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Carreiras de médicos e enfermeiros eram de prestígio. Hoje são de fuga

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Sérgio Sousa

Mestre em Saúde Pública

Enfermeiro Especialista de Enfermagem Comunitária e de Saúde Pública na ULSM

Enfermeiro Responsável da Unidade de Saúde Pública da ULSM

Durante décadas, ser médico ou enfermeiro em Portugal era sinónimo de prestígio, estabilidade e reconhecimento. Nos anos 1990 e início dos 2000, ingressar numa destas carreiras significava ter um percurso de valorização contínua tanto no plano profissional como no pessoal. A progressão era previsível, a remuneração proporcional ao esforço e o trabalho reconhecido pela sociedade e pelo próprio Estado. Hoje, a realidade é substancialmente diferente.

A crescente desvalorização salarial, a estagnação nas carreiras e a sobrecarga de trabalho transformaram profissões outrora desejadas em percursos de fuga. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) perde profissionais qualificados a um ritmo preocupante, e os incentivos que outrora equilibravam o sistema foram sendo eliminados, muitas vezes sem substituição.

Há 25 anos, o SNS constituíam uma verdadeira escola de valorização profissional. As progressões na carreira eram mais rápidas e os incentivos mais claros. O desempenho e o mérito eram recompensados de forma visível, e havia margem para construir um percurso de crescimento dentro do próprio SNS. Um exemplo simples, mas revelador, está nas férias. Existia um regime em que os profissionais que gozassem férias em épocas de menor procura as chamadas “épocas baixas” — recebiam até cinco dias adicionais de descanso. Era um estímulo à gestão racional dos recursos humanos, permitindo que, durante os períodos de maior atividade, os serviços tivessem mais profissionais disponíveis. Essa medida, além de inteligente, fomentava o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. Hoje, esse tipo de incentivo desapareceu por completo.

Um exemplo recente são os serviços de obstetrícia. Muitos encerraram temporariamente por falta de profissionais, enquanto os que se mantêm abertos graças ao esforço redobrado de médicos, enfermeiros especialistas e restantes profissionais de saúde, que enfrentam uma sobrecarga de trabalho, mas têm avaliações rígidas que não reconhecem o esforço extra, nem o mérito. Num serviço público, como numa empresa, quem produz mais deveria ser recompensado mas nos serviços de obstetrícia que nunca fecharam, o esforço extra não é valorizado.

Paradoxalmente, serviços que encerraram são avaliados da mesma forma. Esta injustiça mina a motivação e transforma permanecer no SNS mais num ato de resistência do que numa escolha de carreira..

Salários e progressões: a erosão silenciosa

Segundo um estudo da Nova School of Business and Economics, os médicos portugueses perderam cerca de 18% do seu poder de compra entre 2011 e 2022. No mesmo período, os enfermeiros registaram perdas igualmente significativas, com salários médios muito abaixo da média da OCDE. De acordo com dados da própria OCDE compilados pela Ordem dos Enfermeiros, o salário médio anual de um enfermeiro em Portugal ronda os 23 000 euros, face a uma média internacional de 41 000 euros.

Aquilo que antes era um percurso previsível, hoje depende de vagas, cotas e processos burocráticos que pouco valorizam a experiência e o mérito acumulados.

A consequência: desmotivação e fuga

O resultado é claro. O SNS perdeu, apenas em 2023, centenas de médicos e enfermeiros para o setor privado e para outros países europeus. A PLANAPP, no seu relatório de 2024 sobre satisfação e retenção de profissionais de saúde, concluiu que mais de metade dos profissionais inquiridos pondera abandonar o SNS nos próximos cinco anos. A principal razão apontada: falta de reconhecimento, de valorização e de perspetiva de progressão.

O que antes era visto como um destino profissional de prestígio, é hoje, muitas vezes, um ponto de partida para sair.

Repor a atratividade destas carreiras não é apenas uma questão corporativa. É uma questão de sustentabilidade do SNS e de equilíbrio social. O Estado deve reconhecer que, sem políticas de valorização, sem incentivos inteligentes (como o das férias em época baixa) e sem mecanismos de progressão baseados no mérito, o sistema continuará a perder os seus melhores profissionais.

 

Mas a valorização não se faz apenas com salários ou progressões. Exige também condições que permitam a conciliação entre a vida profissional e pessoal, assegurando tempos de descanso, estabilidade nos horários e previsibilidade nas escalas. Profissionais exaustos, que vivem permanentemente em regime de urgência, não conseguem cuidar com a qualidade e empatia que o SNS sempre simbolizou.

 

Recriar condições que tornem o exercício da medicina e da enfermagem novamente apelativo é uma urgência nacional. Caso contrário, corremos o risco de transformar o SNS num sistema de urgência permanente a funcionar apenas graças ao esforço heróico de quem, por vocação e ética, ainda resiste.

 

E, no fim das contas, bater palmas não se ganham jogos: é preciso investimento real, justiça nas carreiras e conciliação entre vida profissional e pessoal para que o SNS continue a cuidar de todos.

Fontes

  1. PLANAPP (2024). Estudo Nacional sobre Satisfação e Retenção de Profissionais de Saúde em Portugal. Disponível em: gov.pt
  2. FNAM (2023). Médicos continuam sem recuperar o poder de compra perdido na última década. pt
  3. Ordem dos Enfermeiros (2023). Relatório da OCDE coloca enfermeiros portugueses entre os mais mal pagos. pt

 

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