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Burnout parental: “Hoje, os pais vivem em piloto automático, sem tempo para sentir”

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Burnout deixou de ser uma expressão confinada ao mundo laboral. É hoje um fenómeno transversal, que atinge cada vez mais pais, cuidadores e profissionais. A neuropsicóloga Sofia Carvalho, fundadora da Clínica de Psicologia Online, tem observado o aumento destes casos e alerta: “O stresse é uma constante na vida da maioria das famílias — e quando deixa de ser ajustado, torna-se nocivo”.

O esgotamento manifesta-se através de fadiga persistente, irritabilidade, falta de concentração, falhas de memória e culpa, sintomas tantas vezes normalizados como parte da vida adulta. “Estar mal não pode ser considerado normal”, sublinha.

A especialista recorda que o chamado Burnout Parental é uma realidade crescente, embora ainda pouco reconhecida. “As crianças são esponjas e imitam. Pais stressados podem criar crianças stressadas e adultos ansiosos”, acrescenta.

Sofia Carvalho fala também a partir da experiência pessoal: viveu um episódio de burnout em 2020, que a levou a abandonar o mundo corporativo e a fundar uma clínica digital, hoje com nove profissionais. Tornou-se nómada digital, conciliando o trabalho com viagens por mais de 40 países, onde estuda diferentes formas de lidar com o stress e a saúde mental.

Dos países nórdicos à Ásia, diz encontrar uma constante: a importância dada ao descanso e ao convívio. “No Ocidente, romantiza-se o cansaço. Trabalhar em excesso é visto como virtude”, observa.

Nas suas redes sociais, seguidas por quase 50 mil pessoas, partilha conteúdos sobre saúde mental e propõe um teste gratuito de burnout, criado para ajudar quem desconfia ter ultrapassado o limite.

Na entrevista que se segue, Sofia Carvalho explica como reconhecer os sinais do esgotamento e porque é que cuidar de si continua a ser o passo mais difícil — mas também o mais necessário.

Burnout tornou-se uma palavra de uso corrente. Há uma fronteira invisível entre estar empenhado e estar em colapso. Como é que cada um de nós pode perceber quando o “fazer muito” se torna autodestrutivo?

O Burnout tornou-se uma palavra comum, mas continua difícil perceber onde termina o empenho e começa o colapso. Essa fronteira, quase invisível, surge quando o “fazer muito” deixa de ter propósito. Não adoecemos por trabalhar muitas horas; adoecemos por trabalhar sempre muitas horas. Estar empenhado para atingir um objetivo não nos adoece. O problema é quando trabalhamos com empenho, mas sem direção. Vou dar um exemplo, vamos imaginar que eu peço a uma pessoa para ela ir correr. No final eu pergunto à pessoa quantos quilómetros correu e a ela diz-me a medo que correu três quilómetros, no seu íntimo a pessoa pensa que correu pouco, que devia correr mais, fica triste. Agora, vamos imaginar que eu peço à mesma pessoa para ela correr dois quilómetros. No final a pessoa está feliz porque atingiu o objetivo. Mas, ela correu menos que antes. Onde está a diferença? Soube quando parar. O mesmo acontece no trabalho. Quando temos objetivos claros, sabemos quando parar, e ao parar com regularidade, protegemo-nos do colapso.

A definição de objetivos deve ser feita ou revista várias vezes ao ano, tanto para nos lembrar do caminho que já percorremos, como para nos mostrar o caminho que nos falta. Olhar para o que nos falta ajuda-nos a organizar melhor a nossa energia. Ou seja, quando eu sei para onde vou, fica mais fácil orientar a minha energia para uma determinada tarefa e dizer que “não” a tarefas que não me vão ajudar a chegar ao objetivo. 

Aprender a estabelecer um ou mais objetivos no e com o nosso trabalho é o que nos ajudar a perceber quando o empenho começa a transformar-se em autodestruição.

Por que continuamos a normalizar o cansaço, a irritabilidade e a culpa como se fossem o preço inevitável da vida adulta?

