
Cláudia Fraga teve cancro do ovário e recidiva, mas viu “sempre o copo meio cheio”
“Quer a minha visão enquanto doente? É que além de doente sou presidente do Movimento Ginecológico Oncológico (MOG)”. Cláudia Fraga apresenta-se assim, na primeira frase que diz em entrevista ao Viral. Ao longo da conversa, vai alterando a perspetiva entre a da mulher que foi diagnosticada com cancro do ovário em 2015 e a que, em 2018, fundou o MOG e tem uma visão holística da extensão da doença.
João Casanova, um dos médicos que acompanhou Cláudia nos últimos anos, explica que “o cancro do ovário é o terceiro cancro ginecológico mais frequente, em Portugal, com cerca de 650 casos novos por ano. Infelizmente, não tem rastreio e, mais ou menos, dois terços de casos, ou até 75% dos casos, podem surgir em estadios avançados”. Cláudia Fraga faz parte desses números.
É professora de Educação Física e, em 2015, com 49 anos, era uma pessoa “ativa e saudável”. No verão desse ano sentiu-se “um bocadinho cansada” — “Mas aos 49 anos, com filhos, quem é que não se sente cansada?”.
Houve um ou outro dia em que estava com pouca vontade de ir à praia (o que é estranho para quem diz que tem “uma religião que é nadar no mar”) e, depois de um jogo de ténis de duas horas com o marido, sentiu uma “dor lancinante do tórax até às virilhas”.
Os sintomas de cancro do ovário são “muito pouco específicos”, refere o ginecologista João Casanova. “Podem ir desde uma simples falta de ar até um desconforto abdominal difuso, que se manifesta várias vezes, durante vários dias”. Em alguns casos, nota-se uma “distensão abdominal, os doentes reparam que têm de usar calças mais largas para se sentirem confortáveis”.
Pode também manifestar-se através de “perdas de peso, alterações dos hábitos intestinais, comer pouco e ficar com a sensação de que se está muito cheio”. E também há registo, ainda que menos frequente, de “irregularidades menstruais em doentes pré-menopáusicas”.
Cláudia sentiu dores lancinantes na noite do dia 31 de agosto. No dia seguinte, o primeiro de setembro, havia reunião geral de professores para preparar o ano letivo. Acordou e “julgava que tinha morrido”, “foi uma sensação muito estranha”, conta, sem saber exatamente como a descrever.
Mas viu “que não tinha febre” e mesmo “com uma sensação de esgotamento, como se tivesse corrido uma maratona”, “tomou um banho” e foi para a escola.
O diretor disse-lhe que “estava com péssimo aspeto”, ao contrário do que era “normal depois das férias” — “E estava, tinha tido a pior noite da minha vida”, diz Cláudia. Mal terminou a reunião foi ao hospital: “Não descurei estes sintomas, o que é muito importante”, sublinha.
Teve uma primeira consulta, fez exames e percebeu-se que tinha um tumor de 12 centímetros no ovário, que podia ou não ser maligno. O primeiro instinto, ainda nas instalações da Fundação Champalimaud, foi pensar: “Estou no sítio certo para me tratar se for grave”.
O tumor já era grande e era preciso operar: só aí se saberia, com auxílio de uma biópsia, se era maligno ou benigno. A marcação foi rápida, em menos de um mês tinha a operação agendada. Mas a data não permitia ir votar nas eleições legislativas daquele ano, a 4 de outubro de 2015. “Adiei a operação para 6 de outubro porque quis ir votar, acho que é uma obrigação”, recorda.
No dia da operação, o tumor já tinha 28 centímetros. O médico que operou Cláudia disse-lhe que “se a operação demorasse uma hora tinha corrido bem, se demorasse três tinha corrido mal”.
Quando saiu do bloco operatório, percebeu que tinham passado seis horas. Mas, por algum motivo — mais à frente na conversa, diz que viu “sempre o copo meio cheio” —, não surgiram preocupações: “Achei que tinha corrido bem porque estava viva”.
O especialista em ginecologia oncológica explica que é necessário, antes da operação, preparar as doentes para a possibilidade de a cirurgia demorar várias horas porque é preciso “explorar minuciosamente todo o abdómen” para ter a certeza que “o objetivo, que é remover a doença toda, é concluído”.
No caso de Cláudia, foi preciso tirar útero, ovários, apêndice e mais de 50 gânglios linfáticos. “O doutor disse que, se tivesse adiado [a cirurgia] mais uma semana, já não havia nada a fazer”, recorda.
Mas a operação correu bem, apesar da extensão da doença ser maior do que era esperado, e seguiram-se três meses de quimioterapia. “Deixei de dar aulas, mudei as rotinas, fiz a quimioterapia, prepararam-me para ter muitos vómitos e náuseas”.
Nessa altura, sempre que fazia uma sessão “saía cheia de fome, comia, mas a seguir ficava três dias em posição fetal. Depois passava tudo e começava a fazer caminhadas”.
Os filhos eram novos, tinham 9 e 15 anos, e nunca foram deixados de parte neste processo. “Se envolvermos as crianças, nada é assustador para elas. Agora, se uma mãe chega ao pé de meninos desta idade careca, com olheiras, claro que é muito mais assustador”.
Explicou aos jovens que estava a fazer um tratamento que ia fazer o cabelo cair. “E, quando começar a cair, vocês vão rapar o meu cabelo”, desafiou-os. O mais velho disse logo que não conseguia e o mais pequeno respondeu prontamente que faria a tarefa.
