispação e a polarização da discussão na internet, no Parlamento, na televisão, sobretudo, é visível, mas muito superficial. Acredito que no terreno, como nós dizemos, sobretudo a Igreja Católica está a ser agente de paz, de encontro, de alegria, de construção de esperança. Uma esperança concreta, como nos escreveu o Papa Francisco. E acho que esse é o caminho. Não há alternativa para o cristão, não vamos desistir, não podemos andar para trás. Temos de lutar contra a indiferença. Porque o sofrimento do outro nem sempre é evidente e nem sempre é visível”.
Inês lamenta a dificuldade que muitos têm em lidar com a pobreza, e em relação aos imigrantes, se forem pobres agrava tudo. Mas não se pode perder a empatia e a humanidade para com quem fugiu da guerra ou da fome, e não tem esperança de regressar a casa. “Quem vem de uma terra como o Afeganistão, como o Irão, quem vem de uma Colômbia a ferro e fogo, ou de uma Guiné-Conacri, onde não vivia a dignidade humana, não tem essa esperança do regresso a casa. Sabe que é impossível, e essa impossibilidade do sonho, da expectativa, é uma marca muito difícil de ultrapassar”.
Estudantes refugiados. “Querem retribuir”
Estudar pode ser “um luxo” no universo dos refugiados, mas “é um desígnio das Nações Unidas, e de todo o movimento para o acolhimento de refugiados – conseguir que em 2030, 15% das pessoas refugiadas estejam no ensino superior, uma vez que em 2022 este número era de apenas 7%, muito inferior ao número das pessoas que não são refugiadas”, conta.
Na Universidade Católica Portuguesa – nos pólos de Lisboa, Porto e Viseu – estão a estudar neste momento 27 refugiados, de várias nacionalidades e em vários cursos, incluindo Medicina. “Temos afegãos, sírios, nigerianos, colombianos, ucranianos e russos. Também paquistaneses, da Guiné Conacri e do Gana. E temos já no 4º ano de Medicina um iraniano e dois africanos”.
Um dos meus estudantes afegãos quando tiver a nacionalidade portuguesa quer pôr um nome português. Isto é muito bonito
Muitos têm histórias difíceis, e o regresso ao país de origem nunca será opção, o que “mina” as pequenas vitórias que possam ir tendo.
“Mesmo as conquistas de quem vive no exílio estão sempre minadas, de alguma maneira, por uma perda substancial, inicial, que é o desenraizamento. Portanto, mesmo quando o dia correu todo bem, mesmo quando as aulas foram ótimas, e nesse dia até houve o café com os amigos, ou as pessoas chegam a casa e têm a sua refeição, encontram a família – se estão acompanhados pela família, porque há jovens que não estão -, mesmo assim há sempre uma falta. E nós conhecemos esta experiência, de irmos de férias e ao fim de uma semana ou 15 dias já estarmos a sonhar com a sopa lá de casa, com o croissant da nossa rua… Agora imaginem a impossibilidade de voltar ao lugar destas memórias e desta pertença”.
Um apoio que a UCP se orgulha de estar a dar. Muitos estudantes ficarão em Portugal a exercer as profissões em que se estão a formar, porque já se sentem portugueses.
“Estes apoios da Católica têm esta virtude de sabermos que são pontuais, num momento de fragilidade na vida, mas que isto depois tem um impacto – com estes cursos os estudantes e as suas famílias tornam-se pessoas mais livres, mais felizes e com mais capacidades para dar o retorno à sociedade, que é o que querem. Um dos meus estudantes afegãos há poucos dias dizia-me que quando tiver a nacionalidade portuguesa quer pôr um nome português, quer acrescentar um nome. Isto é muito bonito”, conta.
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