A cultura aqui tem um papel muito importante, culturalmente muitos de nós são educados a pensar da seguinte forma: quem mais se sacrifica é melhor, aprendemos a olhar com mais empatia para quem aparentemente está mais sobrecarregado, para quem diz trabalhar muitas horas, para quem demonstra desconforto. E como somos seres sociais, todos queremos pertencer ao grupo, e por isso replicamos estas formas de vida. A romantização do cansaço é muito comum no nosso dia a dia, e há sempre alguém a ver como virtude “só” trabalhar e não ter tempo para mais nada, como se estar cansado fosse um status. A vida adulta dá-nos mais responsabilidades, mais tarefas a cumprir, isso pode trazer mais irritabilidade e culpa, mas não temos todos de cumprir as mesmas tarefas nem todos de escolher as mesmas responsabilidades. Em consultório percebe-se que muitas pessoas acabam por fazer escolhas por pressão da sociedade, e são essas escolhas que a longo prazo e de forma repetida podem fazer da vida adulta uma fase menos boa e pautada de problemas de saúde mental. Existe quem gostasse de voltar à infância para não ter responsabilidades, mas a vida adulta dá-nos algo que a infância nunca nos deu, o poder da escolha, o conseguir escolher a vida que queremos levar e que preço estamos, ou não, dispostos a pagar por ela.

Refere que “o Burnout é um estado de esgotamento físico, mental e emocional, que se desenvolve devido ao stresse causado pelo trabalho, seja este remunerado ou não”. De que forma este esgotamento se manifesta fora do mundo profissional — nas tarefas de cuidar, nas responsabilidades familiares, no simples esforço de dar resposta a tudo?

Inicialmente, nos anos de 1970, o burnout era reconhecido apenas entre profissionais de saúde como médicos, enfermeiros e psicólogos. Com o tempo, o conceito expandiu-se para outras profissões e, hoje, é utilizado também para descrever o esgotamento que surge em trabalhos não remunerados, como as responsabilidades familiares.

Embora o termo burnout parental ainda não seja aceite por toda a comunidade científica, faz-me sentido considerar que qualquer tarefa que leve ao esgotamento dos nossos recursos físicos, mentais ou emocionais pode gerar burnout. E temos de ter em conta que a forma de viver dos anos 70, altura em que se começou a falar de burnout, mudou muito até aos dias de hoje. Somos uma população mais sobrecarregada com tarefas, com menos rede de apoio, com mais responsabilidades e isso reflete-se no aumento de casos de burnout. Claro, que antes existiam também problemas, mas as vidas tinham uma complexidade diferente. Atualmente é comum uma família ter os adultos a trabalhar a tempo inteiro fora de casa, com metas a cumprir, ter as crianças na escola, com atividades extracurriculares que exigem um grande logística e atenção. É impossível dar resposta a tudo sem ajuda externa, de forma saudável para a família. Uma família sobrecarregada, muitas vezes não consegue aproveitar os momentos juntos, discute mais, está mais cansada. Quando o descanso deixa de ser suficiente, o corpo e a mente entram em modo de sobrevivência e é aí que o burnoutpode instalar-se, mesmo fora do ambiente profissional.

Para contextualizarmos, como se pode definir o burnout parental e por que razão tantos pais têm dificuldade em reconhecer que chegaram ao limite?

Na atualidade a parentalidade tem desafios nunca vistos, como referi na questão anterior. Os pais sentem que precisam estar atentos a tudo, que precisam estar em todo o lado, e isso faz com que não exista tempo, nem espaço mental para algo que é essencial, para pensar. Há relatos de pais que dizem não ter tempo para tomar banho, para cuidar de si, vivem em piloto automático. Se estão a viver em modo sobrevivência, sem tempo para sentir, não conseguem reconhecer que chegaram ao limite. 

Para o bem e para o mal o ser humano consegue adaptar-se a tudo, e mesmo o que antes nos podia parecer estranho, basta entrar na rotina por muito tempo que passa a ser “normal” e é este um dos motivos que torna o burnout tão perigoso. Não o sentimos a instalar, e só quando o nosso corpo grita por socorro é que entendemos que precisamos sair dali. Os sinais de alarme a que devemos estar atentos são: as falhas de memória, de atenção, a irritabilidade constante, as dificuldades a dormir, e a falta de sentido, a sensação de vazio de insuficiência. Estar mal não pode ser considerado normal e esperado, e os pais, antes de serem pais são pessoas e precisam cuidar de si.

Diz-se que as crianças são esponjas emocionais. De que modo absorvem o stresse dos pais — e como quebrar esse ciclo antes que se torne herança?