Um dia, depois da segunda sessão de quimioterapia, começaram a soltar-se do couro cabeludo as primeiras mechas e Cláudia decidiu rapar o resto. E aí, o filho mais velho, então com 15 anos, decidiu que também queria participar e assim foi, os dois raparam o cabelo de Cláudia.
Claro que nenhum dos dois sabia exatamente o que se estava a passar, tudo foi simplificado e explicado com “linguagem acessível” a cada um.
Para além dos mais pequenos, também o marido e o ex-marido, pai dos filhos, “foram sempre incansáveis, sempre positivos e deram-me sempre ótimo acompanhamento”.
Até porque a vida mudou, Cláudia deixou de ter tanta disponibilidade não só física como mental, e quando se tem dois filhos pequenos não é fácil. “Tinham que ter segura a parte logística de irem para a escola, por exemplo, e isso sempre foi assegurado”.
“Até ali, eu não sabia nada, nunca pesquisei nada, não quis saber de nada, entreguei-me à equipa médica, confiei plenamente”. Passados quatro anos, no início de 2019, a doença voltou e Cláudia “não fazia ideia o que era uma recidiva”.
O primeiro diagnóstico nunca prepara para o segundo — “a recidiva é muito pior”, diz —, mas neste caso ainda menos porque não pensava nessa possibilidade como real. Sentiu uma dor, fez vários exames que não revelaram nada e só com uma colonoscopia foi possível chegar a outra conclusão.
O mais frequente é as recidivas acontecerem no “perímetro ou órgãos abdominais”, mas a doença também pode metastizar para gânglios linfáticos ou outros órgãos à distância, diz João Casanova.
Quando assim é, as decisões sobre os próximos passos são feitas em “ambientes multidisciplinares” para “tentar definir qual a estratégia terapêutica mais adequada para o doente”.
“Alguns subgrupos de doentes beneficiam de novas cirurgias, muitos beneficiam apenas de quimioterapia, portanto é sempre mais personalizada esta abordagem”, diz o especialista em ginecologia oncológica.
No caso de Cláudia, o corpo clínico decidiu que a melhor solução seria operar. “A operação correu lindamente, mas, ao fim de uns dias, quando pensei que estava quase a ter alta, tive uma septicemia”.
De novo para o bloco operatório, com a mesma equipa em quem tanto confia. “Aí fiquei bastante mal”, recorda, “estive muitos dias nos cuidados intensivos e tive de ficar ostomizada”.
Seguiu-se mais um período de quimioterapia, “muito mais agressiva” que a primeira. Desta vez, o cabelo não caiu mas “custou muito mais”, até porque “as pessoas diziam ‘Cláudia, estás com um ar terrível, o que é que aconteceu?’ e como viam que eu tinha cabelo, não sabiam que estava a fazer quimioterapia”. Isso trazia outro peso.
Nessa altura, concluiu que precisava mesmo de nadar no mar. Falou com médicos e enfermeiros e lá foi, com todos os cuidados necessários, tudo feito aos poucos. Nos primeiros dias, não conseguiu chegar ao mar.
Molhou os pés, noutro dia chegou aos joelhos, passado mais tempo, as primeiras braçadas. “No final do mês já nadava um quilómetro” no mar da Ericeira.
Cláudia terminou as sessões de quimioterapia e João Casanova sugeriu que criasse uma associação de doentes, por achar que fazia falta e por considerar que o perfil daquela doente era o certo para uma organização desse tipo.
Apresentou-a a outra doente, que também acompanhava na Fundação Champalimaud, mais nova, com filhos mais pequenos. Deram-se bem: “Tive uma grande empatia por ela”, lembra Cláudia.
Ainda voltou a ser submetida a uma nova cirurgia, para reverter a ostomia, e no dia 18 de dezembro de 2019 foi registar a associação — Movimento Oncológico Ginecológico (MOG).
Começou a pandemia de Covid-19, a altura não foi a melhor. Mas a presidente da MOG “quando faz as coisas, gosta de as fazer bem”, por isso inscreveu-se num curso para capacitação de associações de doentes, na Escola Nacional de Saúde. Foram esses os primeiros alicerces do MOG “para poder ajudar outras mulheres”.
“E também os homens, no sentido em que, apesar de ser um cancro de mulheres, tem um grande impacto também nos homens como nossos companheiros, filhos, amigos e pais”.
Há grupos de interajuda e um espaço aberto para quem precisar, mas não é só essa a área de atuação do MOG.
Depois de criar a associação, Cláudia começou a ir a congressos. “Vi que havia um medicamento que não era acessível às mulheres portuguesas mas que salvava vidas prolongava as recidivas com qualidade de vida. Dada em primeira linha, poderia até fazer com que não houvesse recidiva, mas não estava não estava acessível às mulheres em Portugal, por isso fizemos uma petição”.
A petição foi assinada por mais de 10 mil pessoas, foi à Assembleia da República “e hoje em dia esse medicamento está acessível a todas as mulheres em Portugal”.
Se a MOG existisse quando Cláudia Fraga foi diagnosticada com cancro do ovário “facilitava porque, para já, sabia que poderia haver uma recidiva” — se bem que esta parte, admite, pode ser erro da própria, que “nunca perguntou grande coisa”. Para além disso, “a partilha de outras experiências é importantíssima”.
Este artigo foi desenvolvido no âmbito do “Vital”, um projeto editorial do Viral Check e do Polígrafo que conta com o apoio da Fundação Champalimaud.
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