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Balsemão, o “visionário” que foi quase tudo na democracia portuguesa

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Morreu, esta terça-feira, tinha 88 anos. Francisco Pinto Balsemão ocupou quase todos os cargos de destaque que uma democracia pode ter. De primeiro-ministro a fundador de um jornal e de uma estação televisiva, sempre se identificou como jornalista, mas a sua vida esteve eminentemente ligada à política.

Tinha cinco filhos, era casado, adepto e sócio do Sporting. Tinha sentido de humor, participou até aos últimos meses na política ativa, e recusava o discurso “apocalíptico” que hoje assombra o jornalismo.

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Recorde aqui os destaques de uma vida cheia, de um homem que até há bem pouco tempo continuava ativo, e que, recentemente, apostou forte na Inteligência Artificial.

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O “menino protegido”

Nasceu na Lapa, em Lisboa, no dia 1 de setembro de 1937, num meio privilegiado. O “menino dourado”, como o próprio reconheceu em 2021, numa entrevista ao “Primeira Pessoa”, programa da RTP. Era “protegido” porque os pais há muito que tentavam ter um filho, tinham os dois 40 anos quando Francisco Pinto Balsemão nasceu.

No seu livro de memórias, publicado em 2021, assume que teve uma infância “fechada, mas desafiante, dourada, mas exigente”.

Filho único e, por isso, sujeito a “cuidados extremos”, cresceu na Lapa com a família, incluindo avós e tios. Estudou em casa, com professores privados, até à 4.ª classe. Do lado da mãe, era descendente da família real. Era amigo de infância de Juan Carlos I, que haveria de se tornar Rei de Espanha, e com quem jogava ténis quando era miúdo.

Mais tarde, vai para o Liceu Pedro Nunes, uma escola secundária em Lisboa, que juntava figuras da alta sociedade. Era bom aluno, assim o exigiam em casa. “Se nascemos com alguns privilégios, temos mais responsabilidades que os outros”, contou recentemente. De bom humor, classificava como uma “tragédia nacional” os raros períodos em que não entrou para o quadro de honra.

Balsemão recordou o Liceu Pedro Nunes como um “liceu fantástico”, por ser uma escola mista, onde rapazes e raparigas coexistiam no mesmo espaço, um conceito raro em pleno Estado Novo. Foi neste liceu lisboeta que fez amigos de escola, como a cantora Simone de Oliveira.

Em casa, lembra-se dos pais discutirem “muito política” e de se sentir “atacado” quando criticava o Estado Novo.

Pinto Balsemão, o defensor da liberdade que marcou a política e o jornalismo em Portugal

O jurista que pensava mais como jornalista

Dispensou o exame de admissão e entrou em Direito na Faculdade de Direito, no Campo Santana, em Lisboa. Ia de Vespa e assume, no seu livro de Memórias, que teve vários acidentes de mota, sem grandes prejuízos físicos, mas que preferia que os pais nem sonhassem.

Balsemão não hesita, classifica a maioria das aulas que tinha “de um modo geral desinteressante, para não dizer chatas”. Considerava o ensino antiquado e pouco estimulante. Lembra o “drama” de chumbar no 2.º ano, num curso em que só 20% dos alunos o concluíam. Conta que em casa “quase entrámos em luto profundo”, os pais tentaram consolá-lo, mas logo depois veio a austeridade: como castigo, teve um “verão triste” sem viagens, nem presentes.

Foi na Faculdade que estreitou amizades que levaria para a vida. Diz que foi no Campo Santana que aprendeu a “pensar, lutar, rejeitar”. Foi aluno de Marcello Caetano, que haveria de se tornar no rosto do Estado Novo pós-salazarista, e recorda um “grande professor”, com quem depois se desentendeu politicamente.

Fez o 5.º ano da universidade na tropa (serviço militar obrigatório), onde esteve durante três anos e meio, e no 6.º ano especializou-se no “Curso Complementar” na área de ciências politico-económicas. “A política começava a interessar-me cada vez mais”, lembra.

No percurso militar passou pela Força Aérea. Teve um bom percurso que culminou com um convite para o gabinete de Kaúlza de Arriaga, então subsecretário de Estado da Aeronáutica. Os pais entenderam o convite como uma “reconversão ao salazarismo”, depois de um percurso de afastamento que Balsemão ia fazendo.

Contacto com o jornalismo e com o Governo de Salazar

Ainda na vida militar, Balsemão assegura que o “contacto com a imprensa era nulo”, que só tinha feito algumas visitas ao “Diário Popular”. Mas foi nessa altura que é indicado para chefe de redação na revista “Mais Alto”, a publicação mensal oficial da Força Aérea.

A memória mais “viva” que tinha era a de uma reportagem em Londres, que descreve como “um tanto ridículo”. Foi incumbido de ir ao Reino Unido para responder a uma reportagem da BBC, que tinha denunciado péssimas condições de vida e a existência de larguíssimos bairros da lata em Lisboa. A ideia era mostrar que isso também acontecia na capital britânica.