As crianças são mesmo esponjas, aprendem por modelagem e é comum ver crianças bem pequenas a modelar comportamentos de adultos, imitam mesmo o que não percebem, e isso acontece tanto físico como emocionalmente. Crescer num lar onde impera o caos, onde existem discussões constantes e falta de atenção, pode levar estas crianças a ser adultos ansiosos e deprimidos. São centenas os casos que nos chegam à clínica de adultos ansiosos que foram criados em famílias onde reinava o stress. Estas pessoas agora adultas, aprenderam a estar sempre alerta a pensar sempre em mil e um cenários, a estar sempre na dúvida. Mas, este pode não ser o futuro dos filhos de quem nos está a ler, podemos fazer diferente.

O primeiro passo é os pais perceberem que há comportamentos que devem mudar, não só pelos filhos, mas por eles próprios, o excesso de stresse é nocivo para todos. Se não conseguirem mudar os comportamentos sozinhos, podem e devem pedir ajuda especializada, para aprenderem a gerir melhor as tarefas, as prioridades, aprenderem a lidar melhor com as suas emoções. Os pais precisam interiorizar que para os filhos estarem bem os pais precisam de estar bem, até quando estamos no avião os avisos nos dizem para, em caso de acidente, colocarmos a máscara de oxigénio antes de a colocarmos às crianças.

Em 2020, passou pessoalmente por um episódio de burnout. Que aprendizagens retirou dessa experiência e de que forma influenciou a sua prática clínica?

Foi uma altura complicada, que me levou a mudar o meu estilo de vida, não romantizo esta fase e não digo que foi o melhor que me aconteceu, preferia não ter passado por ela. O burnout apareceu na minha vida após mais de uma década de trabalho sem sentido, sem objetivo, e já sabemos que objetivos são importantes para o nosso trabalho, como falei inicialmente. Mas, neste momento, já bem de saúde, trago desta fase a experiência e sensibilidade para tratar as pessoas que me procuram, passo a minha experiência de forma crua à minha equipa, para que elas a consigam sentir e levar para as consultas com os nossos pacientes. Consigo assim ter não só a teoria, mas como a prática, e isso faz diferença, conseguimos compreender de forma mais profunda quem nos procura.

A Clínica de Psicologia Online nasceu dessa mudança de vida. O formato digital trouxe-lhe uma nova forma de acompanhar e escutar quem procura ajuda?

Sim, o formato digital era a mudança que eu precisava e que não sabia que existia. Saí do meu emprego corporativo, e dediquei-me ao trabalho por conta própria a tempo integral, mas mesmo assim sentia que faltava alguma coisa. Ao viajar por vários países maiores em dimensão que o nosso, percebi que era comum as consultas de psicologia serem feitas de forma remota, decidi tentar e funcionou.

Atualmente é uma modalidade conhecida, mas na altura não era comum. Estar presente nas redes sociais fez-me conseguir diversificar mais as pessoas que atendia, já não estava presa à minha localidade, e quando senti necessidade de crescer a equipa pude escolher os melhores profissionais, de qualquer parte do país. A magia do online também nos permite atender pessoas espalhadas por todo o mundo, é extraordinário conseguirmos estar presentes nos diferentes momentos da vida das pessoas que acompanhamos, não termos de parar os acompanhamentos porque a pessoa se muda, quando tem algum problema que a impede de sair de casa, o online não tem barreiras e é tão eficaz como o presencial, com a vantagem de não exigir deslocações.

Como nómada digital, tem observado diferentes maneiras de viver e lidar com o stresse. Que exemplos do mundo gostaria de ver aplicados entre nós?

Quando me dediquei ao atendimento online percebi que podia juntar as minhas duas grandes paixões, a psicologia e as viagens. Viajar a tempo inteiro tem as suas dificuldades, há muita renuncia, mas permite-me estudar com pessoas que nunca estudaria de outra forma, e viver realidades que só com tempo podemos viver. Passei uma temporada nos países nórdicos em pleno inverno e fiquei fascinada com a forma de viver. Mesmo nas condições mais complexas, cheguei a sentir -38 ºC, pouquíssimas horas de luz, culturalmente procuram sempre ter vida além do trabalho. Usam as saunas como local de convívio e de relaxamento, é normal haver pelo menos uma em cada casa ou prédio, e é comum também existirem fogueiras no centro das vilas, que servem não só para aquecer, como para manter o convívio. Esta forma de superar as dificuldades ajudou-me também a mim a viver algumas situações com mais leveza, e com eles vi na prática que devemos colocar as nossas forças no que depende de nós. Por exemplo, se lá fora está muito frio devemos vestir roupa adequada, mas não deixar de sair, porque a meteorologia não podemos controlar. Eles tem um proverbio que diz: “Não existe mau tempo, existe má roupa.”

