
Autocuidado das pessoas com Doença Inflamatória Intestinal:
Ana Rita Pedrosa
Assistente Convidada ESEL
Investigadora no Centro de Investigação, Inovação e Desenvolvimento em Enfermagem de Lisboa (CIDNUR)
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A Doença Inflamatória Intestinal (DII) obriga quem a vive a gerir incerteza todos os dias: sintomas que aparecem e desaparecem, exames, medicação exigente, horários de trabalho e escola que nem sempre encaixam com a doença. Falar de “autocuidado” não pode ser sinónimo de entregar folhetos com recomendações vagas; é conferir poder com estrutura. É garantir que a pessoa sabe o que fazer, quando fazer e com quem contar — sobretudo fora da consulta, quando surgem as dúvidas e os receios. O ponto de partida é simples: escutar o que faz falta no dia a dia e entregar exatamente isso.
O primeiro pedido de quem vive com DII é previsibilidade quando os sintomas pioram. Muitos descrevem um percurso “pára-arranca” entre urgências, telefonemas e listas de espera. Um plano de crise por escrito, construído com a equipa, reduz a ansiedade: sinais de alarme específicos, passos claros a seguir em casa, um contacto direto e um tempo de resposta definido. Saber “quando devo ligar, a quem e o que posso iniciar hoje” evita decisões tardias e idas desnecessárias à urgência. Aqui, as associações de doentes são parceiras decisivas: disponibilizam linhas de apoio, moderam grupos de pares, ajudam a traduzir a linguagem clínica para o quotidiano, protegendo também os doentes de desinformação bem-intencionada que se circula nas redes. Essa ponte entre experiência vivida e aconselhamento prático dá confiança e, muitas vezes, evita que pequenos problemas cresçam.
A informação tem também de falar a mesma língua de quem a recebe. Instruções baseadas exclusivamente em linguagem científica, ou contraditórias entre profissionais, desmotivam; mais facilmente serão entendidas mensagens curtas e visuais, com medicação, sinais de alerta e orientações pragmáticas para hidratação e alimentação. E há um passo que não pode falhar: confirmar a compreensão, pedindo à pessoa que repita, com as suas palavras, o que vai fazer. Parece um detalhe, mas é aqui que o autocuidado sai do papel.
Muitas pessoas sentem que “nada do que faço muda o desfecho”. As consultas, por isso, devem começar pelo que realmente incomoda. Fadiga esmagadora, ansiedade, sono frágil, humor deprimido, intimidade afetada, receios no trabalho ou na escola — temas que ficam frequentemente por tratar. Um breve questionário antes da consulta, centrado na qualidade de vida e no controlo percebido, desloca a conversa para as prioridades da pessoa. Quando olhamos para esses resultados, as decisões mudam: ajusta-se a terapêutica, agenda-se apoio nutricional ou psicológico, combina-se um contacto de seguimento. As associações voltam a ser chave ao garantir acesso a pares formados e informação sobre direitos sociais, licenças e adaptações no posto de trabalho. São, muitas vezes, quem segura a rede quando o serviço público está sobrecarregado.
Há ainda uma questão de equidade: nem todas as pessoas têm o mesmo nível de literacia, tempo ou recursos. O autocuidado que ignora estas diferenças alarga desigualdades. Precisamos de abordagens graduadas, como SMS em vez de aplicações complexas, horários de contacto compatíveis com turnos, apoio social para quem precisa e prioridade de acesso em situações de maior vulnerabilidade. O sistema também tem de medir o que realmente interessa às pessoas: para além de marcadores biológicos, importa saber como dormem, se trabalham ou estudam com conforto, se sentem controlo sobre a doença, se conseguem gerir a medicação. O que não se mede, não se melhora. Autocuidado não é delegar tarefas à pessoa com DII; é devolver-lhe poder, com estrutura e suporte. Quando a pessoa tem um plano claro, canais de resposta que funcionam e ferramentas simples para acompanhar objetivamente a sua doença, a ansiedade reduz, as decisões melhoram e o recurso evitável aos serviços diminui. O investimento necessário é modesto — linguagem clara, um contacto a tempo, um lembrete, consultas que começam pelo que importa — e o retorno é grande: qualidade de vida, ainda que contemos com o curso insidioso da doença. Se quisermos serviços de saúde verdadeiramente centrados na pessoa com DII, a pergunta deixa de ser “se” e passa a ser “como”. Que competências cada pessoa dominará em três meses? Que sinais reconhecerá sem hesitar? Que canais usará para pedir ajuda e em quanto tempo terá resposta? As respostas a estas três perguntas são o roteiro para sairmos do paternalismo bem-intencionado e oferecermos o que realmente falta: previsibilidade, apoio a tempo e ferramentas simples para decidir melhor, todos os dias.
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