Balsemão era ajudante de um chefe militar, Kaúlza de Arriaga, fiel a Salazar – e que foi promovido depois de recusar-se a alinhar na “Abrilada”. Diz que começou a sentir algum desconforto nas raras vezes a que tinha acesso a documentos confidenciais da PIDE, e que tinham acusações graves a pessoas sobre quem ele tinha uma “opinião positiva”. Garante que chegou a avisar algumas dessas figuras de que estariam sob vigia da polícia política.

Voltou à vida civil e começou a trabalhar como advogado. É nessa altura que tem a oportunidade – “preparada pelo pai” – para entrar para o “Diário Popular”, um jornal lisboeta de grande tiragem na altura. Ocupou “um lugar que não existia”: secretário de direção.

Lembra uma redação diversa, que tanto tinha jornalistas que “apoiavam o regime vigente” como comunistas. No entanto, a redação seria na sua maioria “oposicionista” ao Salazarismo.

Assume que a ideia era, a prazo, tornar-se diretor do “Diário Popular”. No dia-a-dia, recorda o forte ataque da censura. No jornal, que contava com mais de 100 mil tiragens por dia, foi estabelecendo contacto com o mundo intelectual e político. Foi nessa altura que começou a dar-se bem com Mário Soares e Maria Barroso, e chegou a fazer um louvor no jornal à mulher de Mário Soares, o que não agradou à censura.

“O confronto quotidiano com os cortes dos censores despertou-me para a vida política”, recorda. Ia fazendo um caminho de oposição ao regime.

Balsemão. As imagens de uma vida dedicada à democracia e à liberdade de imprensa

Entrada na política

Com um lugar de destaque à frente de um jornal influente, é convidado para assumir o lugar de deputado, já depois de Salazar cair da cadeira e durante a Primavera Marcelista, que alimentava uma expectativa de um aligeirar do regime. Junta-se à Ala Liberal do Parlamento, sem abandonar o “Diário Popular”, e é no Parlamento que se começa a entender com Francisco Sá Carneiro.

O grupo, ainda que tivesse sido convidado por Marcello Caetano para a Assembleia Nacional, ia dando sinais de afastamento em relação ao Estado Novo.

Com Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão chegou a visitar a prisão de Caxias para se encontrar com os presos políticos.

Diz que acreditava “sinceramente” que Marcello Caetano ia levar o país para um regime democrático em Portugal. A realidade mostrou que estava enganado.

No livro das memórias, em 2021, escreve que no arranque da sua vida política podia ter sido mais vocal: “Poderia ter feito mais e melhor”. Ainda durante o Estado Novo, coloca em marcha o seu plano para fundar um novo jornal: o “Expresso”.

“Expresso”: a provação e o “lelé da cuca”

“Na origem do Expresso estava a vontade de provar a mim próprio, à família e ao mundo que era capaz de lançar e fazer triunfar um projeto inovador na área da Imprensa”, descreve o próprio no livro de memórias.

O Expresso é lançado em janeiro de 1973, Balsemão tinha 34 anos. Na altura, vinca, “os principais meios estavam nas mãos de proprietários afetos ao Governo”.

A ideia era criar um projeto vanguardista, adotar rubricas fixas, palavras cruzadas, colunas de análise. Para isso chamou figuras que haveriam de se tornar proeminentes na democracia portuguesa, como Marcelo Rebelo de Sousa e Francisco Sá Carneiro.

A sua indesmentível relação áspera com o atual Presidente da República vem dos tempos do “Expresso”. Recorda, no livro “Memórias” um episódio em que Marcelo Rebelo de Sousa o chamou de “lelé da cuca”, na seção “Gente” (que ainda existe e que não é assinada por ninguém, com um descontraído e bisbilhoteiro).

Apesar de uma relação difícil, na quarta-feira, depois da notícia da morte de Balsemão, o atual Presidente da República recordou-o como um “visionário”, que nunca será esquecido pelo país”.

Outra curiosidade: até aos dias de hoje, a mulher de Francisco Pinto Balsemão, Mercedes, continua a elaborar as palavras cruzadas, com o pseudónimo de Marcos Cruz. Faz dela a funcionária mais antiga do Expresso.

25 de Abril como repórter

Quando se dá o 25 de Abril, em 1974, Francisco Pinto Balsemão não resiste, cede ao seu instinto jornalístico e vai em direção ao Terreiro do Paço. Lembra a “alegria e emoção” de poder elaborar um jornal sem a sobra da censura, o que aconteceu logo na edição de 27 de abril.

Balsemão admitiu o medo da ocupação da redação por parte das forças de extrema-esquerda que ameaçavam tomar o país durante o Verão Quente de 1975. “À medida que o Expresso se tornava o único meio de comunicação social não controlado pelo PCP e os seus aliados do MFA, o cerco ia-se apertando”. O 25 de novembro foi o ponto final dessa fase.

Fundação do PSD e ascensão ao poder

Poucos dias depois da revolução, a 6 de maio de 1974, Balsemão junta-se a Sá Carneiro e juntos fundam o Partido Popular Democrático (PPD), que mais tarde se viria a chamar PSD.