Noutras partes do mundo, como na Tailândia, as pessoas vivem numa tranquilidade única. Mesmo no caos do transito as pessoas são simpáticas, são atenciosas, param para perceber o que se passa.

Na Grécia, longe dos pontos mais turísticos, conseguimos ver que o exercício físico é essencial, e por isso é comum ver pessoas de todas as idades a correr, a nadar, sempre ativas.

Em países como a Bósnia e Herzegovina, Kosovo, Albânia, o tempo nas esplanadas, o tempo para tomar café com calma é essencial.

Claro que todos estes países têm também problemas, e podíamos também falar deles, mas seria útil para todos aprender a viver com mais calma, com mais hobbies, e com mais sentimento de pertença.

No seu site, convida as pessoas a fazer um teste de burnout. O que pode esse pequeno gesto revelar sobre o estado mental e emocional de quem o faz?

O burnout instala-se de forma lenta e quase impercetível. As pessoas vão-se adaptando ao cansaço constante, à falta de paciência, às falhas de memória, ao sono agitado, e acabam por normalizar aquilo que, na verdade, são sinais de alerta. Passa a parecer “normal” viver exausto, o que torna difícil perceber quando algo já não está bem.

Muitas vezes, o primeiro momento de reconhecimento acontece quando alguém entra nas minhas redes sociais ou site lê sobre o tema e se identifica com o que está a sentir. Esse reconhecimento é forte: traz alívio, por finalmente encontrar uma explicação, mas também medo, porque implica admitir que precisa de ajuda.

O teste de burnout no meu site foi criado precisamente para esse momento. Não substitui a avaliação de um profissional de saúde, mas funciona como um primeiro passo. As perguntas ajudam a pessoa a refletir sobre os seus hábitos, o nível de stress e o impacto das exigências do dia a dia. Só o ato de parar para responder já é, muitas vezes, revelador.

Fazer o teste pode demonstrar uma necessidade de compreender o próprio estado mental e emocional, de validar aquilo que se sente e de perceber se é altura de procurar apoio. É um gesto simples, mas que pode marcar o início de um processo importante de autoconsciência e mudança.

O regresso à escola e ao trabalho é, para muitas famílias, um momento de grande pressão. Que práticas simples podem ajudar a tornar este recomeço mais leve?

Neste momento, em que já passaram algumas semanas do regresso às aulas, muitas famílias começam a sentir que estão a viver numa corrida, com listas para cumprir, horários para organizar e reorganizar, e uma sensação que tudo tem de correr bem, que tudo tem de ser feito. Mas este momento pode ser encarado de outra forma, de uma forma mais leve, mais realista e mais flexível.

Uma das práticas mais importantes é não retomar tudo ao mesmo tempo. É natural e esperado que nestas primeiras semanas o ritmo seja diferente e que a energia não esteja no máximo. O planeamento é essencial, mas não para fazer tudo, para ver o que precisamos fazer e o que podemos adiar para aliviar a pressão.

Importante também é gerir as expectativas, tanto em casa como no trabalho, aceitar que recomeçar precisa de adaptação e que o cansaço inicial é normal. Pequenas pausas durante o dia, planear as refeições para serem tão simples quanto possível, dormir as horas necessárias fazem diferença mais diferença na vida da família que uma agenda cheia planeada para falhar.

É fundamental também que toda a família fique envolvida na organização. Partilhar responsabilidades é fundamental para que todos se sintam mais implicados e menos sobrecarregados. Pequenas mudanças, como preparar as mochilas e roupas de véspera, definir em conjunto o menu das refeições, trazem a sensação de controlo e de previsibilidade.

Por fim, é importante manter tempo para o descanso e o prazer. O regresso às rotinas não precisa de significar o abandono do lazer. Momentos de descontração em família ou tempo individual para recuperar energia são o que garantem equilíbrio e ajudam a prevenir o esgotamento ao longo do ano.

 

Fonte: Lifestyle Sapo

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