“Nunca recebi do Partido qualquer salário ou remuneração”, escreve no seu livro. Francisco Pinto Balsemão garante que não trabalhava em “full-time” no PSD.

Do outro lado, o PS estava formado há mais tempo e Mário Soares ia-se afirmando como uma das principais figuras políticas da recém-nascida democracia.

Depois de várias derrotas eleitorais para os socialistas, o PSD só conquista as primeiras eleições em 1979, altura em que Francisco Sá Carneiro se torna o estreante primeiro-ministro do PSD. Era a vitória da Aliança Democrática, a original AD.

Balsemão é chamado para ministro de Estado Adjunto do primeiro-ministro, adjunto de Sá Carneiro.

Morte de Sá Carneiro e passagem para a primeira linha

Com a morte de Francisco Sá Carneiro num desastre aéreo, em Camarate, em dezembro de 1980, Balsemão, visivelmente consternado faz uma comunicação ao país e assume que a perda do líder do PSD e do Governo iria “obrigar o PSD a uma reorganização”.

No seu livro, lembra que no dia do funeral de Sá Carneiro, à saída, Mota Amaral e Alberto João Jardim já o estavam a empurrar para suceder na liderança do PSD. Tudo aconteceu rapidamente e novas eleições estavam ao virar da esquina.

Pinto Balsemão vence as eleições e sobe ao cargo de primeiro-ministro em 1981. Na noite das eleições diz que “não há governos fortes nem fracos, há governos que governam bem”. A instabilidade era geral, Balsemão acusa vários membros do seu próprio Governo de “minar, minar, minar” o executivo da AD. Quem? Um deles era Cavaco Silva, que tinha recusado voltar a entrar para o Governo (tinha sido ministro das Finanças de Sá Carneiro). “Quem com ferros mata, com ferros morre”, diz, na altura em que se demite, depois de uma derrota nas autárquicas, em 1982.

Para a história fica uma importante Revisão Constitucional, que tirou poderes ao Presidente da República e extinguiu o Conselho da Revolução, criou o Tribunal Constitucional e deu força ao Parlamento. O passo deteriorou ainda mais as relações que tinha com Ramalho Eanes, na altura inquilino do Palácio de Belém.

​Balsemão foi um "fundador da democracia" e do "jornalismo livre" em Portugal

Fundação da SIC

Com a demissão do cargo de primeiro-ministro, Balsemão volta para onde tinha sido feliz: o “Expresso”. Nos tempos em que estava no poder, Marcelo Rebelo de Sousa foi o diretor do jornal e não o poupava com o que se escrevia. Sá Carneiro não compreendia como é que o dono do “Expresso” não repreendia o próprio jornal. Balsemão respondia-lhe que tinha de ser “coerente” com o que tinha defendido nos tempos de ditadura.

Os anos 80 foram também duros para o “Expresso”. Nessa década, houve razias à redação provocadas por novos projetos que pretendiam suplantar o jornal. Com o seu estilo fino, Francisco Pinto Balsemão descreve estas tentativas como uma emboscada para “Matar o Pai”. E sentencia: “Infelizmente para eles, todos ou quase todos falharam”.

Anos mais tarde volta a fazer história no panorama da comunicação social em Portugal. Em outubro de 1992 funda o primeiro canal de televisão privado do país. “A nova menina dos olhos de Balsemão”, recordou Clara Ferreira Alves, jornalista, numa primeira reação à morte do fundador do canal, na última noite, na SIC Notícias.

Revolucionou o panorama da televisão em Portugal e manteve-se sempre ativo. Dizia que continuava a querer ser chamado jornalista, e orgulhava-se em ser o número 18 da carteira de jornalista.

Podcasts e IA

Recentemente, foi impulsionador dos podcasts no Expresso e na SIC, e foi, ele próprio, criador de podcasts: “Deixar O Mundo Melhor”, onde convidou personalidades de todas as áreas de atividade em Portugal. De Marcelo Rebelo de Sousa a Vhils, passando por Graça Freitas, Fernando Santos, Rita Blanco, Paula Amorim. Foram 49 entrevistas de vida a personalidades, com conversas que, acreditava o fundador do Expresso, deixariam o “Mundo Melhor”.

Já depois desse, agarrou nas mil páginas do livro “Memórias” e verteu-as num podcast feito com recurso a Inteligência Artificial (IA).

Com uma “distância recomendável” por si mesmo, Francisco Pinto Balsemão nunca deixou de intervir politicamente. Em setembro, apoiou publicamente Luís Marques Mendes na corrida às presidenciais de janeiro de 2026. Fê-lo através de uma mensagem escrita, porque a saúde não permitia que o fizesse de outra forma.

Numa das últimas intervenções de viva voz que fez, no último episódio do podcast “Deixar o Mundo Melhor”, em janeiro de 2023, assumiu: “O meu comboio está a chegar à estação. Estou preparado para isso”.


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